Interesse Público

Reforma da Previdência atinge a servidores estaduais, distritais e municipais

Autor

  • Paulo Modesto

    é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público membro do Ministério Público da Bahia da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e do Observatório da Jurisdição Constitucional da Bahia.

5 de setembro de 2019, 8h00

A reforma constitucional da Previdência não escapa a simplificações sem base jurídica objetiva. A mais nova é a afirmação segundo a qual os servidores estaduais, distritais e municipais estão ausentes da reforma. Teriam sido excluídos dela pela Câmara dos Deputados e em nada o atual texto da proposta de reforma repercutiria nos Estados, no Distrito Federal e nos Municípios sem uma atuação dos legisladores subnacionais após a aprovação da emenda constitucional. Essa afirmação é falsa, embora os órgãos de imprensa a tenham repetido ad nauseam nas últimas semanas. Esse equívoco pode ser uma incorreção completa (em alguns casos) ou um desacerto parcial em outros (ainda assim com múltiplas e preocupantes consequências).

Spacca
Estados, Municípios e Distrito Federal disciplinam hoje regimes próprios de Previdência Social (RPPS) exclusivamente para os agentes públicos titulares de cargos efetivos. Os empregados públicos, regidos predominantemente pelo regime trabalhista, e os servidores investidos exclusivamente em cargos em comissão vinculam-se ao regime geral da Previdência Social (RGPS), cuja disciplina normativa é privativa da União.

O RGPS disciplina a situação previdenciária dos trabalhadores da iniciativa privada em geral e de todos os servidores públicos não filiados a regimes próprios de Previdência social. O RGPS é gerido pela autarquia federal Instituto Nacional do Seguro Social – INSS (i). Portanto, as alterações no regime geral promovidas pela reforma da Previdência alcançarão logo após a sua promulgação todos os servidores estaduais, distritais e municipais em regime de emprego público e os investidos em cargos em comissão (espécie de cargo que, em alguns municípios, em razão do clientelismo, pode corresponder a um contingente expressivo e até dominante no quadro de pessoal)i Porém não apenas esses servidores são alcançados: tem sido frequente nos últimos anos – especialmente nos municípios – a extinção de regimes próprios de Previdência e a transferência de todos os servidores titulares de cargo público efetivo para o regime geral administrado pelo INSS. Trata-se de modalidade de fraude aos direitos dos servidores efetivos previstos no Art. 40 da Constituição Federal, que agora será reconhecida como legítima e com efeitos próprios por normas específicas da reforma constitucional da Previdência (Art. 40, §22, I, c/c Art. 34 da PEC).

Uma fraude vergonhosamente frequente, que reduz ano após ano o número de entidades federativas que possuem Regimes Próprios de Previdência Social. Atualmente, segundo a última informação disponível, apenas 2.123 entes federativos possuem RPPS, de um total de 5.598. Em outras palavras: nada menos do que 3.475 entes federativos não possuem regime próprio de previdência social e nada terão para legislar sobre o assunto após a promulgação da reforma da Previdência. Entre os 2.123 que ainda possuem regimes próprios inclui-se a União, os 26 Estados, o Distrito Federal e 2.095 Municípios. (ii)

Basta essa informação inicial para demonstrar que a afirmação segundo a qual os servidores estaduais, distritais e municipais estão fora da reforma da previdência é um evidente equívoco. Um completo equívoco para os entes federativos sem regime próprio de previdência social em três situações: (a) porque a unidade federativa extinguiu o regime próprio existente, (b) porque nunca o instituiu ou (c) porque após a reforma promoverá a sua extinção.

A reforma proíbe a criação de novos regimes próprios (Art. 40, §22, da PEC), mas não a extinção dos existentes, embora desde logo vede a “complementação” de benefícios previdenciários dos servidores estaduais, distritais e municipais que venham a sofrer essa ruptura de regime (Art. 37, §15, da PEC). Essa última vedação poderia vir a caracterizar abuso de direito e enriquecimento sem causa do ente federativo, mas enunciado constante do Art. 34, II, da PEC estabelece que, em caso de extinção de regime próprio, deve ser estabelecida em lei “previsão de mecanismo de ressarcimento ou de complementação de benefícios aos que tenham contribuído acima do limite máximo do Regime Geral de Previdência Social”.

