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Lei de abuso de autoridade pode equalizar o procedimento fiscal

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23 de outubro de 2019, 8h00

Spacca
A Lei 13.869, de 5 de setembro de 2019, definiu os tipos penais atinentes ao crime de abuso de autoridade cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído. As condutas descritas na Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente público com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal. Evitando consagrar o chamado crime de hermenêutica, a lei foi expressa em prever que a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura crime de abuso de autoridade.

Pode ser sujeito ativo do crime de abuso de autoridade qualquer agente público, servidor ou não, da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de Território, compreendendo, mas não se limitando a servidores públicos e militares ou pessoas a eles equiparadas, membros do Poder Legislativo, membros do Poder Executivo, membros do Poder Judiciário, membros do Ministério Público e membros dos tribunais ou conselhos de contas.

Para efeito da lei, reputa-se agente público todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função em órgão ou entidade públicos. Assim, como se observa, a nova lei do crime de abuso de autoridade alcança todo e qualquer agente público, independente na condição formal de servidor público.

Os crimes previstos na lei são de ação penal pública incondicionada. No entanto, será admitida ação privada se a ação penal pública não for intentada no prazo legal, cabendo ao Ministério Público aditar a queixa, repudiá-la e oferecer denúncia substitutiva, intervir em todos os termos do processo, fornecer elementos de prova, interpor recurso e, a todo tempo, no caso de negligência do querelante, retomar a ação como parte principal. A ação privada subsidiária será exercida no prazo de 6 (seis) meses, contado da data em que se esgotar o prazo para oferecimento da denúncia.

São efeitos da condenação tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime, devendo o juiz, a requerimento do ofendido, fixar na sentença o valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos por ele sofridos, a inabilitação para o exercício de cargo, mandato ou função pública, pelo período de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e a perda do cargo, do mandato ou da função pública. A inabilitação e a perda do cargo público são efeitos condicionados à ocorrência de reincidência em crime de abuso de autoridade e não são automáticos, devendo ser declarados motivadamente na sentença.

A lei posterga a sua entrada em vigor para 120 (dias) dias após a sua publicação oficial (art. 45) e seguramente terá consequências na relação entre o cidadão brasileiro e os agentes públicos. A lei alberga alguns dispositivos que podem impactar a relação jurídica-tributária, notadamente aquela que se materializa no âmbito do procedimento fiscal.

Com efeito, nos últimos 30 (trinta) anos o Brasil assistiu a um reforço das prerrogativas do Fisco e dos privilégios e garantias do crédito tributário em detrimento das garantias do contribuinte. Fruto deste processo é a criminalização da relação jurídica tributária onde a conduta de deixar de pagar tributo (obrigação de caráter patrimonial) não raro tem se transformado, na visão das autoridades fiscais, em fato ilícito de natureza penal. O contribuinte passou, no Brasil, de fiscalizado para investigado e acusado, sem que lhe sejam asseguradas as garantias penais reservadas constitucionalmente ao acusado.

Registre-se, a propósito, que na esfera no Direito Criminal a pena somente é imposta ao acusado por autoridade judiciária após o devido processo legal e à plena demonstração da culpabilidade e reprovabilidade da conduta, ao contrário do que vem ocorrendo de forma absolutamente ilegal no processo administrativo tributário, onde o contribuinte já inicia o processo administrativo tendo que se defender de pena que lhe é imposta pela autoridade fiscal.[1]

O crescimento dos poderes legais do Fisco, o aumento das garantias e privilégios do crédito tributário, o agigantamento dos deveres acessórios, cuja inobservância dá ensejo a aplicação de multas draconianas quase sempre sem qualquer relação com o tributo devido, e a criminalização da relação jurídica-tributária não foram acompanhadas na mesma dimensão de salvaguardas e garantias constitucionais aos contribuintes, gerando um campo fértil para arbitrariedades na esfera fiscal, raramente reparadas e obstadas tempestivamente pelo Poder Judiciário.

Neste contexto, a nova lei dos crimes de abuso de autoridade traz alguns preceitos que podem se transformar em importantes ingredientes de calibração no necessário e indispensável equilíbrio de poderes que deve haver na relação Fisco x contribuinte.

