Opinião

Crimes eleitorais e conexos: o que o STF disse e o que o TSE não pode dizer

Autores

  • Artur Barros Freitas Osti

    é mestrando em Direito pela Universidade Federal do Estado de Mato Grosso (UFMT) pós-graduado em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e advogado.

  • Rodrigo Terra Cyrineu

    é advogado escritor professor mestre em Direito Constitucional (IDP) membro-fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep) e membro da Comissão Especial de Direito Eleitoral do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

7 de setembro de 2019, 6h54

Na data de 13 de março de 2019, o Plenário do Supremo Tribunal Federal confirmou a sua jurisprudência — que, vale o registro, estava sendo fielmente observada pelo Superior Tribunal de Justiça — no sentido da competência da Justiça Eleitoral para processar e julgar crimes comuns que apresentem conexão com crimes eleitorais. Na mesma oportunidade, o colegiado maior também assentou que compete à Justiça Especializada analisar, de acordo com o caso concreto, a eventual existência de conexão probatória entre os crimes eleitorais e os crimes comuns.

Ao proferir o voto condutor no julgamento do Inq 4435, fazendo uma análise sistêmica do que dispõe o artigo 121 da Constituição Federal; artigo 35, inciso II, do Código Eleitoral; e artigo 78, inciso IV, do Código de Processo Penal, o Min. Marco Aurélio rechaçou a possibilidade de cisão dos processos conexos, fazendo prevalecer a regra da unidade de julgamento, nos termos do que dispõe o artigo 79 do Código de Processo Penal.

Vale o registro de que, embora a decisão tenha sido tomada por apertada maioria, assim como os momentos que antecederam o supramencionado julgamento tenham sido tomados por certa trepidação causada por determinado setor da justiça criminal, os votos que acompanharam a posição tomada pelo Relator destacaram que, em verdade, a solução da matéria não apresentava maiores divergências quando analisada à luz da jurisprudência da própria Suprema Corte, a tomar como precedente paradigmático o Conflito de Competência 7.033/SP, de Relatoria do Min. Sydney Sanches, decidido já nos idos de 1996.

Desde então, a partir de uma leitura conjunta da decisão da limitação do foro por prerrogativa de função (AP 937) com o decidido acerca da competência da Justiça Eleitoral para processar e julgar crimes comuns que apresentem conexão com crimes eleitorais, a Suprema Corte vem declinando do processamento de diversos inquéritos (ex vi INQ 4445).

Dada a relevância da reafirmação do precedente por parte do Pretório Excelso – ante a afetação de um dos núcleos fundantes da própria jurisdição, qual seja, a competência jurisdicional –, a Presidência do Tribunal Superior Eleitoral editou a Portaria 231/2019 que instituiu GT (Grupo de Trabalho) para a propositura de Resolução pelo Tribunal Superior Eleitoral.

Limites da competência regulamentar da Justiça Eleitoral

Como corolário lógico de sua função de administrador das eleições, no que inerente a função regulamentar, o Tribunal Superior Eleitoral, antes mesmo da publicação, pelo STF, do acórdão do julgamento em análise, instituiu, via Portaria nº. 231/2019, Grupo de Trabalho cujo objetivo é o de “[i]mediata implementação da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Inquérito (INQ) 4435-DF, com vistas a manter a efetividade da prestação jurisdicional eleitoral”.

Encaminhada à Presidência do TSE a proposta de resolução do referido GT, nos chama à atenção a previsão encontradiça no caput do artigo 3º da proposta, vazada nos seguintes termos – verbis: “As zonas eleitorais especializadas receberão os feitos novos, bem como aqueles em andamento, excluídos aqueles cuja instrução já tenha sido encerrada ou que já tenham sido julgados, considerando-se válidas as decisões e medidas adotadas pelo juízo em que o processo tramitava antes da redistribuição” (grifo nosso).

A redação pode levar a compreensões que transbordam os limites do que decidido pelo Pretório Excelso e, mais, do próprio poder regulamentar do Tribunal Superior Eleitoral.

