Opinião

Contratos e a MP da liberdade econômica

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1 de setembro de 2019, 6h50

Apesar de algumas críticas, a Medida Provisória da Liberdade Econômica (Projeto de Lei de Conversão nº 21, de 2019 – proveniente da MP n° 881, de 2019) foi aprovada. Ela pode fomentar um novo modelo para o pensamento jurídico brasileiro, dando força para a Análise Econômica do Direito. Em particular, há dois conceitos econômicos importantes que foram positivados: “custos de transação” e “oferta e demanda”, que deverão ser analisados pelos operadores do direito. Tratei de algumas questões econômicas relevantes para os advogados – com foco nos in-houses – em artigo publicado na ConJur.

Pode-se dizer que a MP vem impulsionar um dispositivo que havia sido incluído na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, de cunho consequencialista. Notoriamente, o artigo 20, que enuncia: “Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.” Tratando da Lei de Introdução, mencionei que ela não era tão revolucionária quanto parecia. Agora, sim, parece que teremos um arcabouço legal capaz de trazer a coloração da Análise Econômica do Direito de forma positivada, com mais força.

Pois bem. O artigo 1º institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, estabelecendo normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica. Para alguns, isso pode soar despiciendo. Todavia, como dizia Nelson Rodrigues, “só os profetas enxergam o óbvio”. No Brasil, o que aparenta ser elementar precisa ser afirmado a plenos pulmões. Mas, será que a questão é tão evidente assim? No ranking de Liberdade Econômica da Heritage Foudation, nosso país está na posição 150. Para usar a comparação de um vizinho, o Chile está listado como 18º. Logo, ainda que fosse meramente simbólico – o que o ranking mostra que não é –, o movimento legislativo tem importância e relevância.

Nessa linha, o § 2º, do artigo acima citado, dispõe: “interpretam-se em favor da liberdade econômica, da boa-fé e do respeito aos contratos, aos investimentos e à propriedade todas as normas de ordenação pública sobre atividades econômicas privadas”. Esse dispositivo possui um componente educativo. A ideia, no meu sentir, é caminhar para “A Sociedade de Confiança” de que fala Alain Peyrefitte em livro de mesmo nome. Resumidamente, nas palavras constantes da belíssima apresentação da edição portuguesa (Editora TopBooks, 1999), elaborado pelo saudoso Embaixador José Oswaldo de Meira Pena:

Em La société de confiance, o pensador francês coroou seu trabalho monumental com um estudo histórico e sociológico exaustivo da ética de livre iniciativa e incentivos ao setor privado da economia, suscetíveis de assegurarem o progresso. Renovando assim com o inquérito que, pela primeira vez, Adam Smith empreendeu no sentido de descobrir ‘as causas da riqueza das nações’, Peyrefitte acentua o paralelismo entre o que chama a ‘divergência’ religiosa entre os latinos, autoritários, patrimonialistas e desconfiados – e os holandeses e anglo-saxões, mais liberais, mais tolerantes, mais livres e nutrindo maior confiança nos méritos do mercado – divergência que explica o ritmo diverso de crescimento e progresso das respectivas sociedades. Esse desenvolvimento tem sido sustentado, de um lado, pelas condições culturais de ‘confiança’ dos cidadãos uns nos outros; e na capacidade do Estado de Direito de fazer cumprir o princípio pacta sunt servanda, ou seja: os contratos devem ser respeitados e a honestidade é pressuposto de toda a transação comercial.”

O espírito da lei, à luz da citação acima, me parece ser o de tentar deslocar o eixo da desconfiança para a confiança. Presumem-se, assim, a boa-fé dos contratantes. Não por outra razão, o inciso V do artigo 3º, estabelece, como direito das pessoas, “gozar de presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica, para os quais as dúvidas de interpretação do direito civil, empresarial, econômico e urbanístico serão resolvidas de forma a preservar a autonomia privada, exceto se houver expressa disposição legal em contrário”.

Por sua vez, reafirmando o princípio pacta sunt servanda e a liberdade de contratar, o inciso VIII, do artigo 3º, dispõe ser um direito das pessoas “ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública”. Tal direito ganhou concretude, também, com o Parágrafo Único incluído no artigo 421 do Código Civil: “Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual”. É quase a introdução da parol evidence rule do Direito Anglo-Saxão, em nosso ordenamento. Por essa regra, suscintamente, entende-se que após escrito, vale o que está no contrato, e os documentos relativos à negociação prévia entre outros não servem para mudar o que foi livremente pactuado. Aliás, pelo teor da MP 881, parece possível estabelecer essa regra expressamente em um contrato.

Na linha de dar mais ênfase à liberdade de contratar, o novo artigo 421-A do Código Civil dispõe:

“Art. 421-A Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que:

I – as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução;

II – a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e

III – a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada.”

