Direito Civil Atual

Jurídico XI de Agosto – 100 anos de prestação de serviços à comunidade e ao ensino

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9 de setembro de 2019, 12h58

Não vou escrever sobre a história do Departamento Jurídico XI de Agosto (DJ XI de Agosto), que completa cem anos, mas sobre minha rica experiência de ter sido estagiária de 1970 ao início de 1972, um pouco antes, um pouco depois.

Convivi com estagiários das turmas de 1969 a 1973. Esse período marcou para sempre minha vida, minhas lembranças e o início da vida profissional.

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O Departamento Jurídico “XI de Agosto” é uma instituição fundada em 1919 pelos estudantes da Faculdade de Direito do Largo São Francisco (Fadusp)

O DJ XI de agosto não é só um aprendizado de advocacia, mas uma oportunidade para ouvir e atender os assistidos, pessoas carentes, vulneráveis e hipossuficientes não só do ponto de vista de recursos financeiros. Nossos assistidos necessitavam de tudo. Queriam ser ouvidos e tratados como pessoas, isto é, com dignidade, palavra e conceito pouco empregados na época.

Os problemas jurídicos eram imensos e muito variados. Tive um choque de realidade diante da pobreza material, educacional, cultural e com o sofrimento. Marcante experiência de vida. Aprendi a trabalhar “em colmeia” e era um bálsamo poder dividir com os colegas a angústia de não poder resolver os problemas do assistido, apesar dos esforços de buscar a melhor forma de auxiliá-lo.

O atendimento jurídico centrava-se em Direito de Família, Direito de Sucessões, contrato de locação – quantos despejos por falta de pagamento e defesas em ações ordinárias de retomada de imóvel ! – problemas de pequenas compras, que hoje seriam de Direito  do Consumidor.

Também havia o setor penal,  com grande empenho dos estagiários para atender as mães e pais de presidiários, na maioria em grande  desespero. O colega Júlio dos Santos Oliveira Júnior já brilhava desde então. O setor trabalhista atendia às pessoas que buscavam não só os direitos não pagos, como o próprio reconhecimento de vínculo. Vasco Pellacani Neto já despontava como grande advogado.

No setor cível, no qual atuei, os litígios mais emocionantes eram os da separação judicial com muitas discussões de violação de deveres conjugais, com as intermináveis discussões de culpa. Eram os assistidos que mais demoravam na mesa do estagiário. Logo percebi que eles esperavam de nós conselhos conjugais (éramos todos solteiros!), apoio psicológico e espiritual. Alguns assistidos nos visitavam sempre e com eles formamos um vínculo afetivo.

Lembro-me do sr. Oswaldo G. -que custava tanto a ir embora-, do sr. Gorizio  S. – que faleceu durante o processo, o que me causou grande choque–, de relato de incesto e de inseminação artificial, técnica  muito estranha para a época e do artista plástico italiano Bruno I., de inequívoca beleza ( provocando suspiros de muitas colegas) e de sua esposa que só chorava com o pedido de separação.  Certamente, cada um de nós tem muitas histórias e estórias para contar.

A inteligência, paciência, simpatia radiante, cultura e bom humor de nosso orientador Miguel Aldrovando Aith a todos encantava. Orientava com grande segurança explicando –e às vezes ditando- a linha de defesa. Ficávamos em fila aguardando a orientação, mas aproveitávamos as lições do mestre.

Paulo Gerab substituiu Miguel também com grande competência e charme inequívocos. Fui colega da incomparável e carismática   Alice Soares Ferreira, excelente criminalista que depois passou a ser orientadora. Também colega dos ex-deputados Airton Soares e Marco Aurélio Ribeiro, ex-presidente do C.A. XI de Agosto. Nomeio alguns dos colegas a quem fiz dedicatória no livro “Do nome da mulher casada: Direito de família e Direitos da personalidade”. Agradeci aos colegas “com quem dividi muitos sonhos, emoções, incertezas e o início do longo caminhar na advocacia”. [1]

A convivência foi tão marcante que conservo até hoje, entre os melhores amigos, colegas do DJ XI de Agosto do qual fui Estagiária, Diretora de biblioteca e Presidente da Associação Amigos do DJ. 

