JUSTIÇA TRIBUTÁRIA

Por que não aplicar a Lindb nos julgamentos dos Tribunais Administrativos?

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

2 de setembro de 2019, 10h50

É cabível o uso da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb) nos julgamentos pelos Tribunais Administrativos? Por qual motivo alguns desses Tribunais (Carf, TIT, CMT, Tarf etc.) vêm deixando de lado em suas deliberações as alterações efetuadas na LINDB pela Lei nº 13.655/18, que incluíram novos artigos com disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público?

Spacca
Dias atrás elaborava a quatro mãos um trabalho acadêmico[1] com o doutor Francisco Secaf Alves Silveira[2] acerca da aplicação da Lindb ao Carf, cuja jurisprudência tem se mostrado arredia à tal vinculação. Constatamos, sob diversas óticas, e com foco no Carf, que tal Corte vem praticando uma espécie de jurisprudência defensiva na aplicação daquela norma, a despeito de alguns votos isolados em sentido contrário, em especial de conselheiros-contribuintes.

Quaisquer dos diversos argumentos utilizados na análise se mostraram descabidos, pois partem do pressuposto de que o Direito Tributário é uma província isolada do mundo jurídico, não fazendo parte do Direito como um todo. Por acaso, alguma vez, deixou-se de aplicar alguma outra disposição da Lindb, que não essas que foram recentemente introduzidas? É crível que jamais tenha sido aplicada a norma que determina que “não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue” (art. 2º da Lindb) ou que “ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece” (art. 3º, Lindb)? Óbvio que tal aplicação ocorreu pelos Tribunais administrativos, e de forma automática, sem nenhuma perquirição acerca de seu cabimento na seara tributária. Trata-se de miopia jurídica compreender que só as normas especificamente referidas ao Direito Tributário é que serão objeto desse tipo de consideração – a situação é absolutamente inversa, pois estas é que deverão, ainda com maior ênfase, serem aplicadas ao processo tributário e às demais esferas de jurisdição administrativa.

A Lindb não se enquadra explicitamente nas exigências do artigo 146 da Constituição, pois não se trata de uma norma tributária propriamente dita, e o seu alcance tampouco justificaria a utilização de uma lei complementar. Exigir lei complementar para as normas veiculadas pela Lindb tornaria a referida lei (originalmente um decreto-lei) inaplicável por inteiro a esse âmbito do Direito, trazendo ainda mais insegurança jurídica. A Lindb veicula regras para a aplicação do Direito como um todo. Nesse sentido, é irrelevante se o veículo que introduz a Lindb é de natureza ordinária ou complementar.

Trata-se de um argumento inadequado, embora muito utilizado, pois as normas da Lindb se caracterizam por serem metanormas, “isto é, normas que estabelecem a maneira pela qual outras normas devem ser aplicadas”, conforme explicitado em outro contexto pelo Ministro Ricardo Lewandowski, em seu voto na ADI 3.510. Carlos Ari Sundfeld, com percuciência, e sem se utilizar da expressão metanormas, reafirma que o conteúdo da Lindb é de norma geral do direito e o Direito Tributário, como ramo do direito público, está integralmente sujeito aos arts. 20 a 30 da Lei de Introdução reformada, justamente por seu caráter geral, sendo certo que “todos os órgãos administrativos com competência na matéria, inclusive judicante, têm o dever de respeitá-los com fidelidade”[3].

Seguindo a regra de que é o direito que controla o poder, tais normas se caracterizam como uma forma de controlar não só quem aplica o direito, mas também quem têm a função de controlar o controle exercido sobre quem aplica o direito – exatamente a função dos Tribunais administrativos. É a máxima da legalidade que se impõe, e não a moral ou o desejo do seu aplicador, ou seja, não se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa – o direito proíbe isso, e não há razão para ser diferente nas decisões administrativas ou judiciais. A ideia de livre convicção é negativa, pois gera muita incerteza jurídica, conforme aponta Lenio Streck[4].  

É bem verdade que a novel alteração ainda mantém diversos conceitos jurídicos indeterminados, e que sua redação poderia ser mais precisa, porém isso não afasta sua aplicabilidade e, inegavelmente, contribui para trazer mais segurança jurídica do que o sistema possuía antes de sua edição.

Por exemplo, o artigo 30, introduzido[5], determina que as autoridades públicas devam atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas – o que é de todo benfazejo. Essa norma possui semelhança com o artigo 371, do CPC[6]. Ou seja, não basta alegar livre convencimento, é necessário que, em face das provas constantes dos autos, seja exposta sua motivação, de forma justificada, embasando-a na lei – e, a partir da vigência da Lindb, por força dos arts. 20[7] e 21[8], deve-se também expor as possíveis consequências decorrentes das decisões adotadas. A partir daí se poderá aumentar o controle, inclusive sobre os atos dos auditores fiscais. Tal norma é completamente aplicável ao processo administrativo tributário, seja o federal, seja o das demais esferas federativas de julgamento administrativo. O art. 15 do CPC[9] assim o determina expressamente. E, mesmo que tal expressa determinação normativa não existisse, é imperioso que as decisões busquem ampliar a segurança jurídica na sociedade.

