Direito em transe

Sobre as memórias de um porteiro de milícias

Autor

  • Davi Tangerino

    é sócio do Davi Tangerino & Salo de Carvalho Advogados doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e da FGV-SP.

31 de outubro de 2019, 12h57

Spacca
Manoel Antônio de Almeida há perdoar o infame trocadilho. Ocupa o noticiário nacional o vazamento de um depoimento feito por um dos porteiros do condomínio do Rio de Janeiro onde têm casas, entre outros, o Presidente Bolsonaro, seu filho Carlos e o Sr. Ronnie Lessa, apontado como autor do homicídio de Marielle Franco e de Anderson Gomes. Segundo ele, quando Élcio Queiroz, igualmente apontado como envolvido nos referidos homicídios, esteve, no dia do crime, no referido Condomínio, teria pedido pela casa de Bolsonaro. Ainda, que, após se comunicar com a casa, com pessoa que julgou ser o “Seu Jair”, a entrada de Élcio teria sido autorizada. Constatando o porteiro que Élcio rumava a outra casa – a de Lessa – teria contatado novamente a casa de Bolsonaro; o interlocutor teria dito “saber para onde o visitante se dirigia”.

O depoimento, relevado pelo Jornal Nacional, teria se dado em autos sigilosos, o que não impediu seu conhecimento prévio, ao que tudo indica, tanto do Governador Witzel quanto de Bolsonaro, que teria inclusive descoberto o fato por meio do Governador, em convescote no Rio de Janeiro.

A Procuradoria-Geral da República e o Ministro Toffoli já conheciam os fatos antes da Globo, como é natural. A ambos incumbia se posicionar sobre eventual deslocamento de competência. Havendo menção indireta ao Presidente, e provas de que ele estava em Brasília no dia, o feito foi devolvido à justiça estadual do Rio de Janeiro.

A pedido do Presidente, o Ministro Moro pediu a apuração dos crimes de obstrução de Justiça, falso testemunho e denunciação caluniosa.

Fotos circuladas pelas mídias sociais mostram uma das promotoras com camiseta de Bolsonaro, e mensagens contra os esquerdopatas.

É a síntese do necessário. Pondero.

A decisão de Aras
Alegadamente associado ao bolsonarismo, colocou-se em dúvida a decisão de Aras. Dispondo apenas dos elementos narrados acima, fez bem o Procurador-Geral. A jurisprudência do STF é preponderante no sentido de que a mera menção a autoridade com prerrogativa não desloca a competência. De mais a mais, há indicação crível de que Bolsonaro estava em sessão na Câmara dos Deputados.

O conhecimento prévio de Witzel e de Bolsonaro
Correndo os autos em segredo de justiça, não há razão para que seu conteúdo fosse de conhecimento do Governador do Rio de Janeiro. Revelar segredo de que tem conhecimento em razão do cargo, com prejuízo a terceiro, é fato típico, segundo o Código Penal.

O papel do Ministro da Justiça na defesa da Presidência da República
O Ministro da Justiça tem um papel ambíguo nesse assunto. Em que pese seu papel dever se restringir a temas institucionais – e não a assuntos privados do Presidente, inclusive anteriores ao exercício presidencial – o Código Penal confere a ele a função de “requisitar” ao Ministério Público a apuração de crimes contra a honra do Presidente da República. Seria, portanto, razoável admitir que a ele incumbisse remeter à PGR pedido de apuração de crimes que impactem Jair Bolsonaro. Mas só. Envolvimento ativo do Ministério na apuração dos fatos seria desvio de finalidade; a Constituição é clara que isso é papel da polícia judiciária e das Comissões Parlamentares de Inquérito. Preponderou que também ao MP é lícito investigar crimes. E só.

Os possíveis crimes do porteiro
No referido pedido, o Ministro Moro pede a apuração dos delitos de obstrução de justiça (um anglicismo, me parece, tanto semântico quanto conceitual), de falso testemunho e de denunciação caluniosa.

Descartemos a denunciação. Nada nos autos aponta para uma imputação de crime ao Presidente. Em outras palavras: ele não disse “Bolsonaro matou ou mandou matar”. Ele apenas disse que alguém cuja voz entendeu ser a de Seu Jair autorizara a entrada de Élcio no condomínio. Isso não é, nem de longe, um crime.

