Opinião

CCJ do Senado deve rejeitar PL sobre conceito de propriedade rural produtiva

Autor

5 de setembro de 2019, 6h27

A Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado Federal aprovou, no último dia 20 de agosto, o Projeto de Lei do Senado (PLS) n. 107/2011, de autoria da Senadora Kátia Abreu (PDT-TO), atual membro da referida Comissão. Com isso, o projeto teve mais um passo cumprido para sua aprovação e segue para apreciação da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado.

A proposta da Senadora Kátia Abreu pretende modificar dispositivos da Lei n. 8.629/1993, com o intuito de “dispor sobre a fixação e o ajuste dos parâmetros, índices e indicadores de produtividade”. Os dispositivos que são alvo da proposta têm relação com o conceito de propriedade rural produtiva, previsto no art. 185, II, da Constituição Federal (CF), e com a regulamentação do art. 186 da CF, acerca da definição de função social da propriedade rural, com repercussão sobre os procedimentos de desapropriação para fins de reforma agrária.

A vigente redação do art. 6º da Lei n. 8.629/1993, que definiu a propriedade produtiva por meio de dois aspectos indissociáveis — graus de utilização da terra (GUT) e de eficiência na exploração (GEE) —, já não se coadunava com o regime constitucional de complexidade, pluralidade e heterogeneidade da propriedade rural produtiva.

O Texto Maior exige o aproveitamento adequado e racional do imóvel rural (art. 186, I), com respeito aos recursos naturais, preservação do meio ambiente (art. 186, II) e às relações de trabalho (art. 186, III), entre outros aspectos. A Carta aplica-se a diversos tipos de produção agrária (art. 187, §1º; 191, por exemplo), inclusive as atividades produtivas dos índios (art. 231, §1º) e do pequeno produtor rural (art. 5º, XXVI), que devem ser atendidos em diversos níveis[1].

A atual redação não só ignora essa complexidade decorrente do texto constitucional, como também foi menos rigorosa que o conceito de “empresa rural” do art. 22, III, do Decreto n. 84.685/1980, que, além daqueles índices (GUT e GEE), exigia o cumprimento integral da legislação que rege as relações de trabalho e os contratos de uso temporário da terra, bem como da função social da terra[2].

Ademais, é criticável a arbitrariedade do GUT, fixado em um patamar de 80% da relação percentual entre a área efetivamente utilizada e a área aproveitável total do imóvel rural. Por que não 75%, como em lei nicaraguense de reforma agrária (art. 6º, do Decreto n. 782, de 19 de julho de 1981)? Por que não os 30% do Estatuto Agrário paraguaio (art. 4º, da Lei n. 1.863, de 30 de janeiro de 2002)? Ou por que não 90% ou 15%? Parece não haver fundamento plausível para tanta variabilidade, o que repercute em certa flexibilização do requisito legal por algumas decisões judiciais[3].

De fato, há possibilidade concreta de que um imóvel rural cumpra com os índices de produtividade, atingindo o necessário grau de eficiência na exploração, sem que, contudo, utilize efetivamente 80% da área aproveitável[4]. Segundo o conceito legal, esse imóvel será considerado improdutivo — não obstante obtenha altos índices de produtividade —, simplesmente porque o proprietário está obrigado, pelo índice do GUT, a ocupar 80% da área aproveitável do imóvel. Ou seja, o GUT pode ser avesso à eficiência do aproveitamento dos meios de produção.

Na mesma linha, a vigente redação do art. 9º da Lei n. 8.629/1993 reproduz o art. 186 da CF e, nos seus parágrafos, fornece maiores detalhes sobre aquele dispositivo constitucional. Essa redação já apresentava problemas, por exemplo, ao definir o “aproveitamento racional e adequado” da propriedade como o mero alcance do GUT e GEE, restringindo o conceito de “racionalidade”, que, em outros países, é associado ao aproveitamento de recursos naturais e à sustentabilidade da produção[5], critérios muito mais rigorosos.

Portanto, as redações dos arts. 6º e 9º da Lei n. 8.629/1993 realmente não são as mais adequadas, pois desvirtuam as noções constitucionais de “propriedade produtiva” e “função social da propriedade rural”, na medida em que tornam simples e monolíticos os matizes que essas expressões recebem do texto constitucional.

Todavia, o PLS n. 107/2011 não resolve essa problemática, antes aprofunda o desvio legislativo.

O projeto propõe a alteração da definição de produtividade para significar apenas a exigência do GEE, passando o GUT a compor a definição de “aproveitamento racional e adequado”, ou seja, como componente da função social da propriedade rural. O projeto ainda propõe que os reajustes periódicos dos índices de produtividade sejam feitos por lei (não mais por ato infralegal). Em sua justificativa, a Senadora Kátia Abreu fundamenta-se na confusão feita pela Lei n. 8.629/1993 entre os conceitos de “propriedade produtiva” e de “aproveitamento racional e adequado”.

Não se discute aqui a inadequação do GUT, cujas incongruências são notórias, por ser um índice aleatório e, por vezes, injustificado. Porém, o “aproveitamento racional e adequado”, apesar de não se confundir com “propriedade produtiva”, tal qual a atual legislação dispõe, também não pode ser compreendido como algo mais restrito que esta.

