Opinião

O dever constitucional de indicação do Procurador-Geral da República

Autor

  • Abhner Youssif Mota Arabi

    é juiz auxiliar da presidência do Supremo Tribunal Federal coordenador do Centro de Mediação e Conciliação do STF doutorando em Direito do Estado (subárea: Direito Constitucional) na Universidade de São Paulo (USP) mestre em "Direito Estado e Constituição" pela Universidade de Brasília (UnB) ex-assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal (2014-2018) e autor de livros capítulos de livros e artigos jurídicos.

1 de setembro de 2019, 6h17

Dentre os rumores quanto a quem sucederá a Raquel Dodge na Procuradoria-Geral da República, o término de seu mandato se avizinha. No próximo dia 17 de setembro, encerra-se o período de dois anos para o qual foi nomeada a atual

Procuradora-Geral, sem que ainda se tenha, ao menos publicamente, uma definição pelo Presidente da República sobre quem será o novo ou a nova indicado/a para o posto.

Com a proximidade do prazo e sem que se saiba quem é o indicado – que ainda deverá ser sabatinado e aprovado pelo Senado Federal (art. 52, III, ‘e’, da CRFB/88) –, já se vislumbra a necessidade de que o Ministério Público da União tenha um comandante interino.

A Lei Orgânica da instituição (Lei Complementar nº 75/1993), ao fixar suas normas gerais e a estrutura de seus órgãos, confere solução ao problema (artigo 27): no caso de vacância do cargo de Procurador-Geral da República, assumirá interinamente o Vice-Presidente do Conselho Superior do Ministério Público Federal (que é escolhido mediante eleição dentre os membros do Conselho), até que haja provimento definitivo do cargo.

A aplicação dessa regra não seria novidade, eis que já foi outras vezes invocada (v.g.: a subprocuradora-geral Debora Duprat assumiu interinamente o cargo de Procuradora-Geral da República por 22 dias após o fim do mandato de Antonio Fernando de Souza, antes de Roberto Gurgel tomar posse; tendo o mesmo ocorrido com a subprocuradora-geral Helenita Acioli em 2013, quando assumiu interinamente o cargo entre os mandatos de Roberto Gurgel e Rodrigo Janot). Trata-se, porém, de uma solução temporária, à qual não se pode querer atribuir ares definitivos, sob pena de se incorrer em medida de abuso constitucional.

Não há dúvidas quanto ao procedimento de nomeação do Procurador-Geral da República: a escolha do chefe do Ministério Público da União é atribuição constitucionalmente destinada ao Presidente da República, que deverá escolher um membro da carreira com mais de trinta e cinco anos de idade para um mandato de dois anos, permitida a recondução. Antes da nomeação, o indicado deverá ser aprovado pela maioria absoluta dos membros do Senado Federal, após a realização de sabatina perante sua Comissão de Constituição e Justiça.

Neste processo de escolha, um ponto de já aprofundada discussão diz respeito à necessidade ou não de observância, pelo Presidente da República, de lista tríplice que lhe é costumeiramente enviada pela Associação Nacional dos Procuradores da República – ANPR após votação interna à carreira. Sobre o ponto, ainda que se entenda que o respeito a esse costume democrático não cogente representaria importante deferência institucional e destacado sinal de compromisso com a democracia constitucional [1], de fato inexiste a obrigatoriedade de tal observância.

Isso porque diferentemente do que ocorre em relação aos chefes dos Ministérios Públicos Estaduais (artigo 128, § 2º, da CRFB/88), inexiste previsão constitucional de formação de lista tríplice para escolha do Procurador-Geral da República (artigo 128, § 1º, da CRFB/88).

Neste texto, porém, quer-se chamar a atenção para outro ponto: pode o Presidente da República não indicar, por tempo indeterminado e sem razão excepcional que justifique tal situação, seu escolhido ou escolhida ao posto de Procurador-Geral da República? A resposta deve ser negativa.

Com efeito, entendimento diverso representaria a possibilidade de o Presidente da República exercer ingerência indevida sobre o Ministério Público da União e o desempenho de suas funções institucionais, violando sua autonomia e independência funcional. Cumpre destacar que essa instituição – ainda que não constitua um Poder independente da República – foi alçada pela Constituição de 1988 ao patamar de uma instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, à qual incumbe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (artigo 127).

De outro lado, uma possível ameaça constante de destituição ad nutum ou a eventual pressão para que o Procurador-Geral da República interino atuasse em consonância com os interesses do Executivo para que fosse indicado como definitivo, reforçariam essa indevida intromissão.

Destaca-se, nesse sentido, que a Constituição também prevê procedimento específico para a destituição do Procurador-Geral da República, que, por iniciativa do Presidente da República, apenas poderá se dar mediante prévia autorização da maioria absoluta do Senado Federal. Trata-se de um mecanismo constitucional desenhado para, ao mesmo tempo, preservar a independência do Ministério Público – cujo chefe não pode ser destituído pela mera vontade unilateral do Presidente da República – e resguardar a separação de poderes, mediante a aposição de freios e contrapesos na atuação conjugada entre o Executivo e o Legislativo.

O caso revela exemplo de que nem sempre as regras formais do jogo democrático são suficientes à contenção de autoritarismos institucionais, havendo espaço para manipulações abusivas das normas constitucionais. Há que se relembrar que nem todo retrocesso democrático acontece de forma completa ou repentina, havendo formas mais sutis e perigosas de erosão institucional, precisamente quando se dão por meios internos à ordem jurídica e democrática.

Se não há no Brasil um retrocesso democrático estrutural ou um cenário tão crítico como o de outros países (Hungria e Polônia, por exemplo), há abusos episódicos que chamam a atenção. Há que se atentar para as tentativas de manejo abusivo das regras constitucionais e dos institutos democráticos – em etapas pouco perceptíveis e individualmente justificáveis por sua compatibilidade formal com a ordem constitucional – como ameaças internas e sutis à estabilidade das democracia constitucionais.

Nesse processo, exsurge fundamental o papel de controle exercido pelas Cortes Constitucionais na preservação das democracias constitucionais. No caso aqui apontado, ainda que se trate de prerrogativa exclusiva do chefe do Poder Executivo federal, a não indicação pelo Presidente da República de seu escolhido ou sua escolhida ao posto de Procurador-Geral da República, por tempo indeterminado e sem razão excepcional que justifique tal situação, representaria indevida omissão inconstitucional, a ensejar a possibilidade de seu controle pelo Supremo Tribunal Federal (que não poderia substituir a escolha do Presidente, mas reconhecer sua mora inconstitucional no exercício de atribuição sua, se não exercida em prazo razoável).

Deveras, na construção de uma reserva institucional constitucionalmente qualificada, deve-se promover o desincentivo a ações que, embora formalmente lícitas ou conformes ao ordenamento jurídico constitucional, possam revelar retrocessos democráticos. E, para tal fim, em momentos nos quais as instituições democráticas parecem falhar ou entrar em crise, as instituições independentes e não eleitorais, como o Poder Judiciário, apresentam-se como fortes baluartes estabilizadores. Afinal, sobre elas recai o poder de mediar o conflito, defender os valores enraizados na Constituição, e criar incentivos para o reequilibro do jogo democrático.


[1] Ziblatt e Levitsky tratam da importância do reforço de normas e práticas democráticas não escritas na construção de seus conceitos de tolerância mútua e reserva institucional, como meios de contenção do crescimento e ascensão democrática de populistas autoritários. In: LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro, Zahar, 2018.

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