A lei prevê como tipo penal do crime de abuso de autoridade (art. 27) a conduta de requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa, prevendo pena de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. Entretanto, não há crime quando se tratar de sindicância ou investigação preliminar sumária, devidamente justificada.

O preceito legal tem por objetivo impedir que os agentes públicos promovam a abertura de procedimentos investigatórios de natureza penal ou administrativa sem a demonstração objetiva da presença de indícios da prática de ilícito penal, funcional ou administrativo. Mesmo a sindicância ou a investigação preliminar sumária devem ser devidamente justificadas.

A rigor, a citada norma legal representa expressa vedação à prática das investigações arbitrárias e discricionárias dos agentes públicos e vem dar concretude à garantia da presunção da inocência (art. 5, LVII, CF) e aos princípios da impessoalidade (art. 37, caput, CF) e da motivação, garantias constitucionais asseguradas ao cidadão brasileiro em caráter pétreo. Juridicamente, a partir da nova lei desaparece qualquer espaço de discricionariedade para os agentes públicos na abertura de procedimentos investigatórios de natureza penal ou administrativa. Necessário e imprescindível passa a ser a demonstração objetiva da presença de indícios da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa. Se o agente público não cumprir este dever legal objetivo incorrerá no ilícito penal de abuso de autoridade.

Esta norma legal aplica-se à atividade administrativa de fiscalização e cobrança de tributos? Parece-nos que sim. Com efeito, o agente fiscal é um servidor público submetido às normas da nova lei penal. Por outro lado, o lançamento tributário, por expressa disposição de lei (art. 142, CTN), constitui um procedimento administrativo no bojo do qual a autoridade fiscal investiga a ocorrência do fato gerador, apura o crédito tributário que considera devido e propõe, se for o caso, a aplicação da penalidade cabível.

É certo que o processo administrativo fiscal não é o lugar adequado para a investigação de infrações penais. No entanto, não são raros lançamentos fiscais fundados em supostos crimes contra a ordem tributária que teriam sido, na visão das autoridades fiscais, praticados pelo contribuinte. Nesta hipótese, é evidente que a nova lei impõe um óbice inegável ao agente público que assim decida proceder. Vale dizer, procedimentos fiscais apoiados em fatos qualificados pelo agente fiscal como ilícitos penais devem cumprir as exigências previstas no art. 27 da nova lei dos crimes de abuso de autoridade.

E não havendo indícios de crime contra a ordem tributária, ainda assim a abertura de procedimento fiscal submete-se ao dever de motivação exigido pelo novo art. 27 da lei dos crimes de abuso de autoridade? A resposta é inegavelmente sim.

Primeiro, porque o dever de motivação dos atos administrativos constitui um alicerce fundamental da atuação da Administração Pública no Brasil. Segundo, porque o dever constitucional de motivação assume uma dimensão ainda maior quando se trata do exercício do poder de polícia do Estado sobre o cidadão, hipótese em que ganham aplicabilidade as garantias constitucionais da presunção da inocência e da vedação ao arbítrio e os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade que devem nortear a atuação do Poder Público. Terceiro, a existência de prévia motivação também constitui uma exigência do princípio da impessoalidade imposto à Administração Pública (art. 37, caput, CF) a evitar o desvio de finalidade e escolhas administrativas guiadas pelo mero capricho ou sentimento pessoal do agente público, conforme reconhecido pelo Ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, nos autos do Inquérito-DF 4.781, onde considerou ilegal a prática pela Receita Federal de escolher, sem a presença de critérios objetivos de seleção, contribuintes a serem fiscalizados.

Na mesma trilha do tipo penal previsto no art. 27, a nova lei no art. 30 considera crime de abuso de autoridade dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente, estabelecendo pena de detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Também neste dispositivo surge claro o dever de motivação para a abertura de procedimento de persecução penal, civil ou administrativa. A justa causa fundamentada passa a constituir exigência legal para a abertura de qualquer procedimento persecutório. Pelas mesmas razões já aduzidas acima, nos comentários ao crime previsto no art. 27, entendo que o preceito do art. 30 tem aplicabilidade à relação jurídica tributária.