Ali exerci meu grande interesse por livros tendo conseguido doação da biblioteca do advogado Rodolfo de Lara Campos. 

Os estagiários da época hão de se lembrar que atendíamos com a mesma atenção os clientes com os objetivos os mais estranhos, como a inesquecível dona Zenaide que se intitulava “Dona da Light”  e presidente do Brasil, embora   ambos os cargos lhe tivessem sido  usurpados, os quais  queria recuperar.

E a Maria da Penha que nos visitava sempre, cada vez com uma diferente questão. É certo que ela também vinha procurar seu noivo fictício, inventado pelo orientador Miguel  Aith, e brigava com as estagiárias, entre as quais me incluo,  que seriam suas  rivais.  Não se pode dizer que o Estágio do D.J. fosse só um partilhar de preocupações e de angústias, pois tínhamos a beleza e a alegria da juventude.

Merece menção episódio protagonizado pelo renomado e combativo advogado de presos políticos. Dr. Raimundo Pascoal Barbosa. Conheci-o como representante da locadora de pequeno e humilde imóvel onde se instalara um então denominado “aparelho”.

O cliente do dr. Raimundo fora preso e a do D.J. Dona Joana, queria recuperar a posse do imóvel, questão complexa pois envolvia a polícia. Ao contrário da maioria dos advogados de partes contrárias, que não prestavam o devido respeito aos estagiários, o nobre advogado, com grande sensibilidade, de pronto me chamou de “doutora” e me tratou como colega.

Pela primeira vez assim fui considerada, fato inesquecível que, muitos anos depois, já professora de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – Fadusp, mencionei publicamente em evento da OAB-SP do qual ele  era conselheiro. Tanto eu como ele ficamos emocionados. E ainda hoje assim me sinto nesse relato.

Quando terminei o Estágio senti uma sensação da qual hoje só posso rir e atribuir à ingenuidade de uma jovem: pensei que sabia muito.

De outro ponto de vista foi muito bom esse sentimento: a confiança que adquiri graças ao Estágio profissional e de vida que tive o grande privilégio de  fazer.

Agradeço aos colegas por partilharem alguns dos melhores momentos em tempos vividos na sempre e nova Academia.

Serviços prestados à comunidade e a nós mesmos como exercício de solidariedade e de crescimento como pessoa digna.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

 


[1] Adalberto Montes, Adherbal dos Santos Acquati, Afonso Celso de Andrade Marques, Airton  E. Soares (Diretor), Alice Soares Ferreira, Anabel Batistucci, Ana Maria Guerreiro Mendes, André Ismar Garcia Ballestero (Diretor),  Maria Antonieta Fortino, Antonio Vilenilson Vilar Feitosa, Armando Carezatto Sobrinho, Cláudio Tucunduva, Dayse Cajuela Caldeira, Dulce Guerreiro Neto, Durval Tadeu Guimarães, Edgard Jorge Lauand, Elsie Maria Arruda Penteado, Elvira Cecília Schmidt, Elza Maria Cunha Berriel, Francisco Ramos, Gilvan Vieira do Nascimento, Jane Monachesi, José Gaspar de Moura Ferreira,  José Maria Barbizan, José Waldir Martin, Júlio dos Santos Oliveira Júnior (Diretor), Helena Barbosa dos Santos, Lílian Ribeiro, Lino  Duarte Ribeiro Batista, Lúcia Algarte Jeremias, Lucy Toledo das Dores, Luiz Alberto de Almeida, Luiz Carlos Bissoli, Marcos Aurélio Ribeiro, Maria Elago, Maria Gomes Branco, Maria Tereza Marchetti, Maria Lúcia Falleiros Moraes Alves, Mário Luiz Pereira Carreira Miguel, Miguel Aldrovando Aith (orientador), Milton Isabel da Silva, Nadir Vidal de Mattos, Naíde Azevedo de Almeida, Nelson José de Freitas, Neuza de Araújo Toffoli, Olga Ana de Castro, Olga Maria Pletisch, Paulo D’Elia Paulo Gerab (orientador), Raquel Camargo Pupo, Romeu Candeloro, Rui Carlos Machado Alvim, Sônia Müller, Valério Drago, Vasco Pellacani Neto, Vera Galvão Moraes e Vilma Barros Di Lallo.

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