Opinião

Locação para temporada e condomínios: colocando a bola no chão

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28 de outubro de 2019, 12h55

A inovação tecnológica e o novo padrão de consumo vêm promovendo transformações socioeconômicas que desafiam o direito. Nesse contexto, há um esforço crescente dos juristas em adequar a aplicação das normas à realidade emergente, conformando-a a interesses públicos mutantes.

Contudo, nem sempre mudanças de escala ou na forma de interagir implicam efetiva alteração na natureza dos negócios. É preciso diferenciar, dentre as situações postas, casos que de fato demandam novas construções jurídicas daqueles em que uma interpretação sistemática da legislação, à luz de precedentes análogos, basta para resolver as controvérsias.

Claramente é do segundo tipo a questão em torno da possibilidade de proibição, pelos condomínios edilícios, da disponibilização das unidades autônomas para estadia temporária e remunerada de terceiros por meio de plataformas digitais – dentre as quais o Airbnb é o principal exemplo. O tema é rico e, em vista da atualidade, merece análise técnica rigorosa.

Em que pese a fragilidade da posição, há quem defenda que a disponibilização temporária de imóveis por plataformas digitais seria suficiente para desvirtuar seu uso residencial. Em função da elevada rotatividade, o negócio supostamente configuraria atividade típica de meios de hospedagem. A interpretação literal do artigo 23 da Lei Geral do Turismo – LGT (Lei 11.771/08) basta para demonstrar o equívoco:

Art. 23. Consideram-se meios de hospedagem os empreendimentos ou estabelecimentos, independentemente de sua forma de constituição, destinados a prestar serviços de alojamento temporário, ofertados em unidades de freqüência individual e de uso exclusivo do hóspede, bem como outros serviços necessários aos usuários, denominados de serviços de hospedagem, mediante adoção de instrumento contratual, tácito ou expresso, e cobrança de diária.

A LGT é clara ao dispor que meios de hospedagem caracterizam-se pela prestação de “serviços de hospedagem”. Evidentemente, a mera disponibilização temporária do imóvel para alojamento não envolve prestação de serviço – como se depreende, por analogia, da Súmula Vinculante 31 do STF[1].

Não bastasse a incongruência do raciocínio, é automática a percepção de que a disponibilização remunerada de imóvel residencial para alojamento temporário é manifestação evidente de um tipo de locação, definida expressamente no artigo 48 da Lei do Inquilinato (Lei 8.245/1991):

Art. 48. Considera – se locação para temporada aquela destinada à residência temporária do locatário, para prática de lazer, realização de cursos, tratamento de saúde, feitura de obras em seu imóvel, e outros fatos que decorrem tão-somente de determinado tempo, e contratada por prazo não superior a noventa dias, esteja ou não mobiliado o imóvel.

Ou seja, o negócio jurídico viabilizado por plataformas de oferta de estadia temporária em imóveis residenciais configura locação para temporada. Seja realizada através de plataformas digitais ou de qualquer outro meio, isso não altera a natureza do uso do imóvel. Trata-se de uso residencial típico.

Assim como a locação ordinária, a locação para temporada integra o núcleo do direito do proprietário de livremente dispor de seu imóvel. No caso dos condomínios, é pertinente citar o artigo 1.335 do Código Civil Brasileiro (CCB/02):

Art. 1.335. São direitos do condômino:

I – usar, fruir e livremente dispor das suas unidades;

II – usar das partes comuns, conforme a sua destinação, e contanto que não exclua a utilização dos demais compossuidores; (…)

Assim, a locação do imóvel para temporada é direito do condômino, decorrente de seu direito de propriedade, previsto no artigo 5º, XXII da Constituição Federal (CF/1988). Sua prática não altera o uso residencial do imóvel, sendo facultada ao proprietário a partir do ato de definição do fim a que as unidades se destinam[2]. Trata-se de decisão restrita à esfera privada do proprietário, na linha do que ensina a melhor doutrina civilista ao tratar da propriedade condominial:

A utilização imediata, a fruição do bem para fins de exploração econômica e a disposição total (alienação) ou parcial (gravação de ônus real) do imóvel constituem decisões restritas à autonomia privada do proprietário […][3]

Assentado que os condôminos não dependem, a priori, de qualquer condição ou requisito para locar suas unidades, a segunda questão que se coloca é se a convenção do condomínio pode restringir esse direito, controvérsia que vem sendo analisada pelas instâncias judiciais do país.