Noutras palavras, o “aproveitamento racional e adequado” pode caracterizar uma propriedade produtiva ou não, e vice-versa. São conceitos diversos que poderiam ser integrados, com a exigência de que a propriedade produtiva também fosse aproveitada racional e adequadamente.

Considerar, como faz o Projeto de Lei comentado, que “aproveitamento racional e adequado” é o mesmo que efetivamente utilizar 80% da área aproveitável de um imóvel rural é um reducionismo inaceitável. A efetiva utilização de certa proporção da área total pode acontecer de forma racional e adequada, ou não. Conectar essas duas noções, como se sinônimas fossem, esvazia o conteúdo do texto constitucional e, portanto, incide em inconstitucionalidade.

Quanto à modificação da possibilidade de atualização dos índices de produtividade, visando a dificultar essa atualização, a proposta destoa até mesmo de objetivos de modernização e simplificação da regulação do setor agrário. Os atuais índices são baseados em dados de 1975 e, mesmo podendo ser atualizados por mera instrução normativa de uma autarquia federal, nunca o foram[6]. Dificultar esse processo contraria os objetivos de um desenvolvimento rural sustentável, que deve almejar não só maior produtividade como também melhoria qualitativa da produção.

O PLS já foi aprovado pela Comissão de Agricultura e Reforma Agrária e pela CAE do Senado. Houve parecer do Senador Paulo Rocha (PT-PA) contrário ao projeto no âmbito da última Comissão, o que manifestou não sem antes criticar o modelo vigente, em sentido semelhante ao aqui exposto: “De fato, a sistemática vigente, em total desarmonia com a recente evolução da agropecuária brasileira, privilegia a maior área plantada em detrimento da produtividade alcançada em virtude do uso de insumos e da aplicação de tecnologia. Ademais, não se pode conceber no âmbito da sustentabilidade que a ampliação da área explorada seja considerada isoladamente como parâmetro de desapropriação”[7].

É correto apontar equívocos na definição legal de “propriedade produtiva” (art. 6º da Lei n. 8.629/1993) e, mais intensamente, na problemática definição de “função social da propriedade rural” (art. 9º, da mesma Lei). Todavia, o PLS n. 107/2011 é inapto a solucionar esses problemas e suas proposições. Pelo contrário, suas modificações, se aprovadas, trarão incongruências ainda maiores à legislação agrária, quando não se caracterizarem por absoluta nulidade proveniente de sua inconstitucionalidade.

O caminho da modernização legislativa deve ser o de conferir maior complexidade à definição de propriedade produtiva, incorporando parâmetros contemporâneos, como a sustentabilidade da produção e a segurança alimentar. O projeto analisado é contrário a isso, pois visa a tornar mais simples a caracterização de uma propriedade como produtiva ou como cumpridora da função social, sem apontar qualquer critério científico ou mesmo outro tipo de parâmetro que preserve os avanços no setor e seu futuro desenvolvimento. O projeto privilegiará apenas o mau produtor agrário.

Desse modo, é recomendável que a CCJ do Senado rejeite esse projeto, sob o fundamento de que esvazia o conteúdo dos arts. 185, II, e 186, I, da CF, extrapolando os limites semânticos dos dispositivos constitucionais, com a restrição exacerbada de conceitos, tudo em prejuízo não só da política de reforma agrária como também da política agrária como um todo, considerada esta como orientadora da produção agrária do país.


[1] Desenvolvemos esse ponto com detalhes na obra: BASSO, Joaquim. Propriedade rural produtiva: contexto, atualidade e perspectivas sob a ótica jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.

[2] NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. Desapropriação para fins de reforma agrária. 3. ed. rev. atl. Curitiba: Juruá, 2006. p. 145-6.

[3] Por exemplo: TRF 1ª R. – Apelação Cível n. 0023533-12.2003.4.01.3300, da Terceira Turma. Rel. Des. Cândido Ribeiro. Brasília, 07 ago. 2012; e TRF 4ª R. – Apelação Cível n. 91.04.18586-2, da Terceira Turma. Rel. Des. Luiza Dias Cassales. Porto Alegre, 17 dez. 1998.

[4] MARQUESI, Roberto Wagner. Direitos reais agrários & função social. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2009. p. 110.

[5] Por exemplo: art. 66.2, “d”, da Constituição portuguesa; art. 164, da Ley de Desarrollo Rural Sustentable do México; art. 5º do Código Agrário do Panamá; art. 4º do Estatuto Agrário do Paraguai, entre outros.

[6] Desenvolvemos essa questão em: BASSO, Joaquim. Revisão de índices de produtividade agrária e a sustentabilidade no contexto do Direito Agrário contemporâneo. In: BENJAMIN, Antonio Herman et al. [Coords.]. Licenciamento, Ética e Sustentabilidade. São Paulo: 18º Congresso Brasileiro de Direito Ambiental, 2013. v. 2. p. 370-89.

[7] ROCHA, Paulo. Parecer do Relator designado pela Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal sobre o Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 107, de 2011. Brasília, 18 maio 2015. Disponível em: <www.senado.leg.br/atividade/rotinas/materia/getTexto.asp?t=165715&c=PDF&tp=1>. Acesso em: 26 ago. 2019. p. 4

Autores

  • Brave

    é mestre em Direito Agroambiental pela UFMT, especialista em Direito Ambiental pela UCDB, bacharel em Agronomia e advogado no escritório Cestari & Basso Advocacia.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!