Ambiente jurídico

A distribuição do dano e do risco ambiental no espaço social (parte 2)

Autor

  • Talden Farias

    é advogado professor associado da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) professor adjunto da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro da Comissão de Direito Ambiental do IAB.

24 de novembro de 2019, 10h11

Spacca
Em certo sentido, todo o sistema econômico parte de uma apropriação do meio ambiente, já que em última análise os bens de consumo são retirados direta ou indiretamente de natureza. Foi esse processo de aproveitamento econômico dos recursos naturais, capitaneado pela industrialização e pelo desenvolvimento tecnológico, que gerou o risco global ameaçando a incolumidade de todos os seres humanos e até do planeta inteiro.

A questão é que parece haver uma proporção inversa entre na distribuição do acesso ao direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e dos riscos ecológicos dentro do espaço social. A realidade aponta que os grupos sociais que gozam mais das benesses do meio ambiente estão menos sujeitos aos riscos ecológicos, ao passo que os grupos que menos se beneficiam do processo de extração e de aproveitamento dos recursos naturais sofrem mais com os riscos e, consequentemente, com os danos ecológicos.

O processo econômico e social que resultou na constituição da sociedade de risco trouxe vantagens, normalmente traduzidas por tudo aquilo que representa progresso, a exemplo dos produtos eletrônicos, dos serviços de saúde, das telecomunicações, dos transportes e de outras maravilhas da tecnologia. Por outro lado, esse mesmo processo trouxe também implicações negativas, como o esgotamento dos recursos naturais, a geração de resíduos, a disseminação de doenças e a produção de riscos ecológicos de uma forma geral1.

O problema é exatamente a proporção inversa entre o grupo que tem mais acesso aos bens e serviços de consumo, originados com base na extração direta ou indireta dos recursos naturais, e o grupo que sofre mais com a degradação ao meio ambiente. Forma-se assim um apartheid ambiental: de um lado está a parcela da sociedade que tira de inúmeras formas proveito do meio ambiente, por ter a propriedade dos bens naturais e por poder adquirir os produtos e serviços, ao passo que do outro restou a parcela que, além de não conseguir tal acesso, ainda é obrigada a arcar com o passivo ambiental alheio. Ainda que os riscos e danos ambientais possam atingir a todos, o fato é que aqueles mais vulneráveis socialmente estão mais sujeitos a eles.

Essa desigualdade se revela no espaço social, seja na zona rural ou urbana, tendo em vista a distribuição dos danos e dos riscos. Entretanto, é nas cidades onde esse conflito é mais forte, pois o jogo de forças fica mais evidente: basta ver onde se encontram os investimentos públicos em infraestrutura e onde existe o maior adensamento populacional2. Além do mais, é nelas e por elas que esse conflito nasce, pois o consumo é predominantemente urbano, enquanto o fornecimento de matérias primas para esse consumo é predominamente rural.

É possível afirmar que todo o Direito Ambiental gira em torno da questão dos danos ambientais, seja no que pertine ao aspecto preventivo, reparatório ou repressivo3. Normalmente, as características que a doutrina atribui ao dano ao meio ambiente são as seguintes: pulverização das vítimas, sinergismo (efeito sinérgico), difícil ou impossível reparação, difícil ou impossível valoração econômica, imprevisibilidade das consequências, ilimitação espacial e ilimitação temporal. Contudo, o dano e o risco ambiental possuem uma outra característica importante, que é a injusta distribuição no espaço social.

A concentração dos benefícios da exploração do meio ambiente em poucas pessoas, bem como da capacidade de decidir sobre a transferência social dos custos dessa exploração, faz com que a pressão sobre os recursos naturais continue desmedida e inconsequente4. Isso implica dizer que a proteção do meio ambiente guarda relação com o combate à exclusão social, já que esta termina por ser também uma forma de exclusão ambiental.

A restrição ao acesso ao direito material ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, por parte da maioria da população, faz com que haja pouca participação em tais políticas públicas. O cidadão que não é efetivamente contemplado dificilmente se sentirá motivado a participar dos debates relativos à afirmação desse direito. Com isso, os instrumentos de participação popular existentes junto ao Poder Público não conseguem democratizar efetivamente a gestão ambiental, e muitas vezes acabam legitimando situações de interesse de grupos politicamente e socialmente privilegiados5.

