Embargos culturais

A reforma tributária em Bruzundanga e o eterno problema da injustiça fiscal

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

1 de setembro de 2019, 8h00

Os Bruzundangas é certamente o mais satírico e visionário livro de Lima Barreto (1881-1922). Bruzundanga era uma terra imaginária, que ao mesmo tempo era o Brasil do início da república. Na República dos Bruzundangas o escritor fluminense censurava a burocracia, o favoritismo, as obsessões do Barão do Rio Branco e as tensões políticas.

São situações que de algum modo persistem em nossa cultura política. Lima Barreto falava de si mesmo. Sofria a violência, simbólica e real, que se praticava contra mulatos e pobres.

Ao longo desse primoroso livro Lima Barreto relata-nos um grave problema orçamentário. O orçamento fechava com déficit. Para enfrentar o problema, certo dia foi chamado no palácio o senhor Ben Karpatoso, distinto deputado que sonhava ser o Ministro do Tesouro. O presidente desse espantoso país, Idle Grafofone e Cinema, queixou-se ao financista. As contas não fechavam. Uma reforma tributária era necessária.

Karpatoso, experimentado economista, sempre preocupado com o bem comum, propôs que se triplicassem os impostos incidentes sobre o açúcar, o café, o querosene, a carne-seca, o feijão, o arroz, a farinha de mandioca, o trigo e o bacalhau. Propôs que se duplicassem os impostos que gravavam os tecidos de algodão, os sapatos, os chapéus, os fósforos, a lenha, o carvão, o leite condensado, o vinho. Cobrariam 50% de impostos sobre as passagens de trens, bondes e barcas. Sempre sensível às necessidades do país, e tendo em vista o bem comum, estariam isentos a seda, o veludo, o champagne. O presidente adorou a proposta, que reputou como justa e profundamente democrática. De fato, os consumidores de champagne e aqueles que se vestiam com sedas e veludos não poderiam ser prejudicados. Geram empregos e movem a economia. Lógica nefária, que Lima Barreto denunciava.

A proposta foi ao Congresso, onde desdobrou-se intenso debate. Um deputado oposicionista insinuou que os novos impostos levariam à fome. O presidente defendeu o projeto. Alegou que “(…) mesmo que viessem a morrer muitos, seria até um benefício, visto que o preço da oferta é regulado pela procura e, desde que a procura diminua com a morte de muitos, o preço dos gêneros baixará fatalmente”. Tratava-se de uma lógica imbatível, insofismável. A nova tributação era elogiada pela coerência. Os conhecimentos de economia política do presidente e de seu ministro do tesouro eram sólidos e inquestionáveis.

Um outro oposicionista invejoso, porque os oposicionistas eram sempre invejosos em Bruzundanga, argumentou que a reforma tributária obrigaria que o povo andasse nu, dado que os preços das roupas mais simples e comuns seriam exponencialmente aumentados, o que era uma consequência dos novos tributos.

Deputados da situação discordaram. Segundo esses parlamentares, “o vestuário deve ser uma coisa majestosa e imponente, para bem impressionar os estrangeiros que nos visitem” Os preços da seda e da lã ficariam mais em conta. As populações mais simples se vestiriam com esses tecidos mais nobres, gerando, nos olhos dos estrangeiros, uma admiração por nossos país. Nunca se pensou em extrafiscalidade mais oportuna.

Por fim, outro deputado invejoso da oposição questionou que a população não iria mais se movimentar pelas ruas e estradas e rios e mares de Bruzundanga. Os novos impostos encareceriam os preços do bonde e das barcas. O presidente e seus parlamentares aliados também discordaram. Pelo contrário, argumentavam, a população receberia um benefício. O barateamento das passagens era um mal a ser combatido.

Passagens baratas colaboravam para a desmoralização das famílias. Com passagens mais caras diminuiriam “os passeios, os bailes, as festas, as visitas, os piqueniques, conseguintemente o encontro de namorados, a procura de casas suspeitas (…) de forma que os adultérios e as seduções sensivelmente hão de ser mais raros”.

Mais uma vez, segundo Lima Barreto, a alegação era invencível. De fato, a família bruzungandense seria fortalecida por essa nova e sábia fórmula de tributação. A sátira sugere ao leitor que leis arcanas são justificadas por uma dialética que desafia qualquer forma de razoabilidade. Essa lógica, que se qualifica como o substrato último de medidas normativas de proteção aos mais poderosos, parece ser o denominador comum das repúblicas onde impera a hipocrisia. Trata-se de mero problema de legística, de estudo de qualidade das leis, que encontra em Bruzundanga campo fértil e apropriado de estudo.

Lima Barreto morreu pobre, doente, jovem e esquecido. Nunca foi aceito pela Academia e pelos imortais. Por muito tempo, resistia-se em reconhece-lo no cânon de nossos grandes escritores. Há uma biografia recente, de autoria de Lilia Schwarcz, editada pelo Companhia das Letras, que jogo muita luz e explicação na vida desse homem combativo.

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