No que diz respeito à decisão da Excelsa Corte, é de se dizer, pela ótica da ilustrada maioria (corrente majoritária), não se inovou naquela assentada, haja vista que o Supremo Tribunal Federal sempre teve o mesmo entendimento a respeito do tema. Aliás, como destacada no minudente voto-vogal do Min. Gilmar Mendes, há uma linha normativa que remonta pelo menos à Constituição Federal de 1934 — nas palavras de Sua Excelência, uma “continuidade normativa insofismável”.

Portanto, sob o ponto de vista dos efeitos da decisão, é injustificável a existência dessa parte final destacada na proposta do GT, dada a inexistência de razões para eventual modulação dos efeitos do pronunciamento da Corte de Vértice[1], pois, repita-se uma vez mais, observou-se uma inequívoca continuidade da cadeia de decisões referentes à matéria, sem variações e contradições jurisprudenciais.

Por outro lado, não nos parece possível ao Tribunal Superior Eleitoral, dadas as limitações de ordem constitucional e legal, regulamentar a matéria da forma como proposta.

É que a Constituição Federal reservou à União, no que representada pelo Congresso Nacional, disciplinar os temas de direito eleitoral, penal e processual (CF, art. 22, inciso I), existindo aí, inequivocamente, impeditivo consistente na reserva de lei, no todo aplicável à seara eleitoral e suas resoluções, como bem registra, por todos, José Jairo Gomes[2].

Parece-nos, portanto, que o tema não comportaria previsão na Resolução que se propõe a redesenhar as Zonas Eleitorais em razão da especialidade temática, pois, da forma como redigido, extrapolou os limites meramente regulamentares[3], próprios da função administrativa da Justiça Eleitoral[4], e avançou para o campo da processualística, próprio do legislador federal.

Daí que, sob a perspectiva regulamentar, o TSE corre o risco de se exceder[5], como já se excedeu, por exemplo, com o artigo 8º da Resolução nº. 23.396/2013 que pretendia suprimir do Ministério Público Eleitoral a prerrogativa para a determinação de instauração de inquérito para a apuração de crime nas eleições de 2014, o que ensejou a concessão de medida liminar na ADI 5.140.

O excesso regulamentar
Da leitura da Proposta de Resolução submetida à Presidência do TSE, especialmente do que se contem no seu artigo 3º, extrai-se que referido comando também abarca o recebimento, por parte das Varas Especializadas, daqueles processos já em andamento, ou seja, que eventualmente possam ter sido alvo de declínio de competência em favor da Justiça Eleitoral e não exatamente no seu âmbito interno.

A exemplo da decisão – inicial e propositalmente mencionada – proferida no Inq 4445, por mais paradoxal que possa parecer, ocorrem casos em que o Juízo acaba por exercer sua competência apenas para afirmar justamente sua incompetência jurisdicional[6] para processar e julgar feito que foi submetido ao seu crivo através das regras ordinárias de distribuição.

Note-se, portanto, que nessas hipóteses abarcadas pela previsão de redistribuição de feitos já em andamento proposta pelo GT da Presidência do TSE, o que se opera não é mera redistribuição interna no âmbito da Justiça Eleitoral decorrente da criação de Vara Especializada, mas sim, declínio de competência realizado por Juiz absolutamente incompetente em decorrência da especialização da matéria.

Ao contrário do que propõe o GT quanto à validade automática das decisões do Juízo que até então se julgava competente, o Código de Processo Penal, aplicável à matéria por força do disposto no artigo 364 do Código Eleitoral, dispõe que a incompetência do Juízo anulará os atos decisórios já praticados, especialmente porque se trata de nulidade absoluta que sequer demanda demonstração de prejuízo, ante a violação frontal à garantia do Juiz Natural.[7]

Eis o receio de excesso do poder regulamentar da Justiça Eleitoral, na medida em que a automaticidade conferida na ratificação dos atos praticados pelo Juiz incompetente afronta diretamente aquilo que taxativamente dispõe a Lei Federal aplicável à espécie.

