Opinião

Os atos de improbidade que violam princípios: um paradoxo

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25 de outubro de 2019, 8h14

Como denunciam os últimos textos publicados nesta coluna, temos nos dedicado ultimamente ao exame dos atos de improbidade em espécie. Avançando nesse estudo, hoje cuidaremos do artigo 11 da Lei n. 8.429/1992, que trata das condutas atentatórias aos princípios da Administração Pública, e já anunciamos de pronto que talvez nenhum outro dispositivo acentue mais a delicada tensão que opõe efetividade e abuso.

Como já temos reiteradamente dito neste espaço, a Lei de Improbidade nasceu sob o signo de um conflito: abarcar o máximo de condutas deletérias do patrimônio público, sem, contudo — até por conta de seu viés sancionador —, acabar funcionando como uma norma punitiva em branco, capaz de patrocinar injustiças e de gerar um temor reverencial normativo a deitar suas sombras sobre os gestores.

 Daí nosso anúncio inicial. O artigo 11, mercê de sua amplitude, parece funcionar quase como um enquadramento residual de condutas que não hajam correspondido aos tipos presentes nos incisos dos artigos 9º e 10 — embora já sejam eles por vezes bastante amplos. Mais que uma afirmação intuitiva, essa conclusão possuiu respaldo empírico a partir de relevante trabalho coordenado por Rafael Araripe Carneiro, que, ao examinar oitocentos julgados do Superior Tribunal de Justiça exarados entre 2005 e 2018, identificou 50% das ações de improbidade com fundamento, em parte ou no todo, exatamente no referido artigo 11.[3]

Pior que isso, não fosse suficiente o caráter aberto ostentado pelos princípios, adotados como parâmetro de controle pelo artigo 11, a norma, ao lançar a expressão “notadamente”, estabelece um rol exemplificativo de atos ímprobos, um catálogo a ser preenchido com desenvoltura pelo intérprete. A bem da clareza, vale transcrever o caput: “Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente: (…).”

Detendo-nos inicialmente sobre as expressões que acompanham os princípios (honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições), convém relembrar nosso texto inaugural da coluna, quando dissemos que a improbidade perfaria uma modalidade qualificada de ilegalidade, de desonestidade ou de imoralidade. De fato, seria crível admitir que toda improbidade fosse imoral ou ilegal, mas inconcebível imaginar que o inverso fosse verdadeiro. É precisamente essa visão, todavia, que parece ter sido ignorada pelo artigo 11 quando, ao versar sobre os tipos nele elencados, pretende estabelecer uma relação continente-conteúdo em que esse supera enormemente aquele.

Acerca dos princípios administrativos propriamente ditos, talvez seja a moralidade[4] o que mais nos preocupa, por sua abstração e por uma tendência atual que tem nela buscado fiança jurídica para uma jurisprudência de valores. Sem contaminar nosso propósito com discussões excessivamente filosóficas, basta que digamos que direito e moral, conquanto possuam origem comum, não devem confundir-se, sob pena de um olhar deontológico do ordenamento criar uma abertura cognitiva tão gigantesca que acabe por deteriorar o sistema, seja por sua complexidade, seja por sua imprevisibilidade.

Seja como for — pela abertura das palavras presentes na norma, por sua remissão a princípios despidos de densidade normativa ou por seu caráter não taxativo —, a norma incrustada no artigo 11 acaba perdendo seu estratégico papel de orientador de condutas sociais para se transmudar em ameaça arbitrária e constante; argumento-curinga; cheque em branco. Ela produz ainda um verdadeiro paradoxo. Por sua vagueza e por sugerir rol não taxativo, acaba, a pretexto de salvaguardar a legalidade, indo contra o próprio princípio da legalidade (e da reserva legal). Essa inconstitucionalidade (por afronta aos artigos 5º, II e XXXIX, e 37, caput) foi bem aventada por Flávio Unes e Raphael Maia[5], que, ao censurar a possibilidade de pretensão sancionadora com base em princípios e condutas não expressamente tipificadas e previstas em lei, invocaram, em caráter ilustrativo, julgado do Supremo Tribunal Federal (ADPF 46, DJe 26.02.2010) em que se reputou inconstitucional norma punitiva de excessiva amplitude.

O problema se torna ainda mais grave quando, a teor do entendimento do STJ[6], se passa a exigir um desvirtuado dolo genérico (também apelidado de dolo in re ipsa, no sentido de ser ele presumido), em lugar de específico, com isso se querendo dizer que basta, como elemento subjetivo, que a conduta seja voluntária, ainda que não dirigida deliberadamente a um resultado danoso específico (?). É falar, não basta que os elementos objetivos estejam relacionados às escâncaras em rol não taxativo; também a demonstração de preenchimento do elemento subjetivo do tipo é desonerada da evidenciação de conduta conscientemente dirigida a um resultado ilícito, flertando com o que se convencionou apelidar de “crime de exegese”.

Por essas razões que a nosso ver andou bem o PL n. 10.887/2018 ao propor a inserção dos §§ 1º e 2º ao mencionado artigo 11, para que dele passe a constar que “Não configura improbidade a ação ou omissão decorrente de interpretação razoável de lei, regulamento ou contrato” e que “A violação aos princípios da administração pública também se configura quando a conduta do agente for orientada especificamente a acarretar dano antijurídico, patrimonial ou não patrimonial, ao particular.” É dizer, aprovada a proposta, restaria indiscutivelmente eliminada a invenção judicial do dolo genérico paro o fim de enquadramento de conduta aos tipos da norma.

