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Opinião: há violação ao pacto federativo na reforma tributária?

23 de outubro de 2019, 6h08

Por Virgínia Pillekamp, Fernanda Sá Freire Figlioulo, Marco Behrndt

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No contexto das recentes discussões sobre reforma tributária, muitas vezes se ouve parafrasear H. L. Mencken, para o qual “para todo problema complexo, existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada”.

Essa afirmação é, sobretudo, lançada contra o texto da Proposta de Emenda Constitucional nº 45/2019 (“PEC 45”), de autoria do Deputado Baleia Rossi e encampada pelo Centro de Cidadania Fiscal (“CCiF”), que clama por uma maior simplificação do sistema tributário brasileiro ao pretender substituir cinco tributos indiretos (ICMS, ISS, PIS/COFINS e IPI) por um só, chamado de IBS – Imposto sobre Bens e Serviços.

Justa ou não, a atribuição da frase de Mencken à PEC 45 se faz por algumas razões. Entre elas, destacamos o argumento da perda da autonomia de Estados e Municípios na instituição de seus tributos, já que a PEC pretende congregar o ICMS e o ISS, de competência estadual e municipal, respectivamente, a tributos federais indiretos, cabendo a esses dois entes apenas a definição de suas alíquotas. Daí porque se diz que a PEC 45/2019 viola o pacto federativo, cláusula pétrea. Nessa medida, seria inconstitucional.

Para além das questões asseveradas por muitos no sentido de que a fixação de alíquotas conferiria, justamente, a autonomia de cada ente tributante; que a arrecadação do IBS será repartida proporcionalmente por União, Estados e Municípios, o que, novamente, daria guarida à estrita observância ao pacto federativo; que a história mostra que o pacto federativo nunca foi respeitado na prática – vide proposta de emenda do Consefaz que quer excluir a União do Comitê Gestor do IBS -, pensamos que há outras razões para se reputar referido argumento como questionável.

Isso porque, excluída a rixa entre União e Estados, será verdade que o sistema tributário atual, no papel e na prática, resguarda a autonomia dos entes tributantes e observa o pacto federativo?

Buscamos, para essa resposta, nos ater à história constitucional-tributária brasileira, com as ressalvas que rememoram a expressão do ex-ministro Pedro Malan de que “[n]o Brasil, até o passado é incerto”.

Na Constituinte de 1967, houve a substituição do Imposto sobre Vendas e Consignações (“IVC”) pelo Imposto sobre Circulação de Mercadorias (“ICM”). A mudança, à época, gerou grande repercussão e preocupação das administrações fazendárias, já que não somente se alteravam as siglas e as bases tributárias, mas também se estava migrando de um sistema cumulativo para o não-cumulativo.

O receio do futuro, tal qual ocorre na presente discussão sobre reforma tributária, 50 anos depois, residia não apenas na calibragem das alíquotas – havia Estados com alíquotas de IVC sensivelmente superiores a outros Estados -, como também no desconhecido sistema de débitos e créditos e como isso refletiria nos contribuintes e nas políticas fazendárias.

A despeito desse temor, dados demostram que a migração para um sistema não-cumulativo do ICMS impulsionou as receitas tributárias, gerando um expressivo crescimento do produto da arrecadação.

Todavia, os grandes senões das autoridades públicas à época foram (i) a alocação de riquezas para os Estados produtores; combinada com (ii) a necessidade de concessão de créditos tributários sobre imposto pago em outra localidade.

Em relação às queixas dos Estados menos desenvolvidos quanto à transferência de arrecadação, houve rápida resposta já no ano seguinte à Constituição Federal de 1967: instituiu-se a diferença de alíquotas interna e interestadual. Após a intensificação dos debates, caminhou a história para, em 1980, de forma inédita, haver diferenciação de alíquotas interestaduais a depender do Estado de destino, na métrica como conhecemos hoje (isso é, tal qual a Resolução nº 22/1989).

Com essa política, os questionamentos voltados à não-cumulatividade sob a perspectiva de o Estado ser compelido a conferir créditos de ICM pago em outra localidade acabaram se esvaziando. Esse é o ponto, justamente, que gostaríamos de comentar.

Ora, é certo que o sistema atual da Constituição Federal de 1988 beneficia a tributação da produção, também chamada de tributação de origem, com exceção feita a alguns blue chips (até nesses casos, como se sabe, na prática, não há como se verdadeiramente falar que há tributação no destino). Em paralelo, como mencionado, desde 1967, o imposto estadual é não-cumulativo.

Dessa forma, os locais com maior nível de produção e industrialização são também os locais com maior arrecadação. Dicotomicamente, quem efetivamente paga o imposto é o consumidor final, que não necessariamente está no mesmo local da produção.

A arrecadação do ICMS é (ou deveria ser) empregada pelos Estados e Municípios em políticas públicas sociais para educação, saúde e segurança.

Educação, saúde e segurança para quem? É evidente que a resposta tem que ser para o consumidor final, cidadão brasileiro. A destinação do produto da arrecadação para as pessoas jurídicas fabricantes ocorreria de modo transverso, ao conferir saúde, segurança e educação para seus funcionários.

Por esse viés, já se denota que há distorção da autonomia dos Estados e Municípios. Ora, se é a produção que, na essência, gera receita, como dizer que Estados e Municípios são autônomos o bastante para bem realizar políticas públicas e investir os recursos arrecadados em favor de sua população?

Outra questão que se coloca é: qual o nível de autonomia dos Estados se esses são obrigados, pelo princípio constitucional da não-cumulatividade, a conferir créditos a seus contribuintes de imposto pago em outra Unidade da Federação e que não gerou nenhum tipo de riqueza em seus territórios?