Nada obstante, a fidelidade acadêmica a que se dispõe esses breves escritos não nos permite deixar de mencionar que em precedente envolvendo o declínio de competência, tanto em razão da pessoa quanto em razão da matéria, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal admitiu a ratificação dos atos decisórios proferidos por Juízo incompetente, aplicando ao caso a chamada teoria do Juízo aparente (HC 110.496/RJ e HC 81.260-1/ES).

O distinguishing dos referidos precedentes com aqueles que acertadamente acompanham a regra geral imposta na norma processual penal, conforme expressamente deduzido na íntegra dos julgados, decorria da existência de peculiaridades que permitiam ao Juiz incompetente, de boa-fé, acreditar ser ele o competente para a tomadas das decisões que posteriormente poderiam ser ratificadas sem qualquer prejuízo pelo verdadeiro Juiz Natural da causa.

Não é, no mais das vezes, o caso do julgamento e processamento dos crimes comuns conexos aos crimes eleitorais! O que se percebe(ia) nestes casos, é(era) simples resistência de determinados atores da Justiça Comum em garantir a unidade de julgamento dos processos, sustentando a possibilidade de cisão dos feitos, o que, como já dito, foi rechaçado pelo Supremo Tribunal Federal por ocasião do julgamento do 4º AgRg no Inq 4435, ocasião em que se salientou que a orientação jurisprudencial nunca fora outra.

Desta forma, percebe-se que a automaticidade pretendida pelo GT do TSE na ratificação dos atos decisórios prolatados por Juiz incompetente não só excede o poder regulamentar da Justiça Eleitoral, como também viola frontalmente o que dispõe Lei Federal aplicável à matéria e, sobretudo, a própria garantia do Juiz Natural.

Conclusão
O Tribunal Superior Eleitoral possui uma função regulamentar singular no âmbito do desenho institucional brasileiro, assim lhe sendo garantida em razão da missão de administrar as eleições.

Ao lado dessa função regulamentar (denominada por alguns de função normativa), existe outra função regulamentar, já esta própria de todos os Tribunais, que é a de expedir normativas para melhor definir sua auto-organização.

Parece-nos, então, que, no tocante à subdivisão ou rearranjo das Zonas Eleitorais, o Tribunal Superior Eleitoral atua de maneira mais tímida do ponto de vista regulamentar, sobremodo porque caberá aos Tribunais Regionais Eleitorais, também no exercício de seu poder regulamentar decorrente da auto-organização constitucionalmente consagrada, a efetivação do desenho das Zonas Eleitorais, a partir da reconfiguração pensada a partir da decisão recente do Supremo Tribunal Federal.

Além disso, e não menos importante, a redação do artigo 3º, caput, parte final, da forma como sugerida na minuta de Resolução proposta pelo GT, parece conflitar gravemente com as normas processuais penais informadas pelo plexo de direitos fundamentais, a evidenciar excesso de poder regulamentar da Corte Superior Eleitoral em caso de sua aprovação.


[1] Fosse o contrário, a solução seria outra. É que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário nº. 630.733/DF, assentou a necessidade de modulação dos efeitos da decisão que “altera jurisprudência longamente adotada”. Em casos que tais, numa louvável postura institucional, reconheceram os membros da Alta Corte que: “fica evidente que o Tribunal não poderá fingir que sempre pensara dessa forma. Daí a necessidade de, em tais casos, fazer-se o ajuste do resultado, adotando-se técnica de decisão que, tanto quanto possível, traduza a mudança de valoração” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 630.733 Distrito Federal. Relator: Min. Gilmar Mendes, acórdão de 15 de maio de 2013. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=3957697. Acesso em: 11 jun. 2019).

