Opinião

Audiências de custódia: quando os fatos incomodam

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6 de setembro de 2019, 16h23

No dia 3/9, a ConJur publicou artigo de autoria da juíza Patrícia Álvares Cruz, coordenadora do Departamento de Inquéritos Policiais e corregedora da Polícia Judiciária da Capital de São Paulo, manifestando descontentamento com a pesquisa sobre as audiências de custódia realizada em nível nacional pelo IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) a partir de um termo de cooperação técnica com o CNJ (Conselho Nacional de Justiça).

Insurgiu-se sua Excelência contra a manchete de uma matéria publicada pelo portal sobre este assunto, que informava sobre o índice ínfimo de pessoas que receberam liberdade irrestrita nas audiências de custódia. Na sequência, a magistrada assumiu que o dado apresentado no título era explicado no corpo da reportagem, mas asseverou que “muitos leitores se informam exclusivamente pelas manchetes, sem dar atenção ao conteúdo dos artigos”.

Ocorre que, para a surpresa da juíza e de todos nós, apesar de vigorar o princípio constitucional da não culpabilidade e, portanto, a prisão cautelar ser a exceção e não a regra em nosso ordenamento, menos de 1% das pessoas que aportam nas audiências de custódia têm em seu favor a concessão de liberdade provisória sem a aplicação de qualquer medida cautelar.

Apesar dos equívocos e confusões cometidos pela juíza ao indicar os dados apresentados pela matéria da ConJur e pela pesquisa do IDDD (como por exemplo a errônea afirmação de que haveria inconsistência no índice de decretação de prisão preventiva em São Paulo, de 66,1%), os fatos são claros – e, por isso, tão incômodos. Mais de 99% das pessoas que passam pelas audiências de custódia supostamente preenchem os requisitos estritos da prisão preventiva, sendo que uma parte significativamente menor consegue voltar às ruas com medidas cautelares.

Não há desperdício em explicar, detalhadamente, o que estamos afirmando: as medidas cautelares deveriam servir para substituir a prisão preventiva, como forma de oferecer respostas mais adequadas – e com menor impacto social e econômico – a pessoas que seriam colocadas dentro do sistema prisional, e não a todas as outras que, por não se enquadrarem nos requisitos previstos pelo Código de Processo Penal para a decretação de prisão preventiva, já tinham o direito de responder ao processo em liberdade, sem qualquer tipo de controle estatal (sobretudo um controle generalizado e inadequado aos casos particulares, como vem sendo feito). Não há outra forma de definir essa situação: trata-se de uma expansão absolutamente inconstitucional do controle penal e isso é, sim, um escândalo.

O artigo vai além e dá pistas sobre o alarmante estado de coisas evidenciado pela pesquisa do IDDD. A juíza compara a imposição das medidas cautelares com o fornecimento de endereço e comprovação de renda a uma instituição financeira para obtenção de crédito — e frisa que isso não significa nenhum constrangimento. Assevera que os idosos devem fazer a comprovação de vida em um deslocamento “custoso e difícil” para concluir que as medidas cautelares não podem causar tamanho mal-estar.

A comparação é no mínimo esdrúxula. O exemplo apresentado pela magistrada trata de um requisito burocrático para o acesso a um direito. A imposição de medidas cautelares, no sentido oposto, significa a restrição do direito à liberdade e, portanto, deve ser feita com muito mais critério e em consonância com o princípio da presunção de inocência.

“As medidas cautelares […] nada mais são, na prática, do que instrumentos para a garantia do andamento do processo penal”, afirma a magistrada, em prova indiscutível da distorcida interpretação da Lei de Medidas Cautelares de 2011. É alarmante notar como a Magistratura ocupou-se de desvirtuar a norma e, pior, que o admita com tamanha naturalidade.

A juíza prossegue e afirma, para arrepio da razão, que os índices de criminalidade foram reduzidos na cidade de São Paulo em razão do aumento de pessoas presas preventivamente. Trata-se de uma falácia a serviço de uma política criminal retrógrada e ineficaz.

É curioso notar como a manifestação da magistrada apenas dá força à fotografia apresentada pela pesquisa. Demonstra uma percepção tragicamente equivocada – para não dizer ilegal – sobre a gravidade da imposição de prisão cautelar a um número indistinto de pessoas, além de uma falta absoluta de sensibilidade para os efeitos nefastos e tão evidentes dessa receita falida. Registre-se que a maioria dos presos provisórios estão recolhidos por delitos que não foram praticados com violência ou ameaça contra a pessoa.

A opinião da juíza simboliza o desapreço ao texto constitucional, que expressamente determina a prevalência da liberdade. Evidencia como a responsabilidade de garantir direitos foi relegada por parte da Magistratura, que sem qualquer cerimônia se transformou em agência penal de segurança pública. Demonstra desconhecimento profundo das causas sociais e desajustes da sociabilidade contemporânea que dão causa à pratica de crimes.

O texto confirma, por fim, que ainda vivemos em um Brasil que trata o custodiado como objeto do processo, e não como sujeito de direitos, a contrapelo da opção política do legislador constitucional. Reificou-se sem qualquer constrangimento uma parcela bem demarcada da população. E, nessa visão, essa parcela deve agradecer pela condescendência estatal por não ter sido jogada na masmorra eufemisticamente denominada sistema penitenciário.

As afirmações de Patrícia Álvares Cruz complementam e corroboram a pesquisa apresentada pelo IDDD. Suas palavras ilustraram o que não foi possível colher com os dados. O caminho rumo à civilização é realmente longo.

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