Opinião

Arbitragem pode dirimir conflitos que envolvam governo de SP e suas autarquias

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4 de setembro de 2019, 6h21

O volume das demandas perante os diferentes tribunais do país é maior a cada novo ano, fato que contribui para o aumento dos métodos alternativos de resolução de conflitos.

Com efeito, a utilização da arbitragem no Brasil é crescente nos setores de infraestrutura, energia, marítimo e portuário, de onde surgem disputas envolvendo questões complexas e sofisticadas. Devido ao fato de muitas dessas controvérsias estarem atreladas à administração pública, doutrina e jurisprudência há tempo já sinalizavam no sentido de inexistir óbice legal na estipulação da arbitragem pelo poder público, reconhecendo como válidas cláusulas compromissórias previstas nos contratos e editais de licitação por este.

Nesse sentido, diversas leis esparsas[1] foram publicadas prevendo expressamente – ainda que de forma pontual – a possibilidade da utilização da arbitragem para dirimir conflitos envolvendo a administração pública. Foi nesse contexto que a Lei 13.129/15, ao alterar o próprio diploma brasileiro da arbitragem, deixou estreme de dúvida a viabilidade desse método alternativo de resolução de disputas relativas a direitos patrimoniais disponíveis, quando uma das partes envolvidas for a administração pública.

Diante deste cenário, afigura-se relevante, portanto, o exame do Decreto 64.356/2019, que regulamenta a arbitragem envolvendo o Estado de São Paulo e suas autarquias.

A referida norma, em seu art. 1º, dispõe que seu escopo é regulamentar a arbitragem como meio de resolução de conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis, no âmbito da Administração Pública direta e autárquica. O referido Decreto não se aplica aos projetos contemplados com recursos provenientes de financiamento ou doação de agências oficiais de cooperação estrangeira ou organismo financeiro multilateral de que o Brasil seja parte, quando essas entidades estabelecerem regras próprias para a arbitragem que conflitem com suas disposições”, além de outros casos em que normas específicas expressamente excluam a sua aplicabilidade.

Ademais, preconiza a norma estadual que a arbitragem será preferencialmente institucional[2], sendo admitida a ad hoc[3] desde que apresentada justificativa pela autoridade responsável pela assinatura do instrumento obrigacional ou pelo órgão colegiado competente, com a necessária manifestação da Procuradoria Geral do Estado. Neste último caso, serão adotadas as regras da Uncitral vigentes no momento em que o requerimento da arbitragem for apresentado, conforme art.6º do diploma em exame.

Interessante observar que a opção do legislador de São Paulo diferiu daquela adotada pelo do Rio de Janeiro, onde o Decreto 46.245/2018, em seu art. 2º, dispõe que a “arbitragem instituir-se-á exclusivamente por meio de órgão arbitral institucional”.

No que toca às instituições arbitrais aptas, pelo Decreto de São Paulo, incumbirá à Procuradoria Geral do Estado, por resolução que conterá as regras aplicáveis e requisitos exigidos, criar cadastro das câmaras. Estas, contudo, deverão atender, de forma cumulativa, aos seguintes requisitos[4]: (i) dispor de espaço para o procedimento e secretariado no local da arbitragem, sem custo adicional para as partes; (ii) estar regularmente constituída há pelo menos cinco anos; (iii) atender aos requisitos legais para receber pagamentos pela Administração Pública; e (iv) possuir reconhecida idoneidade, competência e experiência na administração de procedimentos arbitrais com a Administração Pública.

Importante notar que, no parágrafo único do art. 15, o legislador expressamente previu a possibilidade de o Procurador Geral do Estado, considerando a experiência decorrente de procedimentos arbitrais anteriores, estabelecer critérios adicionais para o cadastramento das instituições arbitrais, bem como a criação de mecanismo de avaliação e exclusão do cadastro.

Verifica-se, portanto, que o objetivo foi restringir as arbitragens envolvendo a administração pública às instituições já referendadas pela comunidade arbitral e que, dispondo de instalações no próprio Estado de São Paulo, sejam aptas a receber peças e documentos, bem como disponham de todo o aparato necessário para o regular desenvolvimento da arbitragem de maneira eficiente e sem custo adicional para as partes.