Uma leitura mais apressada do novel art. 20 pode levar a crer que se tenha trazido para dentro do direito o consequencialismo jurídico, que, para Basile Christopoulos[10], sob um prisma estrito, “apenas a consequências deveriam ser relevantes para julgar uma determinada ação. Em todos os casos, não há uma resposta uníssona sobre quais são os resultados que devem ser considerados, como e por que”.

Obrigar a existência de decisões consequencialistas não é o conteúdo da norma. Não se vê no texto nada que obrigue o julgador a pautar sua decisão observando suas consequências, havendo apenas o dever de motivação da decisão e a necessária apresentação das consequências de seus atos, o que é uma decorrência do Estado Democrático de Direito. O art. 20 não contém nenhuma obrigação de decidir de forma consequencialista, o que equivaleria a um despautério tributário. O que esta norma introduz é uma obrigação de motivar e justificar o ato administrativo praticado, na linha do art. 93, IX da CF[11] e o art. 11 do CPC[12], ambos dirigidos ao Poder Judiciário, que apontam para a necessária fundamentação legal, e não ideológica[13], que todos os julgamentos devem ter. Isso passa a ser também necessário para as decisões administrativas, que devem ser motivadas, observando, dentre outros aspectos, a necessária justificação acrescida da análise relativa às suas consequências. É imperioso que o julgador passe a fundamentar sua decisão justificando-a legalmente em concreto, e indicando as possíveis consequências que advirão caso não a tivesse adotado, ou mesmo, as que ocorrerão em face de sua adoção. Isso, obviamente, alcança o processo administrativo fiscal, pois os órgãos decisórios (Carf, TIT etc.) estão alcançados pela norma.


 

 

 

 

 

O art. 21 segue a mesma linha de exigir que haja a efetiva motivação da decisão efetuada. Aqui se destaca o parágrafo único, que determina a obrigação de, justificadamente, serem indicadas as condições para que haja a regularização de modo proporcional e equânime, de tal modo que não ocorram ônus ou perdas anormais ou excessivas. De certa forma, reafirma o que consta do art. 20, e aplica a proporcionalidade no âmbito do direito sancionador. De certo modo, identifica-se tal determinação no art. 805 do NCPC[14], que determina que a execução seja feita pelo modo menos gravoso ao executado. Isso já vem sendo adotado no âmbito judicial há muito, pois expresso no art. 620 do velho CPC. No caso, a determinação é para que ocorra a proporcionalidade da sanção. É necessário reduzir a ênfase punitivista, promovendo muito mais a função de vigiar do que a de punir[15]. Caso seja necessário impor penas, que sejam aplicadas de modo proporcional ao dano ocasionado. Isso também alcança o processo administrativo fiscal, seja federal, estadual ou municipal, em face do art. 15 do CPC, seja em razão da própria norma da LINDB.

 

O art. 23[16] está igualmente embasado no princípio da segurança jurídica, o que é cediço no âmbito constitucional. A segurança jurídica está espalhada no texto constitucional, sendo fundamental a leitura de duas obras de referência na matéria, aplicáveis ao direito tributário, de Heleno Taveira Torres[17] e de Humberto Ávila[18]. No caso, a irretroatividade das leis é corolário do ato jurídico perfeito, protegido constitucionalmente no Brasil (art. 5º, XXXVI), pois, havendo “interpretação ou orientação nova” administrativa acerca de determinada norma ou procedimento, não é possível determinar sua aplicação retroativa.

A inovação está em determinar que haja obrigatoriamente um regime de transição para serem adotadas as novas regras, o que é positivo em várias situações concretas. Não sendo estabelecida tal transição, e ela sendo necessária, nada mais seguro do que não retroagir e ainda determinar a aplicação gradual da norma às situações em curso. Por certo ela deverá ser aplicada às novas situações ainda não iniciadas, ou seja, exige que seja estabelecido, ao menos, um regime de transição quando houver mudança de orientação, de modo a impedir efeitos indevidos: quando a administração estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma tributária de caráter indeterminado, e assegura para o contribuinte um regime de transição, na medida do necessário para impedir efeitos indevidos (desproporcionais, não equânimes, ineficientes ou contrários aos interesses gerais).

