Opinião

O indulto não é cheque em branco

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4 de setembro de 2019, 6h17

O presidente Jair Bolsonaro declarou na última quinta (30/08) que pretende indultar “colegas policiais que estão presos injustamente”. Na sexta, disse que o decreto incluiria “nomes surpreendentes” e, no sábado, sinalizou que entre os beneficiários da medida estariam os agentes de segurança envolvidos nos massacres do Carandiru e de Eldorado dos Carajás. As declarações do presidente provocam preocupações e suscitam dúvidas quanto à extensão do seu poder de perdoar condenações penais.

No direito brasileiro, o indulto é ato pelo qual o presidente da República extingue a punibilidade de crimes. Desde a Constituição de 1946, os decretos de indulto têm sido editados de modo genérico e abstrato, como medidas impessoais de racionalização da população carcerária. Os critérios de indulgência têm sido definidos motivadamente pelo Presidente, após manifestação do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.

A mesma Constituição que concede ao presidente a prerrogativa do indulto, prevê limites latos e restritos ao seu exercício. O chefe do Poder Executivo, eleito democraticamente, tem grande margem de apreciação para exercer as suas atribuições institucionais, inclusive quanto à concessão de indultos e graças, como tradicionalmente referidos os perdões nominais. Mas não há, nas democracias constitucionais contemporâneas, ato público que seja juridicamente incondicionado.

Nas monarquias absolutistas, o indulto constituía ato de clemência do Soberano, que não precisava de justificativas nem de finalidades públicas. Tratava-se, portanto, de ato juridicamente ilimitado, que, por isso mesmo, não era suscetível de controle judicial.

Nada disso tem lugar no Estado Democrático de Direito. Somente nas autocracias há poder absoluto. Sob a égide da Constituição de 1988, os atos políticos –embora franqueiem intenso grau de discricionariedade ao presidente– não são um espaço vazio de Direito nem estão completamente imunes ao controle do Poder Judiciário. A Constituição não outorga cheques em branco.

Por colidir com os princípios republicano, da impessoalidade e da moralidade, o Presidente não poderia, por exemplo, perdoar a si próprio nem conceder o benefício a seus familiares. Em função dos princípios da legalidade e da eficiência, além da teoria dos deveres de proteção dos direitos fundamentais, o presidente também não poderia conceder um indulto preventivo para certos crimes ou em favor de determinadas pessoas, no que estaria impropriamente revogando lei penal ou criando imunidades criminais.

Esses são alguns dos limites implícitos que os princípios constitucionais impõem ao poder de indultar. Mas o ordenamento, de modo explícito e específico, proíbe que sejam concedidos perdões presidenciais (indulto ou graça) e mesmo congressuais (anistia) para “a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos” (CF/88, art. 5º, XLIII e Lei nº 8.072/90, art. 2º, I).

Essa limitação, de ordem objetiva, foi reconhecida pelo Min. Alexandre de Moraes, relator para o acórdão na ADI 5.874, pela qual o Ministério Público Federal questionou a constitucionalidade de indulto natalino concedido por Michel Temer (Decreto nº 9.246/2017).

E aqui é oportuno lembrar que a Lei nº 8.072/90 incluiu, na categoria dos crimes hediondos, o homicídio qualificado e aquele “praticado em atividade típica de grupo de extermínio” (art. 1º, I), de modo que tais delitos não são suscetíveis de fiança, anistia, graça e indulto (art. 2º).

Para o dissabor do presidente, portanto, a Constituição não o autoriza a indultar as suas duas categorias prediletas de criminosos: os policiais integrantes de grupos de extermínios e os seus filhos. Caso o faça, além de um episódio politicamente execrável, poderá –ou melhor, deverá– o Supremo declarar a inconstitucionalidade do ato.

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