Interesse Público

A Lei 13.874 (liberdade econômica) e o abuso do poder regulatório

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24 de outubro de 2019, 8h00

A Lei 13.874 proclama, em seu preâmbulo, a “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”, estabelecendo garantias de livre mercado, alterando diversas leis, dentre elas o Código Civil, a CLT, Lei das Sociedades Anônimas, Lei dos Registros Públicos.

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Grande parte das medidas pretendidas está relacionada com o instituto do poder de polícia, atividade estatal por meio do qual se conforma e limita a propriedade e atuação privada ao interesse da coletividade, mediante prescrições legais que, de per si, ou por meio de atos administrativos que a ela se seguem, como autorizações, licenças, interferem no agir particular.

Uma das importantes propostas da lei, com vistas a destravar a atividade econômica, parte do pressuposto de que a presença estatal pode se revelar excessiva, traduzindo obstáculo a ser transposto sem razão que assim justifique. Vale dizer, na visão que percorre a lei, algumas atividades econômicas, dado o seu baixo impacto e logo um risco diminuto de efeitos colaterais negativos, dispensariam expedição de atos autorizativos para funcionamento.

Evidente que não se trata de simples homenagem ao princípio constitucional da livre iniciativa ao qual não se pode tributar a franquia ao agir ilimitado ou liberto de exigências estatais. Assim fosse, não haveria espaço para a polícia administrativa, a despeito dos contornos mais ou menos incisivos da atuação dos agentes econômicos.

A questão está em identificar em que situações torna-se desnecessário o controle preventivo da administração pública, via autorizações e licenças, o que além de desinibir empreendimentos, pode permitir ganhos de eficiências, direcionando os agentes públicos para setores em que razões ambientais, de segurança ou sanitárias, entre outras, verdadeiramente reclamam controle.

Ainda sobre o poder de polícia, a lei está a prescrever o silêncio eloquente, fruto da omissão administrativa, incapaz de responder a tempo a postulação privada (inciso IX do art. 3º). Nos termos da norma aprovada pelo Congresso Nacional, a inércia administrativa será compreendida como aceitação tácita ao pedido para exercício de dada atividade.

A proposta é descongestionar a agenda econômica, eliminando sua condição de refém de silêncios administrativos. Coloca-se sobre o aparato estatal o encargo de executar a tempo seu dever. Sob essa ótica, a proposta deve ser bem recebida. Mas, nunca se pode desconsiderar que o poder de polícia não se resume apenas ao exame de pedidos de liberação. Assim, no futuro, já em curso dada atividade econômica cujo ato liberador decorreu não de licença estatal expressa, mas da sua inação, a administração pública ainda poderá atuar, realizando fiscalizações observados os contornos da legislação. Vale dizer, não se está a desautorizar a atuação administrativa de forma perene sobre o privado, porque no início operou-se a liberação tácita.

Por outro lado, se o ambiente empresarial recebe com alegria o silêncio eloquente, a redação da norma não esclarece de que prazo se está cuidar, gerando dúvidas sobre possíveis efeitos negativos. Explica-se: há prazos prescritos em lei. Nestes casos, não se vislumbra maiores ameaças. O risco está em casos em que a administração venha a fixar prazos casuisticamente, ausente norma a fazê-lo de forma geral. A norma faz alusão ao dever da administração de informar “expressa e imediatamente do prazo máximo estipulado para a análise do seu pedido”, o que reafirma o risco de prazos não delimitados em normas.

A realidade municipal, sobretudo, justifica maior apreensão diante da possibilidade real de inexistirem prazos na legislação municipal que disciplina licenças para funcionamento. O risco de corrupção diante da ameaça de prazos dilatados é real.

Noutro giro, vê-se importante previsão no inciso IV do art. 3º que prevê o efeito vinculante das decisões administrativas quando se tratar de atos de liberação de atividade econômica. A administração pública deve garantir respostas idênticas para situações similares. Além da aplicação do princípio da isonomia, evitam-se favorecimentos, perseguições e minimiza-se o risco de corrupção.

Permite-se, ainda, que o empreender saiba previamente o entendimento da administração pública, podendo, desta forma, amoldar o seu comportamento e a tomada de decisões. A uniformização do entendimento da administração pública leva, ainda, à racionalização e à eficiência, na medida em que o assunto é decidido uma única vez e aplicado em outras diversas situações.

A Lei 13.874/19 também inseriu a análise do impacto regulatório como medida importante a ser adequadamente tratada. O art. 5º determinou a realização da análise do impacto regulatório antes da edição e de alteração de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados. Essa análise deve considerar os possíveis efeitos do ato normativo para verificar a razoabilidade do seu impacto econômico.

Os estudos deverão ser norteados por uma metodologia e por quesitos mínimos. A metodologia, os quesitos, bem como as hipóteses em que será obrigatória a sua realização e eventuais casos de dispensa são definidos em regulamento ainda pendente de edição (parágrafo único do art. 5º).

Essas exigências, em verdade, não são novidades no ordenamento jurídico. A Lei das Agências Reguladoras – Lei nº 13.848/19 também ocupa-se do tema.

Aliás, desde o advento da Lei 13.655/18 é perceptível o movimento em direção ao consequencialismo. Decisões a serem tomadas nas esferas judicial, administrativa e controladora devem analisar as suas consequências práticas. Alternativas devem ser apresentadas e consideradas no momento da decisão, cuja análise deve, inclusive, fazer parte da sua motivação (art. 20). A função normativa não deve ficar à margem desta tônica.

A Lei nº 13.874/19 combate expressamente o abuso do poder regulatório, assim descrito, em síntese,  como aquele que (i) cria reserva de mercado; (ii) cria enunciado que impeça a entrada de novos competidores; (iii) exige especificação técnica que não seja necessária para atingir o fim desejado; (iv) redige enunciados que impeçam ou retardem a inovação e a adoção de novas tecnologias, processos ou modelos de negócios; (v) aumente custos de transação sem demonstrar benefícios; (vi) crie demanda artificial ou compulsória de produto, serviço ou atividade profissional, inclusive de uso de cartórios, registros ou cadastros; (vii) restrinja o uso e o exercício de publicidade e propaganda sobre um setor econômico, ressalvados, por obvio, as hipóteses legais; (ix) exija requerimentos, sob pretexto de inscrição tributária, que mitiga a possibilidade de desenvolver atividade econômica de baixo risco sem a necessidade de quaisquer atos públicos de liberação da atividade econômica, (x) introduza limites à livre formação de sociedades empresariais ou de atividades econômicas.

Cada um dos incisos merece um olhar mais detido, inclusive com vistas a verificar se não há desacertos. Mas a preocupação da adequação entre fins e meios é inerente ao princípio da proporcionalidade. No âmbito do processo administrativo federal, o art. 2º, VI da Lei 9.784/99[1] já vedava a imposição de ônus excessivo ao administrado. Às agências reguladoras também foi imposta a obrigação expressa na recente lei de se “observar, em suas atividades, a devida adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquela necessária ao atendimento do interesse público” (art. 4º).

A aplicação da figura do abuso do poder regulatório merece as conformações necessárias, pois não pode ter o condão de amputar o dever regulatório. A questão está em identificar em que situações e com qual densidade o poder regulatório deve atuar.


[1] VI – adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público;

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