O novel art. 24[19] trata de uma questão de direito intertemporal e renova a exigência de segurança jurídica do art. 23, pois obriga que na análise do caso concreto sejam levadas em consideração as orientações gerais da época em que ele ocorreu e se consolidou. Parece uma proposta óbvia, que em várias áreas do direito são consideradas bastante assentes, fruto do brocardo jurídico tempus regit actum (o tempo rege o ato). O problema está na análise dos fatos e na identificação do que seria o entendimento dominante à época em que ocorreram. Isso impõe estabilidade, integridade e coerência no ordenamento jurídico, validando os efeitos da posição então dominante para o tempo em que os atos foram praticados. No âmbito judicial tal procedimento é obrigatório para os Tribunais, na forma do art. 926 do CPC[20]. Isso é claramente aplicável ao Carf, em face do que determina o art. 15 do CPC. Observe-se que tal preceito está alinhado com o do art. 23 da Lindb, que proíbe a retroação da modificação de interpretação jurídica. Claro que existem áreas de conflito, como por exemplo, nas situações fáticas não consolidadas, quando não se tratar de ato jurídico perfeito, mas de direitos de aquisição sucessiva ou direitos a termo, aspectos analisados por Limongi França há décadas[21]. Cada caso concreto necessitará de análise específica para identificação dos fatos a serem enfrentados pelo direito.

Enfim, não existem razões para a não aplicação da Lindb aos julgamentos administrativo-tributários, exceto o da aplicação deletéria da jurisprudência defensiva, que impede a análise em face de reação ao novo. O uso do cachimbo deixa a boca torta, e os julgadores se eximem de aplicar as novas normas sob o argumento de sua inaplicabilidade aos Tribunais Administrativos, o que acaba por se constituir em um paradoxo, pois restringe a segurança jurídica ao invés de ampliá-la – exatamente ao contrário do que a Lindb determina. Floriano de Azevedo Marques Neto, bem ressalta que “os artigos que se acrescentaram à Lindb original têm como objetivo explícito reforçar a segurança jurídica num quadro de incerteza e de mudança permanente. (…) A segurança jurídica tem uma dimensão de estabilidade, na medida em que dá perenidade aos atos jurídicos e aos efeitos deles decorrentes, mesmo quando houver câmbios nas normas ou no entendimento que se faz delas. Tem uma segunda dimensão, de ponderabilidade e razoabilidade, na medida em que a aplicação do Direito não pode nem ser irracional, nem desproporcional. Por fim, a segurança jurídica confere previsibilidade ao Direito, protraindo mudanças bruscas, surpresas, armadilhas. Exatamente nestes três sentidos que a Lei nº 13.655/18 veio reforçar a segurança jurídica.”[22]

É necessário quebrar a resistência à aplicação dessa importante Lei no âmbito jurisdicional-administrativo, pois não existem razões jurídicas para sua inaplicabilidade.


[1] A obra é organizada por Gustavo Lana Murici e possui o título (ainda provisório) de “Análise crítica da jurisprudência do CARF”, e será lançada ainda neste semestre pela editora D`Placido, de Belo Horizonte.

[2] Indico ao leitor o livro de Francisco Secaf Alves Silveira intitulado O Estado Econômico de Emergência e as transformações do Direito Financeiro brasileiro, pela editora D`Placido, lançado semana passada em São Paulo,

[3] Sundfeld, Carlos Ari. LINDB: Direito Tributário está sujeito à Lei de Introdução reformada. Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/lindb-direito-tributario-esta-sujeito-a-lei-de-introducao-reformada-10082018.


[4] Streck, Lenio et al. O fim do livre convencimento motivado. Florianópolis: Empório do Direito, 2018.

[5] Art. 30. As autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas. Parágrafo único. Os instrumentos previstos no caput terão caráter vinculante em relação ao órgão ou entidade a que se destinam, até ulterior revisão.

[6] Art. 371, CPC: O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento.

[7] Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.

[8] Art. 21. A decisão que, na esfera administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas. Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos.

[9] Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente.

[10] Christopoulos, Basile Georges Campos. Orçamento Público e controle de constitucionalidade. Argumentação consequencialista nas decisões do STF; Editora Lumen Juris Direito. Rio de Janeiro. 2016. P. 49.

[11] CF 88, art. 93: IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.

[12] CPC: Art. 11. Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade.

[13] Na atividade advocatícia tributária já me deparei com um Auto de Infração acerca de tributos aduaneiros fundamentado no Manifesto Comunista de Marx e Engels – é a mais pura verdade, embora pareça um texto de Franz Kafka.

[14] Quando por vários meios o exequente puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o executado.

[15] Para o tema, ver Scaff, Fernando Facury, Orçamento Republicano e Liberdade Igual, Belo Horizonte: Editora Fórum, 2018, capítulo 4º.

[16] Art. 23. A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.

[17] Torres, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e Segurança Jurídica: metódica da segurança jurídica do Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

[18] Ávila, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no direito tributário. 2 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2012.

[19] Art. 24. A revisão, na esfera administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas. Parágrafo único. Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público.

[20] Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.

[21] França, Rubens Limongi. Direito intertemporal brasileiro. 2. ed. São Paulo: RT, 1968.

[22] Marques, Floriano de Azevedo. Art. 23 da LINDB: o equilíbrio entre mudança e previsibilidade na hermenêutica jurídica. Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, Edição Especial: Direito Público na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro – LINDB (Lei nº 13.655/2018), p. 93-112, nov. 2018.

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    é sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados, professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e de Direito Financeiro e Tributário da Universidade Federal do Pará (UFPA).

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