Segunda Leitura

Derrame de petróleo no Nordeste e o Tribunal Penal Internacional

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

27 de outubro de 2019, 10h20

Spacca
No dia 30 de agosto passado manchas de petróleo chegaram ao litoral do Estado de Pernambuco, causando preocupação geral. A ocorrência chegou à imprensa internacional através de uma expressiva foto de um menino “saindo do mar repleto de óleo na praia de Itapuama, Cabo de Santo Agostinho, Região Metropolitana do Recife”.[i] De lá para cá o fato foi se agravando, enorme quantidade de petróleo atingiu oito estados e no dia 25 deste mês chegou em Ilhéus, sul do Estado da Bahia.[ii]

O fato é verdadeira tragédia, pois ocasiona danos ambientais de enorme gravidade, sociais porque pescadores terão reduzida sua capacidade de exercerem sua profissão e econômicos, estes traduzidos no cancelamento de viagens turísticas à região, cujas praias, pela beleza que possuem, atraem turistas de todo o Brasil. São danos de difícil avaliação neste momento.

As medidas paliativas para minimizar o desastre e a tentativa de descobrir a autoria, correm por conta da Marinha de Guerra. Em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, o Almirante Ilques Barbosa Júnior relatou que “o culpado não foi identificado, mas está entre os navios que circularam em alto-mar, na faixa de 300 a 500 quilômetros na costa leste de Sergipe”.[iii]

De concreto sabe-se apenas que, segundo pesquisas da Universidade Federal da Bahia, o petróleo origina-se da Venezuela.[iv] De elogiável, cita-se o esforço de todos os que atuam no recolhimento do material que chega às praias, entre eles muitos voluntários. De inteligente, as tentativas em Pernambuco e na Bahia de aproveitamento dos resíduos para fazer cimento e produzir carvão.[v]

Mas, quais os resultados concretos esperados? A resposta é simples: redução máxima dos danos causados e a apuração de responsabilidades, com punição dos autores.

Críticas e declarações genéricas, ações judiciais com eventual condenação da União por isto ou aquilo, politização da trágica ocorrência, em nada auxiliarão.

Na verdade, o desastre ambiental ocorrido tem uma vítima direta que é o Brasil, porém atinge toda a humanidade. Apesar disto, no âmbito internacional paira um silêncio eloquente. Talvez este caso possa servir para uma nova postura do Tribunal Penal Internacional, o TPI.

Sobre esta importante Corte Internacional, registrei nesta coluna, no ano de 2010,[vi] que o “seu marco inicial foi em 17 de julho de 1998, quando 120 Estados adotaram o Estatuto de Roma, como base jurídica para o estabelecimento do Tribunal Penal Internacional permanente. O Estatuto de Roma entrou em vigor em 01 de julho de 2002, após a ratificação por 60 países. O TPI é um tribunal de última instância, que tem por objetivo julgar pessoas acusadas dos crimes mais graves e de preocupação internacional, ou seja, o genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra. É formado por dezoito juízes, dos quais três compõem a presidência do tribunal. Atualmente, 114 países são Estados Partes do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional.”

No preâmbulo o Estatuto de Roma, onde se deliberou pela criação do TPI, afirma-se que “os crimes de maior gravidade, que afetam a comunidade internacional no seu conjunto, não devem ficar impunes e que a sua repressão deve ser efetivamente assegurada através da adoção de medidas em nível nacional e do reforço da cooperação internacional”.[vii]

No art. 7º do Estatuto, estabelece-se as ações que podem ser submetidas à jurisdição do TPI. Entre elas, o art. 7º, alínea “k”, menciona: “Outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental.”

No caso da poluição marítima em análise, o primeiro passo seria descobrir se a ação foi criminosa, hipótese esta que não se descarta. Se chegar-se a algum resultado, poderiam os responsáveis por ela serem levados a julgamento na Corte Internacional?

Do ponto de vista da adequação dos fatos à figura típica da alínea ’k”, seria necessário que a poluição tivesse sido causada intencionalmente. Em caso de mera culpa (imprudência, negligência ou imperícia), a competência do TPI seria de pronto descartada.

Supondo-se que tenha sido doloso, seria necessário analisar a competência jurisdicional do Brasil. É que os artigos 6º e 7º do Código Penal, que tratam da extraterritorialidade da aplicação da lei brasileira, não apontam para hipótese como esta, em que o navio causador do dano estava em águas internacionais.

Além disto, entre os dispositivos do Estatuto de Roma, está o art. 17, 2, “b”, que admite o acesso à Corte no caso de “Ter havido demora injustificada no processamento, a qual, dadas as circunstâncias, se mostra incompatível com a intenção de fazer responder a pessoa em causa perante a justiça;”

No caso brasileiro, a demora ainda não teria existido, mas a sua presunção deixa de ser apenas um risco quando se pensa no processamento de uma ação penal no Brasil que, além das dificuldades na apuração das provas, , tramitaria em quatro instâncias até chegar ao trânsito em julgado, tornando pouco efetiva a possibilidade de execução de eventual condenação em tempo razoável.

Se assim é, poderia a Corte Internacional assumir nova postura, enfrentando a complexa questão de avançar na sua competência. Refiro-me à possibilidade de que, crimes contra a humanidade, cujos efeitos se revelem nocivos diretamente a país signatário do Tratado de Roma, pudessem por ela serem processados e julgados.

A relevância da questão ambiental pode ser decisiva neste grande passo. Talvez esta tragédia possa ser a justificativa da grande virada. A pensar.


https://g1.globo.com/natureza/desastre-ambiental-petroleo-praias/noticia/2019/10/25/satelite-aeronave-matematica-e-sonares-entenda-as-acoes-e-os-desafios-na-busca-da-origem-das-manchas-de-oleo-no-nordeste.ghtml

i Ana Carolina Mendonça: https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2019/10/24/interna_nacional,1095569/apos-foto-de-menino-coberto-de-oleo-circular-o-mundo-especialistas-al.shtml.

ii https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2019/10/25/manchas-de-oleo-chegam-a-ilheus-no-litoral-sul-da-bahia.htm

iii O Estado de São Paulo, 23/10/2019, A18.

iv https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2019/10/10/analise-da-ufba-aponta-que-oleo-que-atinge-litoral-do-ne-e-da-venezuela.ghtml

v O Estado de São Paulo, 25/10/2019, A18.

vi Os Tribunais Internacionais e a Justiça Doméstica. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2010-nov-28/segunda-leitura-tribunais-internacionais-justica-domestica.

vii http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4388.htm.

Autores

  • é chefe da Assessoria Especial de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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