[2](…) as Resoluções expedidas pelo TSE ostentam força de lei. Note-se, porém, que ter força de lei não é o mesmo que ser lei! O ter força, aí, significa gozar do mesmo prestígio, deter a mesma eficácia geral e abstrata atribuída às leis. Mas estas são hierarquicamente superiores às resoluções pretorianas. Impera no sistema pátrio o princípio da legalidade (CF, art. 5º, II), pelo que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 9ª ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 70).

[3] Aliás, calha registrar a atual redação do art. 105 da Lei nº. 9.504/1.997: “Até o dia 5 de março do ano da eleição, o Tribunal Superior Eleitoral, atendendo ao caráter regulamentar e sem restringir direitos ou estabelecer sanções distintas das previstas nesta Lei, poderá expedir todas as instruções necessárias para sua fiel execução, ouvidos, previamente, em audiência pública, os delegados ou representantes dos partidos políticos”.

[4] De forma extremamente feliz, Frederico Franco Alvim esboça algumas preocupações concernentes à função regulamentar da Justiça Eleitoral: “Malgrado desempenhem papel de relevo no aperfeiçoamento do processo eleitoral, as resoluções possuem atuação reduzida, uma vez que encontram as seguintes limitações: (a) limitação de caráter material: como possuem status de lei ordinária, não podem tratar de matérias que a Constituição reserva a lei complementar, como as referentes a inelegibilidades e organização da Justiça Eleitoral; (b) limitação de caráter lógico: consistente no fato de que, não obstante revistam-se de força de lei, seu caráter regulamentar não permite que possam contrariá-la; (c) limitação de caráter político: traduzido na proibição de que a Corte Superior, substitua a função acometida pela Constituição ao Poder Legislativo, sob pena de violação ao princípio republicano; e (d) limitação temporal: por terem de ser expedidas até o limite máximo de 5 de março do ano eleitoral” (In Curso de Direito Eleitoral. 2. ed., Curitiba: Juruá, 2016, p.70).

[5] “(…) não são raras as vezes em que o TSE exacerba os limites de sua função normativa” (ALVIM, Frederico Franco. op. cit., p. 70).

[6] Tratando sobre o assunto e fazendo uma breve abordagem sobre o princípio da kompetenz-kompetenz, Gustavo Badaró afirma que “A competência é um pressuposto processual subjetivo relativo ao juiz. O juiz é o primeiro a julgar sua própria competência. Todo órgão judiciário é juiz da própria competência (kompetenz-kompetenz). A aceitação da competência, em regra, se dá por um julgamento implícito. Aceitando a causa e nela passando a exercer a jurisdição, significa que o juiz se considerou competente. Normalmente, só haverá manifestação explícita no caso de juízo negativo, quando o juiz, expressamente, se declara incompetente, declinando os motivos e remetendo os autos para o juiz que ele considerar competente.” (In Processo Penal, 4 ed. – São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2018).

[7] Nesse sentido, Aury Lopes afirma que “a violação das regras de competência para matéria e pessoa, por ser absoluta, não se convalida jamais (não há preclusão ou prorrogação de competência) e pode ser reconhecida de ofício pelo juiz ou tribunal, em qualquer fase do processo.” (In Direito Processual Penal. 14 ed. – São Paulo : Saraiva, 2017. pg. 250)

Autores

  • Brave

    é advogado, pós-graduado em Direito Penal Econômico pelo IBCCRIM, pós-graduado em Direito Eleitoral e Improbidade Administrativa pela FESMP/MT, pós graduando em Direito Empresarial pela Universidade Candido Mendes.

  • Brave

    é advogado e membro-fundador da Abradep. Mestre em Direito Constitucional pelo IDP (Instituto de Direito Público) do Distrito Federal. Especialista em Direito Administrativo pela Fundação Escola Superior do Ministério Público de Mato Grosso; especialista Direito Constitucional pela Fundação Escola Superior do MP-MT e especialista Direito Eleitoral pela Fundação Escola Superior do MP-MT; especialista em Agronegócio pela Esalq-USP.

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