Embargos Culturais

O rei egípcio que perdoou o ladrão ou a lógica perversa da malandragem

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

8 de setembro de 2019, 8h00

O historiador grego Heródoto (século V a.C.) registrou em seu memorável livro muitas narrativas que colheu em viagens que teria realizado, em várias regiões que se relacionavam com a Grécia. Ao que consta, esteve no Egito. Entre as várias e interessantes estórias que colheu tem-se um pequeno excerto, que trata de um rei, Rampsinitos, que de algum modo pode ser identificado como um dos primeiros exemplares do gênero conto[1].

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Essa interessante narrativa, que nos lembra um conto policial, no entanto, resolve a tensão com um desfecho que nos sugere uma base cultural questionável para valores éticos que hoje de algum modo compartilhamos, ou deveríamos compartilhar. Ainda que não se pretenda sustentar a universalidade e a transcendência de valores éticos, porque a ética também pode ser datada e localizada, o conto do rei Rampsinitos alicerça uma triste noção de que o ilícito compensaria. Esse substrato cultural pode ser o fundamento inconsciente do que se compreenderia como um indicativo de corrupção endêmica.

No conto, o rei, Rampsinitos, é descrito como um opulento faraó, cuja riqueza jamais foi suplantada por seus sucessores. Pensou em conservar os bens que possuía em um local seguro, que jamais seria alcançado por ladrões. E malandros no Egito havia em grande número. Um pedreiro-arquiteto de confiança lhe construiu um ambiente, em forma de gabinete de pedra talhada, junto aos limites de seu suntuoso palácio. De difícil acesso, o local era vedado por portas de pedra, cuja remoção dependia de muita engenhosidade. O tesouro do rei ali estaria a salvo da cobiça dos ladrões.

O pedreiro-arquiteto, pressentindo a própria morte, contou aos filhos os segredos para que tivessem acesso ao tesouro. Enganou ao rei. Os filhos do pedreiro-arquiteto, após a morte do pai, correram para o gabinete de pedra talhada. Seguindo os conselhos do pai, conseguiram entrar no esconderijo. Começaram a levar as riquezas que lá havia, paulatinamente.

O rei, na primeira visita de conferência que fez ao recinto onde estava o tesouro, percebeu o que ocorria. Ficou espantado. Não sabia a quem acusar, e precisa encontrar quem estava lhe roubando. Organizou uma emboscada. Instalou uma armadilha. Iria pegar os ladrões.

Quando entravam no gabinete um dos irmãos caiu preso na arapuca. Desesperado, sugeriu ao irmão que lhe cortasse a cabeça, porque assim o rei não conseguiria identificar os desonestos. O irmão ainda ileso decepou o irmão, correu para casa, explicando a mãe o que acontecera. Quando o rei pela manhã entrou no recinto ficou mais espantado ainda. Havia apenas um corpo, sem cabeça, que não conseguiria identificar. Como fazer? Determinou que o corpo fosse pendurado em algum ponto da cidade. Deixou alguns guardas no lugar, ordenando que prendessem quem chorasse pelos restos do embusteiro. Chegaria até o responsável.

A viúva do pedreiro-arquiteto, e mãe dos irmãos ladrões, insistia em ver o corpo do filho que morreu. A mãe sentia muita dor pela perda do filho. Queria enterrá-lo. O sobrevivente então preparou um outro ardil. Carregou uma carroça com vários barris de vinho. Ao passar pelo local onde o resto do corpo do irmão estava pendurado, deixou que os tonéis caíssem no chão. Iludindo os guardas, que se ocuparam com o vinho, pode agir rapidamente. Enquanto os guardas bebiam, o impostor, com muita cautela, resgatou o corpo do irmão morto. Agradou a mãe.

Informado de que o corpo do ladrão fora roubado, o rei adotou uma outra estratégia. Avisou aos habitantes do reino que entregaria a mão de sua filha a quem se apresentasse no palácio e cumprisse duas condições. O interessado deveria explicar à herdeira do trono o que de melhor e o que de pior havia feito em vida. A filha escolheria entre os pretendentes. O pai determinou que sua filha chamasse os guardas assim que alguém confessasse o furto. Esse plano seria perfeito.

O irmão sobrevivente apresentou-se à princesa. Revelou que o de pior fez foi furtar uma parte do tesouro do rei. Acrescentou que o de melhor fez fora justamente resgatar o corpo do irmão. A princesa apressou-se para segurar o rapaz para em seguida chamar os guardas. O impostor havia cortado o braço de um morto. Entregou essa mórbida relíquia para a princesa, que pensava segurar a mão do ladrão. Conseguiu fugir.

O rei, impressionado com a astúcia do salteador, anunciou que o receberia, que o perdoaria e que ele seria doravante considerado membro da família real. O ladrão acreditou na promessa, uma obrigação unilateral, diríamos hoje. Foi recebido no palácio, com o respeito do rei, que levou em conta a inteligência e a astúcia do rapaz.

Trata-se de uma narrativa encantadora, rápida, na qual, de forma surpreendente, o mal triunfa. O rei reconheceu na malícia e na falta de lisura do filho do pedreiro-arquiteto um valor que julgou digno de consideração e homenagem. Desconcertante.

No conto de Rampsinitos prestigiou-se exemplo de duvidosa categoria moral. Tem-se a impressão de que, por vezes, a cultura assenta-se em uma ética duvidosa. Absorvida por uma consciência coletiva, a subversão de valores indicaria um padrão. Realizou-se a lógica daquele famoso politicólogo florentino para quem os fins justificariam os meios. É o combate a essa lógica que se exige como condição para a reconstrução de nosso conjunto de valores.

 


[1] O conto de Rampsinitos está traduzido em FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda e RÓNAI, Paulo, Mar de Histórias, Antologia dos Contos Mundiais, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

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