Opinião

O duplipensamento na Advocacia-Geral da União

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7 de setembro de 2019, 6h23

Neste ano, são celebrados os setenta anos de publicação do livro 1984, obra-prima de George Orwell. Não se pretende aqui comentar toda a distopia traçada pelo renomado autor britânico, nem sua evidente colaboração para o estudo da natureza humana, sob os prismas antropológico, sociológico, político e psicológico. Neste artigo, objetiva-se somente aplicar alguns conceitos da referida obra à Administração Pública brasileira, com suas centenas de órgãos e cargos públicos, os quais ainda se mostram impermeáveis aos modernos conceitos gerenciais.

Recentemente, a Secretaria de Gestão e Desempenho de Pessoal do Ministério da Economia remeteu o Ofício Circular SEI nº 2/2019/CGCAR/DESEN/SGP/SEDGG-ME[1], aos “Dirigentes de Gestão de Pessoas dos órgãos e entidades integrantes do Sistema de Pessoal Civil da Administração Federal – SIPEC”. O aludido expediente ressalta que: “o Governo federal vivencia intensa crise econômica e financeira e, consequentemente, não dispõe de recursos orçamentários que o habilite a propor iniciativas que impactem as contas públicas”.

Dentre os pontos destacados no referido ofício, está a existência de “aproximadamente três mil cargos distintos entre centenas de planos e carreiras existentes, cujas amplitudes salariais e regras de desenvolvimento não condizem com as características das atividades atuais ou da realidade da Administração Pública”. Sim, há cerca de “três mil cargos distintos” no Poder Executivo Federal, o que torna urgente “a redução ou unificação das carreiras ou cargos existentes”.

Somente na Advocacia-Geral da União, há 04 (quatro) carreiras “para desempenhar a mesma função de advocacia pública”[2], quais sejam: Advogado da União, Procurador da Fazenda Nacional, Procurador Federal e Procurador do Banco Central do Brasil. Esse cenário gera graves consequências jurídicas[3], gerenciais[4], psicossociológicas[5] e psicopolíticas[6], as quais já pude demonstrar noutros artigos doutrinários.

Analisando o citado ofício do Ministério da Economia, vê-se que o Governo Federal pretende atacar questões que, notoriamente, são identificáveis na Advocacia-Geral da União. Nesse contexto, podemos destacar a “baixa possibilidade de movimentação de servidores”, “as dificuldades na gestão de cargos e carreiras”, a “dificuldade de conciliar gestão de pessoas e estrutura da Administração Pública Federal” e os “cargos com atribuições muito específicas, o que gera rigidez e inviabiliza o aproveitamento eficiente de pessoal”.

Muitos alegam que a AGU proporciona economia e arrecadação bilionárias para os cofres públicos. Isso é verdadeiro, sendo decorrência dos esforços diuturnos dos membros da Advocacia Pública Federal. Ocorre que, infelizmente, o Estado brasileiro acumula tantos problemas estruturais que seu maior desafio é reduzir despesas. Este é um imperativo não somente econômico e gerencial, mas também jurídico, decorrente da Emenda Constitucional nº 95, de 2016, que impôs severos limites para as despesas primárias de cada um dos Poderes da República.

Em suma, não adianta cada órgão público divulgar sua relevância para a sociedade brasileira, ou ainda invocar economias ou arrecadações para o erário. Indo além, é preciso respeitar o Novo Regime Fiscal instituído pela Emenda Constitucional nº 95, de 2016, por meio da racionalização das despesas públicas e de adequações na estrutura de pessoal.

Tudo isso é de conhecimento de qualquer gestor público; tudo isso é de conhecimento de cada membro da Advocacia-Geral da União. Então, por que essa relevante instituição não propõe logo a unificação de suas carreiras jurídicas, alcançando os objetivos traçados pelo Governo Federal?

Uma única expressão pode responder a esse questionamento. Trata-se do termo “duplipensamento”, um neologismo criado por George Orwell na obra 1984, significando a “capacidade de abrigar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias e acreditar em ambas”.[7] Há duplipensamento quando alguém costuma “recorrer à lógica para questionar a lógica”, ou ainda “esquecer tudo o que fosse preciso esquecer, depois reinstalar o esquecido na memória no momento em que ele se mostrasse necessário”.[8]

Atualmente, as carreiras da AGU são assim divididas:

  • a maioria dos Advogados da União e Procuradores da Fazenda Nacional se consideram os legítimos “membros” da instituição, numa leitura restritiva do art. 2º, § 5º, da Lei Complementar nº 73, de 1993;
  • os referidos profissionais tratam os Procuradores Federais e Procuradores do Banco Central do Brasil como meros integrantes de órgãos “vinculados” à Advocacia-Geral da União, numa interpretação literal (e desatualizada) do art. 2º, § 3º, da Lei Complementar nº 73, de 1993.