No que concerne especificamente aos incisos do artigo 11, que buscam adensar as violações aos princípios administrativos, cumpre tecer breves comentários.

No inciso I, há a conduta de “praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência.” Trata-se aqui do chamado desvio de finalidade, reprimido pelo artigo 2º, e, da Lei n. 4.717/1965. Sobre ele, anotamos opinião no sentido de que a ilegalidade deve decorrer de má-fé, isto é, de comportamento conscientemente voltado para a produção de um resultado ilícito e desejado, motivo por que rechaçamos a ideia não somente de culpa, como de dolo genérico (em sentido contrário, portanto, à jurisprudência atual do STJ).

O inciso II, de sua vez, fala do retardo ou da omissão indevida de ato que deveria ser praticado de ofício. Em linguagem penal, cuida-se da prevaricação, que acaba concretizando a modalidade omissiva dos atos presentes no artigo 11. Naturalmente, a omissão em questão deve dizer respeito a providência cuja competência era outorgada ao agente reputado ímprobo e deve ser instrumental de seu desejo lesivo.

Por sua identidade, os incisos III e VII são abordados conjuntamente, dizendo respeito à revelação de “fato ou circunstância de que tem ciência em razão das atribuições e que deva permanecer em segredo” e, antes da divulgação, de “teor de medida política ou econômica capaz de afetar o preço de mercadoria, bem ou serviço.” Em ambos os casos, embora o último inciso verse sobre uma qualificação do primeiro, há a inobservância do dever de sigilo funcional, ao arrepio dos artigos 5º, X (quando ofende intimidade), e XXXIII, da Constituição, e 116, VIII, da Lei n. 8.112/1990. Atualmente, é tipo em que se enquadrariam condutas lamentavelmente tidas como frequentes, relacionadas a vazamentos de dados e de informações sob proteção.

A negativa de publicidade a atos oficiais consta do inciso IV e consubstancia contraponto aos dois incisos analisados acima, veiculando atentado ao princípio da publicidade quando a divulgação, ao revés de proibida, era exigida. Se, porém, a transparência é uma imposição — artigos 5º, XXXIII, e 216, § 2º, da Constituição, e 2º, V, da Lei n. 9.784/1999, com reforço mais recentemente da Lei n. 12.527/2011 —, sua deturpação para promoção pessoal é também repelida (artigo 37, §§ 1º e 2º), por afronta à impessoalidade.

O inciso V toca na frustração da licitude de concurso público, princípio presente nos incisos I e II do artigo 37 da Constituição. Não somente se cuida da subversão de certame em curso, mas também quando esse deixa dolosamente de ser convocado, como em hipóteses não tão incomuns em que se recorre a servidores e a contratos temporários, em caráter precário, como modo de se burlar a exigência da seleção.

A falta de prestação de contas imposta ao agente é objeto do inciso VI e visa a punir o desrespeito ao artigo 70 da Constituição. Tamanha a gravidade da conduta, é ela também tipificada como crime de responsabilidade (artigo 34, VII, d, da Constituição).

Os demais incisos, mais recentes, enunciam o descumprimento das “normas relativas à celebração, fiscalização e aprovação de contas de parcerias firmadas pela administração pública com entidades privadas”, o descumprimento da “exigência de requisitos de acessibilidade previstos na legislação” a transferência de “recurso a entidade privada, em razão da prestação de serviços na área de saúde sem a prévia celebração de contrato, convênio ou instrumento congênere”. A eles, o PL n. 10.887/2018 propõe que se some um décimo primeiro inciso, que apena a frustração da “licitude de processo licitatório ou de processo seletivo para celebração de parcerias com entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los indevidamente, independentemente da ocorrência de dano.

 


[1] Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo. Mestre em Direito pela Universidade de Brasília. Professor na área de Direito Público. Sócio-fundador do escritório Mudrovitsch Advogados. Integrou a Comissão de Juristas instituída pelo Ato de 22/2/2018 do Presidente da Câmara dos Deputados para elaboração de anteprojeto da nova lei de improbidade administrativa.

[2] Doutorando, mestre e especialista em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público. Professor na área de Direito Processual Civil. Sócio em Mudrovitsch Advogados.

[4] Sobre o tema, recomendamos a leitura de JARDIM, Flávio J. de M.; PEREIRA, Flávio H. U. Direito claramente determinado: a necessária evolução da aplicação do princípio da moralidade nos processos sancionadores in WALD, Arnoldo; JUSTEN FILHO, Marçal; PEREIRA, César A. G.. O direito administrativo na atualidade: estudos em homenagem ao centenário de Hely Lopes Meirelles (1917-2017). São Paulo: Malheiros, 2017, p. 442-456.

[6] AgRg no AREsp 73.968-SP, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 2/10/2012.

Autores

  • é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília (UnB).

  • é advogado do Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito Constitucional, mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, professor de Processo Civil do IDP, diretor-adjunto da Escola Superior de Advocacia da OAB-DF e secretário-geral da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil.

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