Opinião

Barriga solidária: dúvidas e cuidados jurídicos

Autor

  • Ana Caroline Braun

    É advogada formada pela PUC-RS com especialização em Direito Empresarial graduada em Farmácia Bioquímica e sócia do escritório Rossi Maffini Milman & Grando Advogados com atuação na área contratual consultiva e contenciosa cível com foco em responsabilidade civil direito do entretenimento e direito do consumidor.

31 de outubro de 2019, 22h07

A reprodução humana assistida é cada vez mais procurada pelos casais que sonham com a maternidade ou paternidade e necessitam do auxílio da medicina. Segundo a Anvisa, de 2011 a 2016, o total de procedimentos de fertilização no país teve um crescimento de 159,92%, e no ano de 2018, de 18,7%.

São inúmeros motivos que conduzem à busca das técnicas assistidas, seja em razão de infertilidade, aumento das taxas de sobrevida e cura após tratamentos de câncer, seja porque o Supremo Tribunal Federal reconheceu como entidade familiar a união estável homoafetiva, trazendo a estas famílias também o desejo de gerar um filho ou, ainda, porque muitas mulheres, priorizando suas carreiras profissionais, postergam a maternidade para quando, com o avanço da idade, deparam-se com a diminuição da probabilidade de engravidarem.

Grande parte das técnicas já é conhecida pelo público, mas o que muitos desconhecem, e nem sempre se questionam no momento em que procuram as formas alternativas de reprodução humana, são os aspectos legais vinculados. Apesar de existir legislação, de forma esparsa, a matéria ainda é pouco desenvolvida no país.

Entre as técnicas alternativas existe a denominada gestação de substituição, também conhecida por barriga solidária, sobre a qual o Direito é ainda mais rudimentar. A técnica consiste, conforme sugere o nome, na transferência de um embrião para o útero de outra pessoa, que é a cedente temporária. Como a prática é considerada cessão temporária de um órgão, é proibida qualquer forma de remuneração da cedente. E é exatamente por esse motivo que a expressão “barriga de aluguel” é considerada imprópria.

Neste aspecto, a Lei 9.434/1997, que dispõe sobre transplantes, estabelece que comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano é crime punido com a pena de reclusão de três a oito anos e multa. Incorre na mesma pena quem promove, facilita ou aufere vantagem com a transação. Em países como Estados Unidos, Colômbia e Ucrânia, a remuneração da barriga solidária é prática legalizada, sendo procurada inclusive por casais brasileiros.

No Brasil, existem normas separadas que lidas, interpretadas e aplicadas em conjunto, viabilizam a técnica, mas não sem riscos. A despeito da dificuldade, a reprodução é referida em passagens da Lei de Biossegurança (Lei 11.105/05) e no Código Civil (artigo 1.597). Por seu turno, o Conselho Federal de Medicina (CFM) disciplina as práticas e limites dos profissionais a ele vinculados. Todavia suas resoluções não têm força de lei ou cogência, restando aplicáveis apenas aos médicos e não a demais agentes da sociedade civil.

A Resolução do CFM 2.168/2017 autoriza a cessão temporária de útero desde que exista empecilho da gestação ou se trate de união homoafetiva ou pessoa solteira, devendo a cedente temporária pertencer à família de um dos parceiros, até o quarto grau (lembrando aqui: primeiro grau – mãe; segundo grau – irmã/avó; terceiro grau – tia; quarto grau – prima) e não tenha qualquer caráter comercial.

Além das condições acima elencadas, estabelece uma série de documentos que devem ser previamente firmados pelas partes envolvidas, como o termo de consentimento, que tem o valor de um contrato, registrando a manifestação de vontade dos envolvidos. O documento é de suma importância, pois o arrependimento de cedentes é psicologicamente comum, uma vez que só conseguem ter real dimensão das consequências de seu ato durante o período da gestação.

Para se ter uma ideia do valor jurídico do registro das vontades, em 1988 foi submetida à apreciação do Judiciário dos EUA o caso de bebê nascido por meio de cessão temporária de útero, cuja cedente, após o nascimento, recusou-se a entregar a criança. A decisão concluiu pela validade do acordo. No Brasil é difícil o acesso à jurisprudência, pois os processos que envolvem gestação por substituição tramitam em segredo de justiça. O que chega ao conhecimento do público é o material divulgado pela imprensa. E, nascido o bebê, deparam-se pais e mães com o aspecto burocrático de registro da criança.

Há provimento do Conselho Nacional de Justiça que elenca os documentos para o registro, que são: declaração de nascido vivo, na qual não constará nome da parturiente; declaração do diretor da clínica, com a técnica e informações dos pacientes; certidão de casamento, escritura ou sentença de união estável; termo de consentimento prévio da doadora, autorizando o registro em nome de outrem; e se a doadora tiver cônjuge ou parceiro, um termo de aprovação prévia deste. Uma observação: se por descuido, ou por não raro desconhecimento, figurar o nome da gestante na declaração de nascido vivo, ainda assim seu nome não deverá constar na certidão de nascimento.

Apesar de ser um processo relativamente simples do ponto de vista técnico, a prática de barriga solidária muitas vezes acontece sem a observação dos limites impostos pelas resoluções do CFM e demais regras esparsas. Não é nem um pouco difícil encontrar pela internet mulheres disponibilizando seus úteros pelos mais diversos valores e, na outra ponta, casais oferecendo dinheiro a mulheres com perfis socioeconômicos que os agradem. Além da questão ética, o problema de um procedimento irregular é que todas as partes ficam completamente desprotegidas.

Nos pacientes de reprodução assistida, é compreensível que prevaleça a ansiedade sobre todo e qualquer outro valor. Todavia, a aparente simplicidade do roteiro não deve ser recebida com pouca responsabilidade. Cabe aos profissionais da medicina e do direito iluminar o caminho dos personagens de modo a que todos, em especial a nova criança, não acabem envolvidos em longas e dolorosas disputas com finais incertos, pois vale repetir, nosso país ainda não se dedicou a disciplinar direta e especificamente a gestação por substituição.

Autores

  • Brave

    É advogada, formada pela PUC-RS, com especialização em Direito Empresarial, graduada em Farmácia Bioquímica, e sócia do escritório Rossi, Maffini, Milman & Grando Advogados, com atuação na área contratual, consultiva e contenciosa cível, com foco em responsabilidade civil, direito do entretenimento e direito do consumidor.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!