O art. 31 da nova lei tipifica como crime de abuso de autoridade estender injustificadamente a investigação, procrastinando-a em prejuízo do investigado ou fiscalizado, prevendo pena de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. Incorre na mesma pena quem, inexistindo prazo para execução ou conclusão de procedimento, o estende de forma imotivada, procrastinando-o em prejuízo do investigado ou do fiscalizado.

Ninguém pode ficar indefinidamente sendo investigado ou fiscalizado. Este é objetivo do citado tipo penal que concretiza a garantia, assegurada a todos, da razoável duração do processo no âmbito administrativo ou judicial (art. 5, LXXVIII, CF). Na esfera fiscal, no plano federal, a Lei 11.457, de 16 de março de 2007, preceitua que é obrigatório que seja proferida decisão administrativa no prazo de 360 (trezentos e sessenta) dias a contar do protocolo de petições, defesas ou recursos administrativos do contribuinte (art. 24), prazo este que pode analogicamente ser utilizado como baliza para as fiscalizações instauradas pelo Poder Público federal.

O art. 32 da nova lei considera crime negar ao interessado, seu defensor ou advogado acesso aos autos de investigação preliminar, ao termo circunstanciado, ao inquérito ou a qualquer outro procedimento investigatório de infração penal, civil ou administrativa, assim como impedir a obtenção de cópias, ressalvado o acesso a peças relativas a diligências em curso, ou que indiquem a realização de diligências futuras, cujo sigilo seja imprescindível. A pena prevista é de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

Esta norma traz o tema da extensão do direito de defesa e do acesso do defensor ou advogado aos autos do procedimento investigatório de natureza penal, civil ou administrativa. Depois de intenso debate jurisprudencial, o Supremo Tribunal Federal sumulou entendimento segundo o qual “é direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa” (Súmula Vinculante 14). No entanto, o Supremo Tribunal Federal registra precedentes no sentido de que o entendimento consolidado na Súmula Vinculante 14 não alcança sindicância administrativa objetivando elucidar fatos sob o ângulo do cometimento de infração administrativa[2] e nem é aplicável a inquéritos civis.[3]

A nova lei inova substancialmente no tema ao garantir, de forma cristalina, amplo acesso ao defensor ou advogado a todo e qualquer procedimento investigatório, seja no âmbito penal, civil ou administrativo, superando, assim, o entendimento jurisprudencial menos extensivo consolidado na Súmula Vinculante 14. No plano fiscal, a regra comentada abre espaço para que o contribuinte fiscalizado possa pleitear o acesso ao processo administrativo fiscal antes mesmo da lavratura do lançamento, dando novos contornos ao direito de defesa e ao contraditório.

O art. 33 da nova lei trata como crime a conduta de exigir informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal, fixando pena de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. Incorre na mesma pena quem se utiliza de cargo ou função pública ou invoca a condição de agente público para se eximir de obrigação legal ou para obter vantagem ou privilégio indevido.

Este tipo penal transforma em crime de abuso de autoridade a imposição de dever sem expresso amparo em lei. Praticar ilegalidade virou crime. Registre-se que o tipo penal exige o “expresso amparo legal”. No Direito Tributário, esta norma colocará o debate acerca das obrigações acessórias que, em sua grande maioria, não tem expresso amparo legal, apoiando-se apenas em delegações normativas ao Poder Executivo. De todo modo, fica claro que qualquer exigência formulada pelas autoridades fiscais que não tenha expresso amparo legal entra no espaço normativo do novo preceito penal.

Conclui-se lembrando que tudo o retro afirmado relativamente aos tipos penais comentados exige a presença do dolo específico do agente público materializado pela finalidade de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal. Não tenho dúvidas de que a nova lei vai trazer um amplo campo de debate na seara tributária na medida em que vai representar importante instrumento de garantia dos contribuintes contra a prática de ilegalidades.


[1] Conforme já relatei no Conjur em 3 de julho de 2019: “Lançar e não multar: uma leitura do art. 142 do CTN”.

[2] Rcl 10.771 AgR, rel. min. Marco Aurélio, 1ª T, j. 4-2-2014, DJE 33 de 18-2-2014.

[3] Rcl 8.458 AgR, voto do rel. min. Gilmar Mendes, P, j. 26-6-2013, DJE 184 de 19-9-2013.

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