Opinião

O teste do bafômetro imotivado e a lei de abuso de autoridade

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22 de outubro de 2019, 6h54

Para ilustrar, deve ser observado o cidadão que não deseja fazer o bafômetro, pois entende que não haveria motivação para realização do teste. Isto é, o agente do Estado não possui qualquer argumento ou qualquer fato que justifique à realização do teste do bafômetro sobre o cidadão, salvo ser a simples exigência arbitrária de uma blitz, por exemplo.

O Estado, por meio de seus agentes, realizam atos administrativos em prol do interesse público, o que significa afirmar que não pode haver colisão de interesses, caracterizado pelo arbítrio estatal injustificado e não dimensionado. Por isso, no campo da Administração Pública, pode ser exigido da autoridade para que declare[1] os fundamentos de sua decisão, a motivação dos seus atos[2].

É indispensável tutelar o direito dos administrados serem informados da motivação que autoriza ou exige a emissão de determinado ato que irá infligir a sua esfera individual[3], e que não pode ser confundido com a intenção do emissor do ato. Neste tocante, defende-se que a intenção pessoal do representante do Estado, ou até mesmo a intenção arrecadatória ou sem parâmetros objetivos, não pode ser tida como motivação administrativa. Para ilustrar, a arrecadação sempre será uma consequência da motivação do que se pretende com o recurso a ser arrecadado.

A ideia de Lei Seca tem o objetivo de penalizar aqueles que estão conduzindo veículos em estado de capacidade alterada e, com isso, criando situação de perigo a terceiros. É a limitação da liberdade e do direito de dirigir, em razão de alteração de seu estado de ânimo, de sua capacidade de coordenação e de raciocínio (psicomotoras). Dito isso, tal legislação não pode ter suas diretrizes extremas aplicadas automaticamente a cidadãos que não apresentem qualquer indício de modificação da condição de conduzir um veículo.

Deve haver um equilíbrio entre o direito individual do cidadão de liberdade, locomoção e de não ser obrigado a fazer algo senão em virtude de lei, e o momento em que o Estado passa a fazer prova sobre a subsunção do indivíduo à lei que proíbe dirigir sob efeito de álcool ou outra substancia psicoativa que cause dependência.

Por isso, em um Estado de direitos, o cidadão deve ser informado da incidência da norma jurídica mencionada como lastro de validade para o ato a ser praticado. É dizer, deve ser expresso, transparente e claro o agente estatal em dizer que acredita que o motorista possui sinais que o enquadram no artigo 165 do Código de Transito Brasileiro, ao ponto que não lhe é algo íntimo, inclusive podendo ser provado por registros de áudio e vídeo, testemunhas, entre outras provas.

A partir daqui, o agente Estatal, que já informou o cidadão que o mesmo está sofrendo uma investigação/procedimento (não deixa de ser, ainda que sumário), que o sujeitará a multa e, até mesmo processo penal, passa a adotar a regra do artigo 277 do CTB:

Art. 277. O condutor de veículo automotor envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito poderá ser submetido a teste, exame clínico, perícia ou outro procedimento que, por meios técnicos ou científicos, na forma disciplinada pelo Contran, permita certificar influência de álcool ou outra substância psicoativa que determine dependência.

Em por menores, tudo tem início no artigo 165 do Código de Trânsito Brasileiro, que rege ser infração gravíssima dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência, inclusive, segundo o artigo 306 do mesmo código, passível de enquadramento penal.

Com base neste contexto, é necessário compreender o viés das garantias individuais constitucionais que estão enquadradas no artigo 277 do Código de Trânsito Brasileiro, para tratar da submissão ao teste, exame clínico, perícia ou outro procedimento de meios técnicos ou científicos. Observa-se que a legalidade somente passa a existir quando for com a finalidade de permitir certificar influência de álcool ou outra substância psicoativa que determine dependência. Neste ponto, cabe relembrar que as antigas redações do artigo 277 falavam em todo o condutor sob suspeita, isto é, nunca se tratou da aplicação indistinta do teste do bafômetro.

Observe que a interpretação é sistêmica, e não isolada e de aplicação imotivada. É a partir dos indícios de uma transgressão que surge a oportunidade de prova, tanto pelo Estado, quanto para o cidadão. Até então, não há que se falar de direito de não autoincriminação ou de não fazer provas contra si mesmo, pois o primeiro momento é da formação da causa administrativa, da necessidade de justificar o ato administrativo de aplicação do bafômetro. Não basta perguntar se o agente ingeriu bebida alcoólica, pois com a negativa para a pergunta não poderia haver convite para fazer o teste de alcoolemia. Este é somente um dos procedimentos que, em um contexto, vão criar uma motivação sobre a conclusão de estar frente uma modificação da capacidade de dirigir e, assim, da necessidade de fazer prova.

Fica plausível, sob um contexto legalista e de motivação, que se houver a recusa ou impossibilidade de realização de testes, vir o legislador e trazer a previsão de que a infração prevista no art. 165 também poderá ser caracterizada mediante imagem, vídeo, constatação de sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora ou produção de quaisquer outras provas em direito admitidas.

A simples recusa de realização do bafômetro, sem que haja motivação do agente estatal, não caracteriza o artigo 165 – A[4], do Código de Trânsito Brasileiro, muito para além, trata-se de exercício do direito de preservação da intimidade e da liberdade do indivíduo, da exigência da motivação dos atos administrativos. Isto, pois, no caso de atos administrativos discricionários, a relação de proporcionalidade entre o conteúdo do ato e o motivo, em face da finalidade, devem ser verificáveis.