A nosso ver, proibir os condôminos de locarem seus imóveis à temporada implicaria uma restrição excessiva ao seu direito de propriedade, contrariando a CF/88 e a legislação civil. Como esclarece o parágrafo único do artigo 2.035 do CCB/02 “[n]enhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública”. Nesse caso, a disposição da convenção de proibir uma espécie de locação acarretaria esvaziamento econômico do bem[4], afetando indevidamente seu valor de troca.

A vedação ou imposição de limites excessivos ao direito do condômino de locar sua unidade é, portanto, contrária ao ordenamento. Assim vem se posicionando grande parte dos Tribunais, como exemplifica decisão recente do STJ:

[…] AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DECLARATÓRIA. LOCAÇÃO POR PRAZO INFERIOR A 30 (TRINTA) DIAS. OMISSÃO DO TRIBUNAL ESTADUAL QUANTO AO CUMPRIMENTO DO REGIMENTO INTERNO E DA CONVENÇÃO COLETIVA, QUE FAZEM LEI ENTRE OS CONDÔMINOS, OS QUAIS NÃO SE OPÕEM A NORMA LEGAL. QUESTÃO OPORTUNAMENTE SUSCITADA. […] In casu, verifico que a utilização dos apartamentos para locação por temporada é uma prática corriqueira e legal, inclusive com previsão no artigo 48 da Lei 8.145/91. (…) o Código Civil assegura aos proprietários o direito de gozar de seus bens. Igualmente, a lei de locações determina que os aluguéis temporários possuem prazo máximo de noventa dias (art. 48). Diante dessas circunstâncias, convém perceber que a norma regimental encontra-se em expresso descompasso com a legislação, pois ao estabelecer apenas um prazo máximo para os alugueis por temporada, a norma, a contrario sensu, autoriza tal instituto por qualquer prazo inferior a este. É evidente o silêncio eloquente do legislador, pois poderia ter estabelecido prazo mínimo, mas contentou-se em apenas ditar o prazo máximo para essa modalidade de contrato.” (…) Desta maneira, não há nenhuma ilegalidade o fato da autora/agravada promover a locação do seu apartamento a pessoas estranhas ao condomínio por curto período de tempo. (…) [STJ – AREsp: 1174291 SE 2017/0240403-5, Relator: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, DJ 24/11/17]

Se muito, seria possível cogitar-se que, com eventual mudança da destinação do edifício, pudesse haver a restrição à celebração desse tipo de negócio pelos condôminos. Contudo, como dispõe o artigo 1.351 do CCB/02, mudança dessa ordem depende de aprovação unânime dos condôminos.[5] Assim, a discussão perde muito do sentido, já que, se todos concordam em não realizá-la, não haveria razão prática para proibi-la, a não ser em antecipação a controvérsias futuras.

Assim se posicionou recentemente o TJSP, conforme ilustram trechos do voto do Desembargador Morais Pucci, que conduziu decisão unânime:

“[…] a simples locação da unidade autônoma por curtos períodos não caracteriza hospedagem e nem mesmo desvirtua a destinação exclusivamente residencial do condomínio.”

“A proibição efetuada pelo condomínio de locação por temporada das unidades autônomas restringe os direitos dos condôminos, em especial o de gozar do imóvel e, para tanto, a convenção do condomínio exige aprovação em assembleia por unanimidade […]”

“[…] não havendo unanimidade entre os condôminos, o que é exigência de sua própria convenção condominial, deve-se, pois, considerar nula a tentativa de alteração da convenção para proibir a locação por temporada (…).” (TJ-SP; Apelação Cível nº 1124567-87.2017.8.26.0100 da Comarca de São Paulo; Relator: Morais Pucci)

Fica evidente que a realidade fática mudou, mas, nesse caso, o direito vigente segue dando conta de seu regramento. Alguém perguntará: sendo a prática de locação para temporada um direito do condômino, algo pode ser feito, preventiva ou reativamente, em relação a condôminos que abusem desse direito? A resposta é sim, diversas medidas podem ser adotadas, tanto para prevenir como para remediar situações assim.

