Opinião

Consórcios públicos: a alternativa do federalismo ao estado de crise fiscal

Autor

  • Mário Augusto Silva Araújo

    é advogado mestre em Constituição e Garantia de Direitos e Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e professor de Direito Administrativo e Financeiro.

3 de setembro de 2019, 6h47

Pela teoria dos custos dos direitos, escrita no ordenamento jurídico pátrio por Flávio Galdino[1], os direitos não nascem em árvore, razão pela qual é preciso um planejamento orçamentário de alocação de verbas, conjuntamente com estratégias de destinação financeira.

Em que pese parecidos, os conceitos de planejamento orçamentário e financeiro ainda são confundidos por quem não possui a leitura do Direito Financeiro e é preciso fazer uma distinção com fundamento na própria economia.

O processo de estruturação orçamentária é aquele por intermédio do qual o gestor público prevê a receita e fixa a despesa[2] e é o principal referencial para o planejamento de qualquer política pública porque é a autorização para o seu gasto.

Por outro lado, o planejamento financeiro das contas públicas diz respeito à relação existente entre a efetiva arrecadação prevista, que possui como parâmetro o art. 12 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), e o efetivo comportamento da economia, que pode acontecer desconforme ao planejado.

Inclusive se a receita não se comportar conforme o esperado, o Direito Financeiro oferece uma solução estratégica que é a limitação de empenho com a respectiva limitação da movimentação financeira, também conhecida como contingenciamento orçamentário, procedimento que possui baliza no art. 9º da LRF.

É incontroverso o fato de que o funcionamento do Estado presume o planejamento de políticas públicas e como não há direitos sem custos, toda política pública deve ter o seu estudo de impacto orçamentário e financeiro planejado antes de ser positivada.

Como a Constituição Federal possui um rol amplo de normas constitucionais programáticas, as quais no magistério de José Afonso da Silva[3] são aquelas em que o Constituinte no lugar de estabelecer diretamente determinados interesses se limita a tão somente “traçar princípios para serem cumpridos pelos seus órgãos (legislativos, executivos, jurisdicionais e administrativos), como programas das respectivas atividades, visando à realização dos fins sociais do Estado”, o administrador público encontra um entrave ao desenvolvimento da sua gestão porque há muitos direitos a serem oferecidos e pouca verba para lastreá-los e mesmo assim deve dar vazão a toda demanda prescrita pelo Poder Constituinte.

A ideia de Constituição programática alberga a teoria dos direitos sociais e nos registros de Alessandra Gotti[4] aquela matriz, que é característica da natureza jurídica do Estado Social, estabelece que compete ao Estado o oferecimento de direitos prestacionais que visem a “melhoria das condições de vida e à promoção da igualdade material” de modo a assegurar “que os indivíduos tenham iguais oportunidades de desenvolvimento pessoal e de participarem na vida política da sociedade.

Merece registro o fato de que a igualdade material proporciona um conceito ampliado da ideia de liberdade e conforme anota Amartya Sen[5], é impossível pensar em liberdade se o indivíduo não tem acesso a serviços públicos de saúde, saneamento básico e água, bem como educação funcional.

Isso inclusive lembra um raciocínio de Maria Paula Dallari Bucci[6] no sentido de que “Como poderia, por exemplo, um analfabeto exercer plenamente o direito à livre manifestação do pensamento?”

O direito à educação possui um microssistema normativo e o seu principal referencial está compreendido entre os arts. 205 e 214 da Constituição Federal, bem como o art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Além disso, no plano infraconstitucional, há outros referenciais, como é o caso do plano nacional de educação[7] e da lei de diretrizes e bases da educação nacional[8] e dessa maneira o gestor público deve olhar para o sistema constitucional, que compreende, segundo Paulo Bonavides[9], todo o conjunto de leis, complementares ou ordinárias, bem como resoluções e demais atos normativos secundários/terciários, e observar o caminho que deve percorrer até chegar a prestação de direitos a qual está incumbido, sobretudo os fundamentais.

Entre o dever-ser e o que é há todo um estado de enfrentamento orçamentário, que é o desafio que o gestor público possui de conseguir alocação orçamentária de forma a lastrear financeiramente as suas ações e na Constituição de Direitos, que é o pacto social construído em 1988, esse desafio é diário.

É preciso, portanto, construir escolas para a efetivação do acesso à educação e não só isso. Além da estruturação em despesas de capital, é necessária a garantia da despesa corrente como, por exemplo, a contratação de professores e até mesmo o pagamento da sua remuneração e políticas de desenvolvimento da carreira.

Outra diretriz estruturante do Estado brasileiro é o saneamento básico, cujas diretrizes das ações governamentais estão previstas na lei nº 11.445/2007[10] e o conceito de saneamento básico envolve os seguintes serviços públicos: a) abastecimento de água potável; b) esgotamento sanitário; c) limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos; e, d) drenagem e manejo das águas pluviais, com a respectiva limpeza e fiscalização preventivas das respectivas redes urbanas[11].