Hoje há um número expressivo de entidades federativas sem regime próprio de previdência, mas quantos serão amanhã? A PEC da Reforma da Previdência abre todas as portas para a extinção de regimes próprios subnacionais, estabelecendo inclusive que a “existência de superavit atuarial não constitui óbice à extinção de regime próprio de previdência social e consequente migração para o Regime Geral de Previdência Social” (Art. 34, Parágrafo Único, da PEC 6/2019).

Mas há outro aspecto a destacar. Não será essa a única incidência da futura emenda no regime previdenciário dos Estados, Distrito Federal e Municípios. Mesmo para os Estados e Municípios que possuam e mantenham após a reforma os seus regimes próprios de previdência, há inúmeras normas da proposta de reforma que alcançarão os servidores estaduais, distritais e municipais efetivos, de forma direta ou indireta.

É fácil identificar cinco situações de alteração do sistema previdenciário estadual, distrital e municipal provocadas pela reforma em debate no Senado Federal:

1) PEC prevê normas que retiram da competência estadual questões previdenciárias tipicamente estaduais. Exemplos:
(a) Estados não poderão mais legislar sobre a inatividade e pensão das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares – a matéria passa a ser de competência privativa da União (Art. 22, XXI);
(b) lei complementar da federal definirá parâmetros para apuração da base de cálculo e definição de alíquotas de contribuições ordinárias e extraordinárias de Estados, Distrito Federal e Municípios (Art. 40, §22, X)
2) PEC estabelece diretamente novas limitações incidentes sobre servidores estaduais, distritais e municipais. Exemplos:
a) disciplina da readaptação, exigindo habilitação e nível de escolaridade compatíveis com novo cargo, mantida a remuneração do cargo de origem (Art. 37, §13);
b) estabelece ruptura do vínculo que sirva de suporte para utilização de tempo de contribuição para aposentar em outro cargo (Art.37,§14);
c) proíbe criação de novos regimes próprios (Art. 40, §22);
d) veda moratória e parcelamento em prazo superior a 60 meses e, na forma de lei complementar, a remissão e a anistia de contribuições sociais (Art. 195,§11);
e) declara nula a aposentadoria que tenha sido concedida ou venha a ser concedida por regime próprio com contagem de tempo do RGPS sem recolhimento da respectiva contribuição ou sua indenização pelo segurado obrigatório responsável (Art. 25, §3, da PEC) – norma explicitamente retroativa, violadora do direito adquirido, de normas transitórias anteriores e de mínimas exigências de segurança jurídica (talvez o enunciado mais chocante da PEC);
f) veda a incorporação de vantagens de caráter temporário ou vinculadas ao exercício de função de confiança ou de cargo em comissão à remuneração do cargo efetivo (Art. 39, § 9º);
g) revoga o art. 3º da Emenda Constitucional nº 47, de 2005 (embora com a ressalva do Art. 20,§4º, da Emenda, pois condiciona a revogação no âmbito do Estado, Distrito Federal e Municípios à aprovação da nova legislação interna em cada ente federativo).
3) PEC transfere da Constituição Federal para as Constituições Estaduais e leis orgânicas municipais parte diminuta do regime de previdência estadual e municipal. Exemplo:
a) fixar a idade mínima para a aposentadoria por idade e tempo de contribuição (embora esse tempo de contribuição seja definido em lei complementar do respectivo ente federativo) (Art. 40, §1º, I, II).
4) PEC transfere da Constituição Federal para lei complementar estadual e municipal diversas matérias.
Exemplos: a) fixar o tempo de contribuição mínimo para a aposentadoria por idade e o tempo de contribuição dos servidores públicos (Art. 40, III);
b) autorização para fixar idade e tempo de contribuição diferenciados para aposentadoria de servidores com deficiência (Art. 40, §4-A)
c) autorização para fixar idade e tempo de contribuição diferenciados para aposentadoria de agentes penitenciário, socioeducativo ou policial civil (não policiais militares ou bombeiros) – Art. 40, §4-B);
d) autorização para fixar idade e tempo de contribuição diferenciados para agente com efetiva exposição a agentes nocivos químicos, físicos e biológicos prejudiciais (Art. 40, §4-C);
e) autorização para fixar idade mínima reduzida em cinco anos para professores de magistério na educação infantil e no ensino fundamental e médio (Art. 40, §5º).
5) PEC transfere da Constituição Federal para lei ordinária estadual e municipal diversos temas sensíveis. Exemplos:
a) disciplina das avaliações periódicas obrigatórias do aposentado por incapacidade permanente (Art. 40, § 1º, I)
b) regras de cálculo de proventos (Art. 40, § 3º)
c) definição do valor e critério de valor do abono de permanência (Art. 40, § 19)
d) disciplina da regra de transição para os parlamentares estaduais e vereadores que fizerem opção de permanecer no antigo de previdência (Art. 14, § 14, da Emenda).