Relevante observar que, nos termos do Decreto, quando não houver indicação da câmara arbitral no instrumento obrigacional, a escolha caberá ao requerente da arbitragem, atendo-se àquelas instituições previamente credenciadas[5]. Nas hipóteses em que a administração pública for a requerente, a escolha incumbirá ao gestor do instrumento obrigacional, ouvida a Procuradoria Geral do Estado.

No que toca ao pagamento das despesas, compete ao requerente da arbitragem seu adiantamento e, sendo a administração pública, incumbe aos agentes públicos responsáveis pela gestão dos instrumentos obrigacionais adotarem as providências para a solicitação de recursos orçamentários a fim de adimpli-las, consoante o art. 4º, §1º, 5 c/c art. 8º.

Certo é que, pelo parágrafo único do art. 2º do Decreto, em razão da especialidade ou do valor, os instrumentos obrigacionais poderão conter cláusula compromissória e a autoridade responsável pelas assinaturas destes terá a incumbência de decidir acerca da utilização daquela, salvo quando houver pronunciamento do colegiado competente optando por seu emprego. Há de se registrar, ainda, que legislador dispôs que as regras deste diploma serão aplicáveis a instrumentos obrigacionais celebrados antes de sua vigência e que contenham cláusula compromissória, “no que couber”[6].

No que tange ao compromisso arbitral, entendendo-se que este versa sobre divergência atual e específica que faz com que as partes assumam o compromisso de submeter a disputa à arbitragem, parece-nos que o §3º do art. 4º foi meramente exemplificativo[7], sendo efetivamente mandatória apenas a sua celebração pelo Procurador Geral do Estado, independentemente de estar previsto no contrato ou no edital de licitação. Essa última previsão é bastante oportuna, posto que a Lei 9.307/96 contém disposição mais ampla e, por vezes, na prática surgem dúvidas acerca de quem seria a autoridade ou órgão competente no caso concreto.

Importante observar que o Decreto dispõe acerca de requisitos cuja previsão é mandatória na convenção de arbitragem, sendo: (i) a cidade de São Paulo como sede; (ii) escolha das leis da República Federativa do Brasil como a lei aplicável, vedando-se o julgamento por equidade; (iii) a adoção do vernáculo como o idioma aplicável ao processo arbitral[8]; (iv) a escolha da Comarca de São Paulo para processar e julgar demandas correlatas, quando cabível; (v) adiantamento das despesas pelo requerente; (vi) tribunal arbitral composto por três membros indicados em conformidade com o regulamento da instituição indicada, sendo facultada a escolha de árbitro único quando a disputa for de menor valor ou complexidade; (vii) vedação de condenação do vencido ao pagamento de honorários advocatícios contratuais, sendo aplicável o regime de sucumbência do Código de Processo Civil.

O Decreto destacou a importância da Procuradoria Geral do Estado para as arbitragens que regulamenta, tendo atribuído a este órgão a incumbência para (i) redação das convenções de arbitragem; (ii) atuação em todas as etapas do procedimento arbitral, por meio de sua “Assistência de Arbitragens”; e (iii) a designação de árbitros pela administração pública direta e autárquica, após aprovação pelo Procurador Geral do Estado.

Diferentemente do Decreto 46.245/2018 do Rio de Janeiro, o diploma do Estado de São Paulo nem mesmo sugeriu prazos, sendo evidente que estes poderão ser livremente acordados entre as partes dentro do exercício da autonomia de suas vontades, que é um dos pilares da arbitragem.

A norma paulista, como não poderia deixar de fazer, registra a proibição de atuar como árbitro quem possuir interesse econômico direto ou indireto no resultado da arbitragem. Mais do que isso, na linha da Lei 9.307/96, prevê que, para a aferição da independência e imparcialidade, o árbitro deve revelar a existência de demanda patrocinada por si ou seu escritório contra a administração pública, assim como qualquer outra onde se discuta tema correlato àquele objeto da arbitragem.