Aquelas atividades devem ser objeto de ações permanentes do poder público e como são correlatas ao próprio conceito de desenvolvimento, devem ser vistas como macro política, ações previamente planejadas administrativamente com o estudo da sua respectiva sustentabilidade orçamentária e viabilidade financeira de forma a garantir o seu custeio.

A prestação de políticas públicas estruturantes, campo de atuação da macro política, requer o seu respectivo custeio e por ser constituída de ações estruturantes, aquele tipo de prestação de serviços públicos precisa de bastante recursos, o que tem sido cada vez menos freqüente.

Sobre o custeio de políticas públicas, Élida Graziane Pinto[12] observa que o Estado brasileiro está quase em colapso e utiliza como exemplo o custeio da despesa com pessoal dos Estados-membros, bem como que “há Estados que nem mesmo cumprem as transferências obrigatórias e se apropriam indevidamente das receitas dos Municípios”.

Esse cenário de exaustão orçamentária, definido por Eros Roberto Grau[13] como “situação que se manifesta quando inexistirem recursos suficientes para que a Administração possa cumprir determinada ou determinadas decisões judiciais”, em que não há recursos suficientes para lastrear o rol de políticas públicas prestacionais a qual está incumbida a administração pública brasileira seria o fim dos tempos? Há em curso um novo estado, que é doravante ao de crise fiscal, o colapso das contas públicas?

O estado de crise fiscal, caracterizado pela desorganização das contas públicas, deve ser superado pela equalização do gasto público e o desajuste da gestão fiscal sem o respectivo controle conforme previsto pela Constituição Federal provoca a falsa impressão de crise, mas não há que se falar em crise se há instrumentos hábeis a reestabelecerem o equilíbrio das contas públicas como é o caso, por exemplo, do Regime de Recuperação Fiscal, cuja baliza normativa é a Lei Complementar 159/2017[14].

Com o estado de desajuste das contas públicas resta ao gestor público procurar alternativas para o custeio dos serviços que estão sob o seu encargo e o conceito de Federalismo oferece como alternativa a celebração de consórcios públicos entre os entes federados para a prestação de serviços públicos dos seus objetivos comuns.

A ideia de Federalismo possui correlação com a promoção da melhoria de vida na polis e conforme ensina Fernando Facury Scaff[15], no Brasil o Federalismo deve ser assimétrico “de modo a permitir que haja tratamento desigual entre as regiões, bem como internamente a elas, visando permitir que as desigualdades sociais sejam revertidas”.

A criação de consórcios públicos possui previsão constitucional nos termos previstos no art. 241 do pacto social, o qual possibilita que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinem, por intermédio de lei, “os consórcios públicos e os convênios de cooperação técnica entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos.”

O regramento jurídico dos consórcios públicos possui baliza na lei 11.107/2005[16], bem como no Decreto nº 6.017/2007[17] e o legislador tipifica que o consórcio público será constituído por “contrato cuja celebração dependerá da prévia subscrição do protocolo de intenções[18].”

O protocolo de intenções funciona como uma espécie de contrato a ser celebrado pelo chefe do Poder Executivo e estabelece os termos da gestão consorciada.

Entretanto, conforme alerta Talden Farias[19], aquela decisão só é tomada com a aprovação prévia do Parlamento: “somente com a aprovação do protocolo de intenções por cada uma das casas Legislativas envolvidas, o qual passa a se chamar de contrato do consórcio público, é que a nova personalidade jurídica ganhará existência.”

O diálogo institucional prévio a contratação de consórcios públicos demonstra que os mesmos são intrínsecos não somente a ideia de Federalismo, como também ao conceito de Estado Democrático de Direito, porquanto a sua celebração requer o exercício da democracia representativa.

A celebração dos consórcios públicos requer um estudo prévio do estado administrativo e das finanças do respectivo ente federativo consorciante e uma vez detectada a viabilidade da pactuação, aquele instrumento jurídico é uma alternativa ao estado de crise fiscal diante da obrigatoriedade do adimplemento dos direitos prestacionais decorrente da teoria dos direitos sociais.

Dessa maneira, a análise econômica do Direito proporciona o entendimento de que a celebração de consórcios públicos é uma estratégia para o funcionamento do Estado em época de desajuste das contas públicas, onde as mesmas beiram o colapso por falta de planejamento.

Inclusive na área da educação há uma experiência recente no Estado do Paraná de prestação daqueles serviços públicos mediante consórcio público com ganho na economia de escala através de contratações integradas[20].

Há registros também de experiências exitosas em relação à contratação de serviços públicos correlatos aos resíduos sólidos por intermédios de consórcios[21], o que leva a afirmação, através de um raciocínio indutivo, de que a sua criação é uma alternativa viável de enfrentamento da crise fiscal com base na ideia de federalismo.