De fato, há preocupações legítimas dos condomínios em relação a possíveis problemas gerados pela rotatividade acentuada de locatários. A principal é a eventual negligência em relação às normas de segurança, sossego, salubridade e boa convivência, em afronta aos deveres previstos no artigo 1.336, IV do CCB/02.

Preventivamente, o caminho natural é incluir, na convenção ou no regimento do condomínio, normas que mitiguem sua ocorrência. Exemplos concretos são: exigir que o locador para temporada informe, com certa antecedência, dados básicos sobre os inquilinos e o período da locação; ou que tome dos inquilinos a anuência em relação a regras condominiais. Vale lembrar que o direito do condômino não pode ser excessivamente restringido. Não pode o condomínio, por exemplo, proibir que os inquilinos usufruam das áreas comuns.[6]

Se a despeito das previsões houver prejuízo aos demais condôminos, também há alternativas jurídicas de defesa do direito de vizinhança. O próprio CCB/02 prevê a aplicação de severas multas ao condômino que reiteradamente descumpre seus deveres. No limite, o reiterado comportamento antissocial pode acarretar multa correspondente ao décuplo do valor da contribuição para as despesas condominiais (art. 1.337). Seja por transtornos decorrentes de locação ou de qualquer outra prática, observados os requisitos legais, os condomínios têm instrumentos para coibir o comportamento nocivo de certos condôminos.

Conclusão
Nem todos os desdobramentos das inovações tecnológicas demandam formulações jurídicas novas. O exemplo da locação para temporada, alçada a outro patamar a partir das plataformas digitais, ilustra que há situações em que a interpretação do direito posto é suficiente para resolver as controvérsias e respalda a adoção de alternativas frente a situações indesejadas.

Como se viu, a locação para temporada não altera a natureza residencial do uso do imóvel, sendo a faculdade de celebrá-la um desdobramento do direito de propriedade dos condôminos. Sua vedação só é permitida diante de decisão unânime dos condôminos, nos termos do artigo 1.351 do Código Civil. Isso não significa, de outro lado, que os condomínios não possam adotar providências preventivas e reativas em relação a possíveis abusos desse direito.


[1] Eis o teor da Súmula Vinculante 31, editada pelo STF: “É inconstitucional a incidência do imposto sobre serviços de qualquer natureza – ISS sobre operações de locação de bens móveis.”

[2] Prevê o CCB/02: “Art. 1.332. Institui-se o condomínio edilício por ato entre vivos ou testamento, registrado no Cartório de Registro de Imóveis, devendo constar daquele ato, além do disposto em lei especial: I – a discriminação e individualização das unidades de propriedade exclusiva (…); II – a determinação da fração ideal atribuída a cada unidade (…); III – o fim a que as unidades se destinam.”

[3] FARIAS, Cristiano Chaves de. Manual de Direito Civil – Volume único / Cristiano Chaves de Farias, Felipe Braga Netto, Nelson Rosenvald – Salvador: Ed. JusPodivm, 2017, p. 1537.

[4] Como afirmam Beil e Oliveira: “[…] restringir o direito à locação do bem impõe ao proprietário uma limitação severa ao direito de propriedade, a qual inclusive lhe acarreta ônus pouco razoáveis em termos econômicos.” (BEIL, Eduardo; OLIVEIRA, Álvaro Borges de. A limitação ao direito de propriedade nos condomínios edilícios e sua função social. Âmbito Jurídico, Rio Grande, 35, 01/12/2006.

[5] Dispõe o art. 1.351 do CCB/02: “Art. 1.351. Depende da aprovação de 2/3 (dois terços) dos votos dos condôminos a alteração da convenção; a mudança da destinação do edifício, ou da unidade imobiliária, depende da aprovação pela unanimidade dos condôminos.”

[6] Vide art. 1.339 do CCB/02: “[o]s direitos de cada condômino às partes comuns são inseparáveis de sua propriedade exclusiva; são também inseparáveis das frações ideais correspondentes as unidades imobiliárias, com as suas partes acessórias”.

Autores

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    é sócio do escritório Vinicius Marques de Carvalho Advogados (VMCA), ex-presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e professor do Departamento de Direito Comercial da Universidade de São Paulo (USP).

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