Eis por que, decorridos vários meses da atual gestão da AGU, não se viu uma só mensagem pública de apoio ao Projeto de Lei Complementar nº 337/2017, que tramita na Câmara dos Deputados. Esse projeto foi encaminhado pelo próprio Poder Executivo, objetivando inserir expressamente a Procuradoria-Geral Federal e a Procuradoria-Geral do Banco Central do Brasil no âmbito Advocacia-Geral da União. Ou seja, atualmente a PGF e a PGBACEN continuam sendo tratadas como meros órgãos “vinculados” à AGU, embora os respectivos Procuradores promovam economias e arrecadações bilionárias para o Poder Público.

Na prática, o que se vê é uma forma de duplipensamento por parte de vários “membros” da Advocacia-Geral da União, nos seguintes moldes:

  • ora tratam a PGF e a PGBACEN como simples órgãos “vinculados”, para acentuar a atual divisão de carreiras na AGU;
  • por outro lado, quando se trata de atuações relevantes e que podem trazer visibilidade institucional, esses mesmos “membros” da AGU fazem questão de divulgar o trabalho da Procuradoria-Geral Federal e da Procuradoria-Geral do Banco Central do Brasil, como sendo realizações da própria Advocacia-Geral da União.[9]

Portanto, empregando a terminologia de Orwell, observamos “membros” da AGU defendendo “duas opiniões que se anulam uma à outra, sabendo que são contraditórias e acreditando nas duas”.[10] Nesse cenário, caso o Governo Federal deseje realmente alcançar “o equilíbrio fiscal e controlar os gastos públicos”, fomentando a “unificação das carreiras”, deverá fazê-lo sem idealismos. Com efeito, há muitos interesses a serem enfrentados, pois toda estrutura reflete um mecanismo de poder.

Ao examinar as tantas “contradições” do Estado brasileiro, George Orwell certamente diria que elas “não são acidentais e não resultam da mera hipocrisia: são exercícios deliberados de duplipensamento”. Afinal, há gestores públicos defendendo a existência de tantos cargos e tantas carreiras, às vezes com argumentos contraditórios, movidos por um único objetivo: “exercer o poder de modo indefinido”.[11]


[1] Disponível em: <https://legis.sigepe.planejamento.gov.br/legis/detalhar/17105>. Acesso em 29 ago. 2019.

[2] MACEDO, Rommel. A divisão de carreiras e as conquistas da AGU em seus 25 anos. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-mar-10/rommel-macedo-divisao-carreiras-conquistas-agu-25-anos>. Acesso em 29 ago. 2019.

[3] MACEDO, Rommel. A unificação de carreiras da Advocacia Pública Federal: aspectos jurídicos e gerenciais. In: CASTRO, AldemarioAraujo; MACEDO, Rommel (Org.). Advocacia Pública Federal: afirmação como função essencial à justiça. Brasília: OAB, 2016. p. 337-378. Disponível em: <http://www.oab.org.br/visualizador?url=/publicacoes/download?LivroId=0000003563>. Acesso em 29 ago. 2019.

[4] MACEDO, Rommel. Advocacia Pública Federal: mais eficiência e menos corporativismo. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-dez-12/rommel-macedo-advocacia-publica-eficiencia-corporativismo>. Acesso em 29 ago. 2019.

[5] MACEDO, Rommel. Uma abordagem psicossociológica da Advocacia-Geral da União. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-fev-25/rommel-macedo-abordagem-psicossociologica-daadvocacia-geral-uniao>. Acesso em 29 ago. 2019.

[6] MACEDO, Rommel. A psicopolítica no gerenciamento da Advocacia-Geral da União. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-abr-04/rommel-macedo-psicopolitica-gerenciamento-agu>. Acesso em 29 ago. 2019.

[7] ORWELL, George. 1984. Trad. Alexander Hubner, Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 38. reimp. p. 252.

[8] Ibidem, p. 48.

[9] A título de exemplo, leia-se a seguinte notícia veiculada no sítio eletrônico da AGU: <https://www.agu.gov.br/page/content/detail/id_conteudo/796618>. Na matéria, os Procuradores Federais integrantes da Força-Tarefa Infraestrutura são tratados como “membros da AGU”.

[10] ORWELL, George. 1984. Trad. Alexander Hubner, Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 38. reimp. p. 48.

[11] Ibidem, p. 254.

Autores

  • é advogado da União e mestre em Direito. Foi conselheiro seccional e presidente da Comissão da Advocacia Pública e do Advogado Empregado da OAB-DF (2010-2012), coordenador científico da pós-graduação lato sensu em Advocacia Pública na Escola Superior de Advocacia do Distrito Federal, coordenador-geral substituto de Processos Judiciais e Disciplinares da Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Justiça, coordenador-geral de Análise de Licitações e Contratos da Consultoria Jurídica junto ao Ministério do Trabalho e Emprego e coordenador jurídico de Licitações e Contratos da Consultoria Jurídica junto ao Ministério das Comunicações.

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