[1] GALDINO, Flávio. Introdução à teoria dos custos dos direitos: direitos não nascem em árvores. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro/RJ: 2005.

[2] Constituição Federal, art. 165, §8º.

[3] SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. Malheiros Editores. 4ª edição. São Paulo/SP: 2000.

[4] GOTTI, Alessandra. Direitos Sociais. Fundamentos, regime jurídico, implementação e aferição de resultados. Editora Saraiva. São Paulo/SP: 2012.

[5] SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Companhia das Letras. São Paulo/SP: 2010.

[6] BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em direito. In Políticas Públicas: Reflexões sobre o Conceito Jurídico (Maria Paula Dallari Bucci, org.). Editora Saraiva. São Paulo/SP: 2006.

[7] Lei 13.005/2014

[8] Lei 9.394/1996.

[9] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 24ª edição. Malheiros Editores. São Paulo/SP: 2009.

[10] Estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico; altera as Leis nos (sic) 6.766, de 19 de dezembro de 1979; 8.036, de 11 de maio de 1990, 8.666, de 21 de junho de 1993, 8.987, de 13 de fevereiro de 1995; revoga a Lei no (sic) 6.528, de 11 de maio de 1978; e dá outras providências.

[11] Art. 3º, inciso I da Lei nº 11.445/2007.

[12] PINTO, Élida Graziane. Ausente no básico, Estado brasileiro inchado e capturado, entra em colapso. Artigo publicado na colina “Contas à Vista”, em 29 de janeiro de 2019. Disponível em https://www.conjur.com.br/2019-jan-29/contas-vista-ausente-basico-estado-brasileiro-entra-colapso acesso em 19/08/2019

[13] GRAU, Eros Roberto. Despesa Pública – Princípio da Legalidade – Decisão Judicial. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro/RJ, v. 191, PP. 315-331, Jan. 1993. Disponível em http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/45730/47450 acesso em 19/08/2019

[14] Institui o Regime de Recuperação Fiscal dos Estados e do Distrito Federal e altera as Leis Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, e nº 156, de28 de dezembro de 2016.

[15] SCAFF, Fernando Facury. O federalismo (s) em juízo que predomina no Brasil. Disponível em https://www.conjur.com.br/2019-ago-20/contas-vista-federalismo-juizo-predomina-brasil acesso em 20/08/2019.

[16] Dispõe sobre normas gerais de contratação de consórcios públicos e dá outras providências.

[17] Regulamenta a Lei nº 1.107, de 6 de abril de 2005, que dispõe sobre normas gerais de contratação de consórcios públicos.

[18] Art. 3º da lei 11.107/2005.

[19] FARIAS, Talden. Consórcios Públicos, federalismo cooperativo e intermunicipalidade. Revista de Direito Administrativo e Constitucional. Ano 17, n. 70, outubro/dezembro de 2017. Disponível em http://www.revistaaec.com/index.php/revistaaec/article/view/499/706 acesso em 19/08/2019.

[20] https://www.fnde.gov.br/index.php/acesso-a-informacao/institucional/area-de-imprensa/noticias/item/12911-palestra-mostra-cons%C3%B3rcios-municipais-como-nova-forma-de-gest%C3%A3o-p%C3%BAblica-na-educa%C3%A7%C3%A3o acesso em 20/08/2019

[21] https://www.mma.gov.br/informma/item/10551-consorcios-publicos acesso em 19/08/2019


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 24ª edição. Malheiros Editores. São Paulo/SP: 2009

BRASIL, Manual de Saneamento. Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde. Brasília/DF: 2015.

BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em direito. In Políticas Públicas: Reflexões sobre o Conceito Jurídico (Maria Paula Dallari Bucci, org.). Editora Saraiva. São Paulo/SP: 2006.

GALDINO, Flávio. Introdução à teoria dos custos dos direitos: direitos não nascem em árvores. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro/RJ: 2005.

GOTTI, Alessandra. Direitos Sociais. Fundamentos, regime jurídico, implementação e aferição de resultados. Editora Saraiva. São Paulo/SP: 2012

GRAU, Eros Roberto. Despesa Pública – Princípio da Legalidade – Decisão Judicial. Revista de Direito Administrativo.

PINTO, Élida Graziane. Ausente no básico, Estado brasileiro inchado e capturado, entra em colapso.

SCAFF, Fernando Facury. O federalismo (s) em juízo que predomina no Brasil

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Companhia das Letras. São Paulo/SP: 2010

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. Malheiros Editores. 4ª edição. São Paulo/SP: 2000

Autores

  • é advogado, professor universitário, mestre em Constituição e Garantia de Direitos pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e especialista em Direito Constitucional pela mesma instituição.

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