A crise ambiental tem sido comumente reduzida aos limites físicos planetários, como se o problema fosse simplesmente a existência de uma população cada vez mais numerosa frente à capacidade limitada dos ecossistemas. Mesmo o problema dos resíduos tem sido enfocado dessa forma, como se fosse o extrapolamento da capacidade do planeta de absorvê-los e tratá-los naturalmente. É o caso do relatório divulgado pela World Watch Institute6, que afirma que o ser humano ultrapassou em vinte por cento os limites ecológicos da Terra e estima que se o estilo de vida do restante do mundo se equiparasse ao dos quinze países mais ricos seriam necessários mais um planeta e meio.

Isso implica dizer que não tem ocorrido a necessária contextualização econômica, política e social da problemática, que normalmente é abordada apenas em sua esfera ecológica. Atribuir à humanidade inteira a responsabilidade pela crise ambiental, quando, na verdade, uma parte da sociedade é pouco ou não é beneficiada por esse processo, é retirar qualquer conteúdo crítico sobre a matéria.

Nesse diapasão, Guillermo Foladori7 destaca que a crise ambiental não é somente técnica ou mesmo prioritariamente técnica, mas sobretudo de cunho social. Deve ser levado em consideração que existem classes e grupos sociais que se relacionam entre si e com o meio ambiente de uma forma completamente distinta. Com efeito, a despeito de se tratar de um processo econômico e histórico, com raízes culturais profundas, é evidente que nada disso é aleatório, posto que se trata de um jogo de ganhos e perdas8.

Tal discussão impõe uma releitura do conceito de desenvolvimento sustentável, que o relatório Brundtland, que foi elaborado em 1987 pela Comissão Mundial das Organizações das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (UNCED), definiu como o “desenvolvimento que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a capacidade de as futuras gerações satisfazerem suas próprias necessidades”. É possível que a grande preocupação com as necessidades das gerações futuras contribua para o esquecimento do debate a respeito das necessidades da geração presente, que em grande parte não tem tido acesso aos benefícios oriundos da exploração e da transformação dos recursos naturais.

Parece realmente uma contradição querer garantir a equidade intergeracional no que pertine aos recursos naturais quando nem mesmo próxima está a equidade intrageracional. Sendo o conceito de desenvolvimento sustentável formado por um tripé que inclui eficiência econômica, qualidade ambiental e justiça social, a sua concretização só ocorrerá no momento em que se possa garantir um piso vital mínimo ambiental aqueles grupos e pessoas socialmente mais vulneráveis9.


1 “Esses problemas ecológicos podem ser estudados por meio da análise de duas gerações. A primeira delas diz respeito à prevenção das causas e dos efeitos da poluição, bem como a questões relacionadas com a subjetivização do direito a um ambiente sadio como um direito fundamental, possuindo como característica marcante a linearidade dos efeitos produzidos. /A segunda geração, por sua vez, trata de problemas de alcance global e consequências duradouras, transcendendo as fronteiras nacionais. Em razão disso, as respostas a tais ameaças não podem se dar somente em nível local, exigindo também a cooperação internacional. É o caso, por exemplo, da destruição da camada de ozônio e da biodiversidade” (LIMA, Emanuel Fonsêca. Injustiça climática e povos autóctones. PERALTA, Carlos E.; ALVARENGA, Luciano J.; AUGUSTÍN, Sérgio (orgs). Direito e justiça ambiental: diálogos interdisciplinares sobre a crise ecológica. Caxias do Sul: Educs, 2014, p. 122).

2 “A estrutura espacial de uma cidade capitalista não pode ser dissociada das práticas sociais e dos conflitos de classes também reflete-se na luta pelo domínio do espaço, marcando a forma de ocupação do solo urbano. Por outro lado, a reciproca é verdadeira: nas cidades capitalistas, a forma de organização do espaço tende a condicionar e assegurar a concentração de renda e de poder na mão de poucos, realimentando assim os conflitos de classe.” (ABREU, Mauricio de A. Evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPLANRIO. 1997. p. 15). “Outro indicador socioeconômico que reflete bem o nível de desigualdade planetário é o que se refere às condições de habitação, mediante o percentual da população favelada. Segundo pesquisas realizadas pela ONU, 32% da população mundial, ou seja, praticamente um terço, vive em favelas. Enquanto na Europa apenas 6,2% da população é favelada, na América Latina são 31,9% (127 milhões de pessoas) e na África Subsaariana são 71,9% (166 milhões). Na outra ponta do espectro de consumo, a internet, apontada como instrumento decisivo do novo padrão tecnológico, atingia em 1997 mais de 90% dos 20% mais ricos do mundo, contra apenas 0,2% dos 20%mais pobres” (COSTA, Rogério H. da. PORTO-GONCALVES, Carlos Walter. A nova desordem mundial. São Paulo: Editora UNESP, 2006, p. 48). “(…) as cidades geram a maior parte das atividades econômicas, consomem a maior parte dos recursos naturais e produzem a maior parte da poluição e do lixo. […] nos países em desenvolvimento, a rápida urbanização concentrará nas cidades 90% do crescimento populacional e do crescimento econômico, intensificando os problemas do meio urbano.” (DIAS, Genebaldo Freire. Pegada ecológica e sustentabilidade humana. São Paulo: Gaia, 2002, p. 25).