Também não temos elementos para o crime de impedir ou embaraçar investigação de organização criminosa. O porteiro não tinha o poder de impedir nada, mas, de fato, poderia atrapalhar, oferecendo uma versão alternativa aos fatos. Mas isso é embaraçar?

A pergunta não é bizantina; justamente por causa do crime de falso testemunho.

O fato de dar informação falsa em inquérito policial configura o falso testemunho, com aumento de pena em caso de suborno ou com o fim de produzir provas no processo penal (art. 342 do Código Penal).

Assim, o potencial de atrapalhar uma investigação por meio de informação falsa corresponde a um tipo penal específico; há, assim, um aparente conflito de normas com o crime de embaraço a investigação de organização criminosa (art. 2º., par. 1º, da Lei das Organizações Criminosas), com pena mais grave.

A combinação das normas sugere que embaraçar há de ser entendida como aquela ação efetivamente capaz de atrapalhar de maneira substantiva uma investigação criminal, e não uma mera declaração falsa. Demanda um poder efetivo de perturbar, atrapalhar, prejudicar. Primeiro, porque equiparado ao verbo “impedir”, de modo que “embaraçar” deve ter a mesma desaprovação de impedir, já que no mesmo tipo, com penas idênticas. Em segundo lugar, porque essa figura é equiparada às de promover, constituir, financiar ou integrar ORCRIM. Uma análise conglobante do tipo deixa claro que o mero falso testemunho não atinge a gravidade esperada da conduta, pelo tipo.

Salvo, me parece, em uma hipótese: que o depoimento tenha sido orquestrado por agentes que buscavam desviar o foco da investigação, abrindo uma avenida alternativa ou mesmo excludente das até então traçadas na investigação. Mas mesmo esse cenário, diante da prova clara, e já nos autos, de que Bolsonaro não poderia ter atendido ao interfone, tornaria a potencialidade lesiva dessa declaração quase que irrelevante, do ponto de vista jurídico.

Competência e suspeição
A quem incumbiria investigar o potencial falso? Parece-me claro que à Polícia Civil e ao MP do Rio de Janeiro. A menção ao Presidente não me parece suficiente para deslocar a apuração para o a Justiça Federal. Esse crime protege o bem jurídico Administração da Justiça – se é que isso é bem jurídico, assunto para outro momento; se ofensa houve, foi à Justiça Estadual.

Mas o apoio declarado a Bolsonaro por uma das promotoras deveria gerar sua suspeição?

Sou totalmente contrário à vedação a magistrados e promotores de se filiarem a partidos políticos. Essa formalidade ajuda na sensação de isenção, mas é pura ilusão. Sempre votei conforme uma certa linha ideológica e nunca fui filiado a partido nenhum (salvo a carteirinha do Clube dos Tucaninhos, feita pelos pais, nos idos da década de 1980, quando eu era criança, mas acho que não vale). Se eu fosse obrigado a escolher uma única garantia processual penal, escolheria o dever de fundamentar. É isso que permite accountability das decisões, sejam do MP, sejam do Judiciário. Trocando em miúdos: a prudência recomendaria sim que a promotora não se envolvesse nesse caso. O fundamental, porém, me parece, é que as decisões estejam racionalmente expostas, sob crivo fundamentado do Judiciário. Cravar que a promotora poria sua simpatia partidária acima de seu dever legal é, por enquanto, simples conjectura.

Lacunas e conspirações
Encerro com provocações.

É possível que o porteiro não tenha mentido?

Luis Nassif afirma que o Condomínio não tem exatamente interfones; liga-se para um número – fixo ou celular – previamente cadastrado no sistema de comunição. Afirma, ainda, que no caso de Bolsonaro o telefone definido seria seu celular. Assim, ele poderia ter atendido ao “inteforne” naquele dia. Seria de fazer inveja a seriados americanos e, por isso mesmo, pouco provável.

Hipótese menos fantasiosa seria a de que o áudio à casa de Bolsonaro tenha sido apagado. Essa pode ser confirmada ou afastada mediante perícia.

Só me parece haver uma certeza nesse episódio: essa novela ainda não acabou.

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