Esses dois pontos levaram à intensificação dos debates quanto à necessidade de adoção de métrica do ICM de 1967 para tributação sobre consumo, ou seja, para a tributação no destino, em detrimento da tributação na origem/produção.

A bem da verdade, a literatura nos indica que a essa necessidade de concessão de créditos (de terceiros) a seus contribuintes era fator muito mais crucial na discussão do que a do ponto quanto à alocação de recursos em favor da população. Independentemente, a necessidade de se migrar para um sistema de tributação no destino foi, sim, alvo de amplo debate justamente em função da falta de autonomia que a tributação na origem causava.

Mas porque, então, houve um esvaziamento dessa discussão?

Como já mencionado, o inconformismo dos Estados prejudicados com o ICM e sua não-cumulatividade foi logo e parcialmente remediada com a calibragem das alíquotas, sobretudo com a introdução das alíquotas menores e diferenciadas nas operações interestaduais.

Em paralelo, essa diferenciação de alíquotas impulsionou outro fator muito bem por nós conhecido em 2019: a guerra fiscal entre os Estados.

Nesse contexto, lembramos que a Lei Complementar nº 24 é de 1975, ou seja, após a definição de alíquotas menores para operações interestaduais que as alíquotas internas.

Porém, se à essa época a Lei Complementar nº 24 pouco inibiu a concessão de benefícios fiscais, após a diferenciação de alíquotas interestaduais entre Estados consumidores e produtores fingiu-se que a referida lei era letra morta.

Some-se a isso a alteração da base tributável em 1988, quando a Constituição Federal incorporou ao ICM o ‘S’ e as blue chips: derivados de petróleo, energia elétrica, transporte intermunicipal e telecom. Sabidamente, esses setores são altamente tributados e possuem, hoje, o maior peso de todos na arrecadação estadual, o que permitiu que os Estados pudessem conceder incentivos fiscais a outros segmentos da economia indistintamente. Ou seja, o aumento da base tributável, no papel, não surtiu um efetivo aumento, na prática, já que a política fiscal dos Estados foi a de trocar esse aumento por diminuição da carga tributária mediante a concessão de incentivos fiscais indiscriminadamente.

Nesse contexto, é certo que as discussões quanto à necessidade de migração para um sistema de tributação no destino perderam espaço para a guerra fiscal, que foi justamente impulsionada por medidas que tentavam amenizar as mazelas da tributação na origem (i.e., alteração das alíquotas interestaduais).

Feito esse panorama histórico, é curioso que, todas as vezes que se está diante de propostas de reforma tributária, levantem-se questões relativas à falta de autonomia e violação ao pacto federativo.

Institui-se o regime para tributação na origem, há violação ao pacto federativo. Pretende-se mudar para tributação no destino, insurgem-se novamente levantando a bandeira do pacto federativo.

Como se viu ao longo desse texto, quando da mudança do sistema cumulativo para o não-cumulativo, a crítica que se fazia era justamente de que o atual sistema que privilegia a tributação na origem não proporcionava a autonomia administrativa às Unidades Federadas tal como se detinha antes. Para remediar tal fato, propôs-se a migração do regime atual para a tributação no destino. Tal medida não foi adotada, mas, em substituição, mudaram-se as alíquotas interestaduais, abrindo campo para a concessão desenfreada de benefícios fiscais: a famigerada guerra fiscal.

E, hoje, o que se propaga é que abrir mão de políticas fiscais e não poder conceder benefícios fiscais seria violação ao pacto federativo.

A história parece ser sempre a mesma.

Outro grande problema do atual cenário tributário reside na questão das exportações. Estivéssemos diante da tributação no destino e sendo o destino o exterior, não haveria que se falar em incidência tributária no Brasil. Ocorre, porém, que a Constituição Federal de 1988 continuou optando pela tributação na origem, ao mesmo tempo em que, seguindo a tendência mundial apenas para esse aspecto, desonerou as exportações.

A ideia por detrás da desoneração das exportações seria a de não exportar tributos. Porém, como é sabido, esse objetivo não é plenamente alcançado, justamente por conta da combinação de tributação na origem e desoneração das exportações. Nesse nosso atual sistema, Estados preponderantemente exportadores precisam garantir créditos a seus contribuintes, sem aferir receita de ICMS sobre as saídas em exportação, quando a grande parcela desses créditos decorre de operações interestaduais em que o ICMS foi recolhido em favor de outro Estado.

Viciados e imersos que estão na política de guerra fiscal, esses mesmos Estados, em vez de pleitearem a mudança da tributação para o consumo/destino, pleiteiam pelo fim da desoneração do ICMS na exportação, na contramão do mundo e como se deter de contribuintes exportadores fosse algo a ser combatido, não criasse emprego e não gerasse riqueza em seus territórios.

Assim, fica a dúvida se a autonomia realmente per si é o grande obstáculo para o prosseguimento da Reforma Tributária que ora se discute. Muitas outras dúvidas se colocam e merecem – talvez – uma maior atenção da sociedade: haverá, de fato, manutenção de carga tributária ou teremos aumento e qual seria esse efetivo aumento? E os serviços suportariam tributação nas mesmas bases e alíquotas do que a comercialização de mercadorias? E importantes segmentos da economia que são tratados diferentemente suportarão essa alteração e terão folego para sobreviver e até competir no mercado externo? Como fica a importação desses produtos? Haverá alguma mudança na balança comercial? Haverá desoneração completa na exportação? E o período da transição de prazo excessivamente longo não traria ainda uma maior complexidade para os contribuintes? É esse o momento para uma alteração tão significativa em nossa estrutura tributária? A sociedade está preparada para essa transição?