Esse dispositivo carrega um princípio do pensamento Liberal Clássico – que anima a equipe econômica do Governo –, segundo o qual não existe liberdade sem responsabilidade. Portanto, o ato de elaborar contratos ganha mais relevância. A liberdade, ao que parece, virou vedete. Mas, há uma consequência em presumir que os contratos sejam paritários e simétricos: a redação do instrumento precisa ser customizada, contemplando todas as questões da relação jurídica das partes. Os modelos perdem e o trabalho sob medida ganha. De quebra, a redação de contratos exigirá uma maior interação com as pessoas que farão a execução do dia a dia e os contract managers.

Outro ponto interessante é que os próprios parâmetros de interpretação podem ser fixados livremente pelas partes no instrumento. Deu-se, também, importância para a distribuição dos riscos contratualmente estabelecida. Afinal de contas, sob o aspecto econômico, o contrato é um instrumento de alocação de riscos, com vistas a precificação. Não fossem essas questões, reafirmando o pacta sunt servanda, trata-se da revisão contratual como hipótese excepcional.

No que tange às regras legais de interpretação dos contratos, o artigo 113 do Código Civil ganhou dois parágrafos:

“Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.

§ 1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que:

I – for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio;

II – corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio;

III – corresponder à boa-fé;

IV – for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e

V – corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração.

§ 2º As partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei.”

O § 1º e seus incisos estão alinhados com a Análise Econômica do Direito. Já no inciso I, desloca-se a intepretação do contrato para a fase posterior a de sua negociação, dando-se mais importância para o que as partes praticaram na execução do contrato. Tal circunstância reforça a necessidade de customização do instrumento, com base no que as pessoas diretamente envolvidas na operação irão efetivamente praticar. Ponto para o trabalho humano do advogado contratualista, que, arrisco dizer, não deverá ser substituído por robôs ou Inteligência Artificial.

Partindo para o inciso II, parece que se retorna a ideia que estava contida no Regulamento 737 de 1850. Os usos, costumes e práticas voltam à cena. Mas, há uma crítica importante: como será feita prova quanto a esses pontos? Isso não ficou claro. Será necessária, assim, uma construção doutrinária e jurisprudencial sobre a questão, ou, talvez, de uma estipulação contratual expressa. Melhor teria sido regular os meios de prova, admitindo, e.g., a prova oral. Essa matéria foi enfrentada pelo Superior Tribunal de Justiça no REsp nº 877.074 – RJ. Quem ler o acórdão verá a controvérsia, e, certamente, concordará que os usos e costumes mereciam o tratamento probatório devido.

No inciso III, que trata da boa-fé, não há novidade. A grande inovação está no inciso IV que traz o contra proferentem para o nosso direito contratual. O qual consiste na interpretação mais benéfica para quem não redigiu o instrumento. Tal dispositivo, contudo, ficou genérico. No direito anglo-saxão, essa doutrina costuma ser aplicada – de forma excepcional – em contratos de adesão. Isso tem uma lógica econômica resultante da massificação dos contratos em formato de modelos (Farnsworth, “Contracts”, Aspen, §7.11, p. 459 e 460). A Lei, portanto, deveria ter feito essa distinção. Como ela não fez, essa será mais uma questão que ficará ao cargo da doutrina e jurisprudência. Esse ponto, por razões óbvias, não poderá ser regulado por uma cláusula contratual. Ora, o redator do instrumento porá uma cláusula sobre o contra proferentem? Seria um contrassenso total!

Passando ao inciso V, ele apresenta “razoável negociação das partes”, que seria inferida das “demais disposições do negócio” (e não do contrato) “e da racionalidade econômica das partes”, considerando “o momento da celebração”. Ficou vago. Apesar de tentar apresentar a necessidade de uma avaliação com base na realidade negocial, econômica e comercial, a redação acabou truncada, abrindo margem para interpretações dúbias. Para evitar isso, o inciso terá de ser visto apenas como um reforço – ou um simples colorido – para a Análise Econômica do Direito. Por fim, o § 2º reafirma, uma vez mais, a liberdade de contratar.

Feitas essas considerações, pode-se dizer que a Lei tem os seus méritos, principalmente para os estudiosos de Law & Economics. Haverá, por certo, uma necessidade de os operadores do Direito estudarem, ao menos, os princípios de economia. Muitos problemas jurídicos vão necessitar do conhecimento multidisciplinar. A meu ver, é um bom começo que será testado ao longo dos próximos anos, demandando muita dedicação dos advogados para apresentar os argumentos econômicos de forma clara, o uso do economês poderá atrapalhar tudo. Além disso, não acredito que sairemos de uma sociedade de desconfiança para uma de confiança apenas com essa Lei. Há muito o que evoluir para se chegar a esse ideal.

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