Esses tópicos são meramente exemplificativos. Outros poderiam ser também indicados.

Não é preciso muita atenção para perceber que a proposta de emenda em debate no Senado Federal, se aprovada, além de diretamente alterar a disciplina previdenciária dos servidores estaduais e municipais em regime de emprego público, dos ocupantes de cargos em comissão e dos titulares de cargo efetivo de regimes próprios extintos, alcançará também os servidores efetivos de regimes próprios dos entes federativos em vários aspectos antes da aprovação das normas ditas internas de cada Estado, do Distrito Federal e dos municípios. Para além disso, a proposta em debate desconstitucionaliza fração relevante do regime previdenciário próprio dos servidores estaduais, distritais e municipais, estabelecendo ainda incentivos para a completa extinção dos regimes próprios desses entes subnacionais.

Há servidores efetivos que comemoram essa desconstitucionalização, imaginando a conquista de alguns meses para a completa incidência do novo regime nos Estados, no Distrito Federal e nos Municípios. O preço desse atraso será a frágil ancoragem normativa desses regimes próprios, a extrema facilidade de alteração de suas regras básicas e até mesmo o risco de deixarem de existir a qualquer tempo, sem necessidade de alteração constitucional complexa.

Além da afetação direta, o impacto da futura Emenda sobre a previdência própria dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios será torná-los ainda mais inseguros e imprevisíveis do que o regime previdenciário dos titulares de cargos efetivos da União. No plano subnacional, a desconstitucionalização enunciada na PEC 6 sobre a disciplina dos regimes próprios de previdência caracteriza uma dupla desconstitucionalização. Não se elimina apenas parte relevante desse regime previdenciário próprio da Constituição Federal como também das Constituições estaduais e das leis orgânicas, pois apenas fração diminuta dessa disciplina é mantida no cimo das ordens jurídicas estaduais e municipais. A dupla desconstitucionalização significa, em termos práticos, uma degradação constitucional, e opera-se pelo reenvio expresso à legislação ordinária e complementar infraconstitucional dos principais contornos do direito à segurança social dos servidores efetivos estaduais, distritais e municipais.

Muitos ainda não compreenderam a gravidade desse cenário e dormem na quietude dos inocentes, embalados pela desinformação. Mas em termos de segurança jurídica, os servidores efetivos estaduais, municipais e distritais serão os mais atingidos pela atual proposta de reforma constitucional da previdência.

i Cf. MODESTO, Paulo. É possível superar o clientelismo na administração pública do Brasil? : argumentos jurídicos e sugestões para limitar a criação e o provimento abusivo de cargos públicos em comissão nos 30 anos da Constituição de 1988. In: Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, v. 16, n. 62, p. 9-55, jul./set. 2018; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella e MOTTA, Fabrício (org.). O direito administrativo nos 30 anos da Constituição. Belo Horizonte : Fórum, 2018, p. 283-316. Disponível online: https://www.academia.edu/37780364 [Acesso em 30/08/2019]

ii Esses dados foram divulgados em 20/06/2018 pela Secretaria de Previdência do Ministério da Fazenda. Na ocasião, por relatório, divulgou-se o Indicador de Situação Previdenciária dos RPPS (ISP- RPPS) de cada um dos 2.123 entes que possuem Regimes Próprios de Previdência Social. O resumo dos dados divulgados pode ser consultado em http://sa.previdencia.gov.br/site/2018/06/Indicador-de-Situacao-Previdenciaria-ISP-01-2018-Relatorio-2018061….pdf [Acesso em 30/08/2019]

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    é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público e membro do Ministério Público da Bahia e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia.

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