Opinião

2ª Turma do STF acerta —réu delator é "ajudante da acusação"

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2 de setembro de 2019, 10h51

A 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal decidiu, contra o voto do ministro Edson Fachin, que há uma diferença entre réu e réu delator. O réu delator é uma espécie de “ajudante da acusação”. Logo, deve ser relido o dispositivo do CPP (artigo 403) à luz do devido processo legal substantivo e ampla defesa. Simples. Correto.

Spacca
Por que a 2ª Turma acertou? Porque, quando foi feito o Código de Processo Penal, e quando foi alterado em 2008 não havia a figura do delator tal como hoje.

Algo como, desculpem-me a ironia, o Código Civil alemão não ter tratado do espaço aéreo… uma vez que o avião ainda não tinha sido inventado, brincadeira feita por um importante jurista alemão sobre temporalidade e a hermenêutica.

No caso, o advogado Alberto Toron havia pedido que seu cliente, Aldemir Bendine, apresentasse seus argumentos depois de conhecer os argumentos dos delatores que o acusavam de receber propinas. Moro negou. E condenou Bendine a 11 anos e tal.

Tudo confirmado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região e pelo Superior Tribunal de Justiça, agora o jogo pode mudar. Por uma coisa simples. A aplicação da Constituição. Sim, uma coisa meio em desuso no Brasil: levar o direito a sério, doa a quem doer. Sem consequencialismos, voz das ruas e dualismos metodológicos.

Parece óbvio que a tese de Toron é correta. Qual seria o prejuízo para a acusação (Estado) se o réu se defender, efetivamente, depois de conhecer o que os delatores dizem sobre ele? Na verdade, prejuízo há, de qualquer modo, ao acusado. Afinal, delatores são réus especiais. Singulares. São os novos assistentes de acusação.

Li por aí que caberia ao acusado provar o prejuízo, face ao princípio (sic) do pás de nullité sans grief (não há nulidade sem prejuízo). Primeiro, esse princípio é, na verdade, um pamprincípio (chamaria a isso de um produto da principiolatria — a expressão é do ministro Toffoli — vigorante no Direito brasileiro), um argumento retórico inventado em determinado período da história do Direito, em que o inquisitivismo nadava de braçada. Aliás, preocupados com uma aplicação desenfreada desse “axioma” que serve apenas para prejudicar o réu, ingressamos com ADPF[1] para eliminar essa excrescência do sistema jurídico. Esperamos que o Supremo dê uma resposta adequada ao nosso pleito. São milhares de pessoas prejudicadas paradoxalmente por um argumento retórico que diz que não há nulidade sem prejuízo. A pergunta é: o que é prejuízo? Por exemplo, no HC 103.425, havia uma nulidade (violação flagrante do artigo 212 do CPP). A decisão foi: não fora provado o prejuízo. Só que o réu fora condenado a 9 anos de reclusão. Qual (não) teria sido o prejuízo? O prejuízo não é auto evidente?

Sigo. Não cabe a inversão do ônus argumentativo. Não cabe ao réu provar prejuízo. Aliás, direitos de garantia processual devem ser lidos sempre contra o Estado, parte mais forte nessa relação — por isso é que as garantias surgiram na história, pois não?

Interessante como exsurgem argumentos baseados em pretensa literalidade, essa mesma literalidade que tem sido negada no caso da presunção da inocência. Muitos do que dizem que o artigo 403 não faz distinção e por isso estaria claro que não cabe distinção do tipo de réu (por exemplo, a contundente manifestação da Procuradora-Geral da República), no momento em que se mostram contrários à presunção da inocência usam o argumento de que não se pode fazer leitura literal do direito à presunção. Ou seja: literalidade vale no caso do 403; não vale para o artigo 283 do CPP e nem da CF na parte em que trata da presunção da inocência. Hermenêutica de varejo e de ocasião.

Pergunto: afinal, o que é isto — a interpretação da lei? Há que se ter coerência interpretativa. Não adianta ser “textualista” ad hoc. Por vezes, a depender dos interesses, a lei é tudo (algo como o personagem Ângelo, de Medida por Medida, de Shakespeare, quando condena Cláudio à morte); em outra ocasião, se a ocasião exige, a lei nada vale, como no caso do mesmo personagem Ângelo, ao propor à Isabela a soltura de seu irmão se com ele, Ângelo, a bela fizesse amor. A interpretação pode depender de opiniões pessoais?

Afinal, não fosse por outra coisa (por exemplo, o que de mais contemporâneo se entende por hermenêutica jurídica — por exemplo, a relação texto-norma proposta por Müller ou a diferença ontológica entre texto e sentido do texto, que defendo na minha Crítica Hermenêutica do Direito), o cidadão e a comunidade merecem um mínimo de previsibilidade nos julgamentos.

A interpretação não pode depender de voz das ruas, adágios retóricos e coisas desse gênero. A ciência jurídica já avançou para além da dicotomia positivismo paleolítico versus voluntarismo interpretativo. Até Shakespeare já sacara isso em 1604, ao escrever a peça Medida por Medida.

Bem, vamos ver o que dirá o plenário do Supremo Tribunal Federal. Trata-se de saber, afinal, qual é o alcance dos princípios — estes, sim, princípios na correta acepção da palavra — da ampla defesa e do substantive due process of law.  E se o artigo 403 do CPP deve ser lido à luz de quando foi feito ou à luz da facticidade, tendo como fio condutor a principiologia da Constituição de 1988.


[1] A ADPF 612 é assinada pelos advogados Rossini Corrêa, Thiago Pádua, Dinah Lima, Lucas Rivas, Airto Chaves, Mariana Tripode, Danilo Vasconcelos, Tiago Oliveira e Leonardo de Paula e por mim.

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