3 “Portanto, para que se tenha um dano efetivo e não hipotético resultante da ação do poder público é necessário que este seja injusto, lese efetivamente o direito do particular, represente uma diminuição na fruição de um bem lícito anteriormente existente e corresponda a uma perda comprovada” (MOTA, Maurício. Pressupostos da responsabilidade civil do estado por danos ao meio ambiente. Revista de Direito da Cidade, Rio de Janeiro, vol. 04, n. 02, 2012, p. 175).

4 ACSELRAD, Henri. Justiça ambiental: ação coletiva e estratégias argumentativas. In: ACSELRAD, Henri; PÁDUA, José Augusto de; HERCULANO, Selene (orgs). Justiça ambiental e cidadania. São Paulo: Delume Lumará, 2004, p. 32-33.

5 A respeito da participação, Vânia Siciliano Aieta afirma que “da mesma forma que o princípio de Estado de Direito, também o princípio democrático perfaz-se como um princípio jurídico-constitucional, apresentando dimensões materiais e procedimentais no âmbito normativo. No campo das dimensões materiais, fulcra-se na observância de valores e princípios tais como a soberania popular, a garantia dos direitos fundamentais, o pluralismo político e a organização política democrática. Por sua vez, no campo procedimental, vincula a legitimação de Poder ao atendimento de determinadas regras e processos” (AIETA, Vânia Sciliano. Democracia: estudos em homenagem ao professor Siqueira Castro. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 55).

6 Living Planet Report. Disponível em: http://www.wwf.org.br/informa/doc/livingplanet_2002.pdf. Acesso em: 15.mar.2015.

7 FOLADORI. Guillermo. Limites do desenvolvimento sustentável. São Paulo: Unicamp, 2001, p. 209.

8 “Ar poluído, ruídos irritantes, congestionamento de tráfego, poluentes químicos, riscos de radiação e muitas outras fontes de estresse físico e psicológico passaram a fazer parte da vida quotidiana da maioria das pessoas. Esses múltiplos riscos para a saúde não são apenas subprodutos casuais do progresso tecnológico; são características integrantes de um sistema econômico obcecado com o crescimento e a expansão, e que continua a intensificar sua alta tecnologia numa tentativa de aumentar a produtividade” (CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação: a ciência, a sociedade e a cultura emergente. São Paulo: Cultrix, 1982, p. 226-227). “A degradação ambiental não é uma consequência acidental do modelo de desenvolvimento econômico, trata-se de uma característica central da forma como está organizada a produção e o consumo na sociedade da segunda modernidade. O modelo de desenvolvimento tem sido guiado pela lógica de mercado, atendendo unicamente aos imperativos da produção e às leis do rendimento econômico. Tal modus vivendi tem provocado uma difusão dos riscos ambientais. Esses riscos têm um caráter global e sinergético, pois não respeitam as fronteiras, nem as diferenças sociais; seus efeitos são intemporais, uma vez que afetam a qualidade de vida dos seres humanos no presente, mas também a sobrevivência das futuras gerações e de todas as espécies que habitam o Planeta” (PERALTA, Carlos E. A justiça ecológica como novo paradigma da sociedade de risco contemporânea. PERALTA, Carlos E.; ALVARENGA, Luciano J.; AUGUSTÍN, Sérgio (orgs). Direito e justiça ambiental: diálogos interdisciplinares sobre a crise ecológica. Caxias do Sul: Educs, 2014, p. 15).

9 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 183-184.

Autores

  • Brave

    é advogado e professor de Direito Ambiental da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), doutor em Direito da Cidade pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor em Recursos Naturais pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Autor do livro "Licenciamento ambiental: aspectos teóricos e práticos" (7. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019).

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