Mesmo considerando que o diploma federal já abarca essas hipóteses em seu art. 14, tratando-se de disposição que tem por fim assegurar a maior imparcialidade e independência do árbitro, inolvidável seu acerto.

No que concerne à publicidade, a Lei 13.129/15 foi expressa quanto à imprescindibilidade de procedimentos arbitrais que envolvam a administração pública respeitarem esse princípio constitucional. Destarte, mesmo sendo esse tema mais sensível na arbitragem em geral, não poderia o Decreto desalinhar-se da diretriz constitucional.

Assim sendo, não por outro motivo, a norma estadual cuidou do tema em sua Seção IV, onde que dispõe que os atos do processo arbitral serão públicos, cabendo à Procuradoria Geral do Estado disponibilizá-los na rede mundial de computadores.

Não obstante, é cediço que em determinadas situações a publicidade deve comportar limites e um dos grandes fundamentos da confidencialidade é de não permitir que se tornem públicos dados relativos à atividade empresarial das pessoas jurídicas de direito privado, quando isso possa representar alguma vantagem competitiva a outros players. Outrossim, não é razoável exigir-se que, a depender do caso, as audiências sejam realizadas a portas abertas, com livre acesso a terceiros, pois poderia tumultuar a própria arbitragem em curso.

Constata-se que o Decreto seguiu exatamente essa linha, na medida em que excepcionou da regra da publicidade as hipóteses legais de sigilo ou de segredo de justiça, prevendo, ainda, que o acesso à audiência arbitral poderá reservar-se às partes e seus procuradores, árbitros e secretários, testemunhas, peritos, assistentes técnicos, funcionários da instituição arbitral e outras pessoas eventual e previamente autorizadas pelo tribunal arbitral, na forma do art. 12, § 3º.

Afigura-se evidente que norma estadual em comento representa avanço da arbitragem na administração pública, que exige uma resposta ágil e eficiente para demandas sofisticadas e cheias de peculiaridades. Justamente em razão da necessidade de maior dinamismo e tecnicidade para a solução de disputas envolvendo o Estado de São Paulo e suas autarquias, inconteste a importância do Decreto em tela, pois efetivamente viabiliza a concretização de uma alternativa ao Judiciário que está tão assoberbado.

Nesse sentido, espera-se que esse movimento continue a ser seguido pelos demais Estados, com a adoção de normas similares que sirvam de estímulo à utilização da arbitragem para solucionar conflitos entre particulares e a administração pública. 


[1] Art. 5º, parágrafo único, da Lei 5.662/71 (BNDES), art. 11 do Decreto-lei 1.312/74 (Empréstimos externos); art. 5º, §2º e §3º da Lei Estadual (RJ) 1.481/89; art. 1º, §8º, da Lei 8.693/93 (Transporte ferroviário); art. 54 da Lei 8.666/93; art. 23-A da Lei 8.987/95 (Concessões e permissões); art. 93, inciso XV, da Lei 9.472/97 (Telecomunicações); art. 43, inciso X, da Lei 9.478/97 (ANP); art. 35, XVI, da Lei 10.233/01 (ANTT e ANTAQ); Lei 10.303/01; art. 4º, §5º, inciso V, da Lei 10.438/02; art. 4º, §6º, da Lei 10.848/04; art. 11, inciso III, da Lei 11079/04; art. 37 da Lei 12.815/13 (Portos).

[2] Arbitragem que ocorre a partir de regras pré-determinadas de uma Câmara.

[3] Arbitragem cujas regras são escolhidas pelas partes ou pelo árbitro, sem que estejam pré-estabelecidas.

[4] Vide art. 15

[5] Vide Art. 7º do Decreto em foco.

[6] Vide art. 16 do Decreto.

[7] Art. 4º, §3º – O Procurador Geral do Estado poderá celebrar compromisso arbitral para submeter divergências à arbitragem após o surgimento da disputa ou para esclarecer ou integrar lacuna de cláusula compromissória, independentemente de previsão no contrato ou edital de licitação”.

[8] Não obstante, o Decreto é expresso ao admitir o uso de documentos técnicos em língua estrangeira, facultando a tradução juramentada em caso de divergência entre as partes, nos termos do §2º do art. 4º

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