Garantias do consumo

Bolsonaro repete Dilma nas ilegalidades contra defesa dos consumidores

Autor

  • Adalberto Pasqualotto

    é professor titular de Direito do Consumidor no programa de pós-graduação da PUC-RS e ex-presidente do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).

23 de outubro de 2019, 8h00

Spacca
O Presidente da República editou o Decreto 10.051, em 9 de outubro corrente, instituindo o Colégio de Ouvidores do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor. O órgão é destinado a propor diretrizes para o “controle social” das atividades dos órgãos e entidades que compõem o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor. Esses órgãos e entidades são, essencialmente, os Procon’s dos Estados e Municípios, a Senacon (Secretaria Nacional do Consumidor – Senacon, que preside o sistema) e as associações privadas de defesa do consumidor, conforme dispõe o art. 105, do Código de Defesa do Consumidor – CDC.

Aparentemente, o controle social seria indireto, advindo da atividade das ouvidorias nos Procon’s, uma vez que uma das funções do Colégio de Ouvidores seria estimular a criação desses órgãos. Uma vez que a população reclamasse de serviços insuficientes ou inadequados, a sociedade, indiretamente, influenciaria a atuação dos Procon’s. Convenhamos, porém, que é pouco para ser chamado de “controle social”, especialmente levando-se em conta a estrutura e o funcionamento do Colégio de Ouvidores, como se descreve a seguir.

O órgão terá como membros efetivos apenas o Ouvidor-Geral do Ministério da Justiça e da Segurança Pública (seu presidente) e um representante da Senacon. Portanto, trata-se de um órgão doméstico, uma vez que a Senacon pertence à estrutura desse Ministério. Além desses dois membros (repita-se, os únicos de existência obrigatória) poderão ser convidados a participar (faculdade, portanto, dos dois membros efetivos) um representante dos Procon’s, outro das suas ouvidorias (aonde elas existirem) e um terceiro das associações de consumidores. De todos os integrantes facultativos, o único com extração social é o representante das associações de consumidores. Todos os demais, membros efetivos ou eventuais, são ligados à administração pública. Se este fato não é negativo por si, é impróprio falar de “controle social” num colegiado em que apenas um dos seus cinco membros não pertence ao estamento oficial – e mesmo assim essa representação social isolada pode sequer existir, uma vez que a sua presença é potestade dos dois únicos membros efetivos.

Mais surpreendente do que essa estrutura é o modus operandi. Em primeiro lugar, não há transparência – o que contradiz a finalidade de controle social -, pois a divulgação das discussões havidas no Colégio de Ouvidores é vedada pelo art. 6º, § 4º, do Decreto, salvo anuência prévia do seu presidente. Outra estranheza é que o Colégio elaborará relatório anual das suas atividades, devendo endereçá-lo ao Ouvidor-Geral do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, o qual, redundantemente, é o presidente do próprio Colégio de Ouvidores. Um relatório para consumo interno.

O novel Decreto lembra outro, de 2013, o Decreto 7.963, editado em 15 de março daquele ano pela então Presidente Dilma Roussef. Foi então instituído o Plano Nacional de Consumo e Cidadania, gerido por um Conselho de Ministros que nunca funcionou e integrado por um Observatório Nacional das Relações de Consumo que até agora nada observou. Dois governantes tão distanciados ideologicamente se encontram na extremidade das suas diferenças, que têm em comum a ilegalidade dos atos praticados. Ambos instituíram por decreto entidades de supervisão e de controle de um sistema criado por lei, intangível de ser modificado por decisão executiva. O Sistema Nacional de Defesa do Consumidor – SNDC – não carece de tutela, a menos que o legislador que o instituiu assim o decida. O SNDC é o organismo central do sistema administrativo de defesa do consumidor. Tratando-se de órgão administrativo, deve ser suprido por ações executivas para bem cumprir as suas funções. O manual que orienta a atuação do governo em defesa do consumidor está no art. 4º do CDC: o governo de incentivar a criação e o desenvolvimento de associações representativas dos interesses legítimos dos consumidores. Assim seria criado um tecido social autêntico, que não teria necessidade de tutela externa. Outra diretriz legal de atuação governamental é que o Estado marque presença no mercado pela garantia de produtos e serviços com adequados padrões de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho. Faça-se isso e se terá a tão desejada eficiência econômica.

Não surpreende, porém, o padrão de comportamento do governo de plantão. Basta citar a malfadada criação de um grupo de trabalho, no Ministério da Justiça, para estudar a redução de impostos sobre o cigarro como forma de combater o contrabando. Uma das políticas públicas mais bem-sucedidas nas últimas décadas em favor da saúde pública é a de controle do tabaco. Basta dizer que a prevalência do tabaco no Brasil foi reduzida de 34,8%, em 1989 para 9,3% em 2018. Pois o referido grupo de trabalho ia em direção totalmente oposta. Ao invés de combater o contrabando como crime, preferiu olhá-lo sob a ótica de uma teórica análise econômica inspirada nos interesses da indústria do tabaco, mas incapaz de se sobrepor à eloquência das evidências. A tentativa apenas soçobrou graças à atuação do Ministério da Saúde, cujos escalões técnicos são dotados de alta qualificação e da experiência de décadas, articulados com sistemas científicos de excelência, como os do INCA e da Fiocruz.

O governo atual tem como princípio ideias datadas dos anos dourados nos Estados Unidos, de que o interesse dos consumidores seria indiretamente atendido pelo bom funcionamento da concorrência. Os tempos eram outros: havia pleno emprego e a prosperidade era geral. Kennedy, porém, desfez o mito ao lembrar que todos somos consumidores, enquanto Ralph Nader demonstrou definitivamente que esse pressuposto é falacioso. Na sequência, a partir dos anos 70, desenvolveram-se as ideias contemporâneas de defesa do consumidor, especialmente na Europa, que aportaram no Brasil via Código de Defesa do Consumidor. A experiência internacional demonstra precisamente o contrário do que se procura professar no Brasil de hoje: a eficiência reside em fortalecer o consumidor como forma de melhorar a concorrência.

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