Por tais razões, o agir imotivado e de imposição generalista da imposição de testes de alcoolemia se tratam de arbitrariedade não recepcionada pela Constituição Federal e, desta forma, de um abuso da autoridade sobre o direito a intimidade e liberdade do indivíduo, ferindo, inclusive, o princípio da legalidade.

Fazendo uma analogia com os casos de conduções coercitivas, existe a previsão de abuso da autoridade que decreta a condução coercitiva de testemunha ou investigado manifestamente descabida ou sem prévia intimação de comparecimento ao juízo. Novamente, sem que haja motivação do ato a ser realizado sobre o cidadão. Outro exemplo, impedir, sem justa causa, a entrevista pessoal e reservada do preso com seu advogado. Ainda, duas situações que desenham maior relação como o aqui exposto, proceder à obtenção de prova, em procedimento de investigação ou fiscalização, por meio manifestamente ilícito, ou exigir informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal.

A discussão tem que ser posta. Neste momento, por certo que não se trataria de abuso de autoridade a conduta do agente estatal que é treinado a cumprir metas e aplicar o bafômetro indistintamente por ordem superior que, nos moldes de informação atual, não caracterizam ser manifestamente ilegal. Mas o Estado, que tem o cidadão como seu escopo, deveria rever estas políticas administrativas e ser responsabilizado, ainda que somente com a anulação dos autos de infração de recusa do bafômetro que não foram motivados com elementos verificáveis do artigo 165.

Novamente, o problema é que o Estado se utilizada de um mecanismo legal sem qualquer parâmetro administrativo. O artigo 165-A diz que a recusa ao bafômetro deve ser penalizada quando tinha a intenção de certificar influência de álcool ou outra substância psicoativa no motorista, tanto que o artigo 277 usa a mesma redação: “permita certificar influência de álcool ou outra substância psicoativa que determine dependência”. Ora, tanto assim, que, existindo a recusa, ainda deverá haver, pela própria legislação, a necessidade de testemunhas, vídeos e outras provas admitidas em direito.

Para concluir, cabe o raciocínio em contrário, isto é, nos casos de motivação do agente estatal pela infração do artigo 165, também surge para o cidadão o direito de fazer prova a seu favor, de ver realizado em si testes, ter acesso a testemunhas, entre todas as outras provas em direito admitidos que possam lhe resguardar não estar alcoolizado ou sob uso de substancias que causam dependência. Por exemplo, uma pessoa que esteja “passando mal”, e apresente sinais que confundam com o de influência de álcool ou outra substância psicoativa, e tenha sua condição de dirigibilidade alterada, poderá fazer prova a seu favor que não se enquadrava nos casos de penalização (do artigo 165 ou 306 do CTB).

Contudo, uma vez que se passa a conscientizar o agente estatal, e o mesmo insiste no ato, poderá ser configurado o abuso de autoridade, que surge como última instância do direito, uma preocupação do legislador quando a seara ética, administrativa e civil se demonstraram insuficientes para prestar a tutela necessária. O Brasil não inova ao legislar sobre a matéria de abuso de autoridade, em verdade, o que o legislador fez neste ano de 2019 foi pontuar o abuso de autoridade, pois se demonstrou ineficiente o texto legal anterior. Disso tudo, o que se pode perceber é que algumas autoridades se sentem pressionadas com a perda da capacidade de gerenciar o que seria abuso de autoridade. Mas a verdade é que a nova legislação não criou situações diferentes do que já existia, ou do que se considera abuso. De fato, o que ocorre é derrogação de uma lei, que era esquecida e desacredita, dando espaço a proteção da democracia estruturada em direitos, em um novo momento social.

Em conclusão, a blitz da balada segura, ou da lei seca, ou outros termos pela qual é conhecida, não é ilícita, desde que amparada em direitos. Logo, a aplicação e exigência imotivada de realização do teste etílico ao motorista, sem que haja indícios verificáveis como elementos de suspeita, se torna um ato administrativo ilícito, e que pode sim, a depender do dolo do agente, caracterizar abuso de autoridade.

[1] Segundo Di Pietro (Direito administrativo / Maria Sylvia Zanella Di Pietro. – 32. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019), o ato administrativo constitui uma declaração do Estado, uma exteriorização do pensamento, que produz efeitos jurídicos imediatos, com observância da lei, sob regime jurídico de direito público e sujeita a controle pelo Poder Judiciário, ressaltando que a Administração Pública não dispõe de autonomia da vontade, porque está obrigada a cumprir a vontade da lei.

[2] “[…] o ato administrativo questionado reputa-se eivado de ilegalidade, visto que insuficientemente motivado pelo órgão ambiental. Depreende-se que a análise perpetrada pelo juiz não foi sobre o mérito do ato administrativo, mas sobre a ilegalidade do ato administrativo produzido sem a devida motivação. (REsp 1787922/ES, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 26/02/2019, DJe 30/05/2019).

[3] A Constituição Federal traz a garantia individual de que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5, II), o que pode ser compreendido como prerrogativa de repelir as injunções que sejam impostas por uma outra via que não seja a da lei (Direito constitucional / Alexandre de Moraes. – 35. ed. – São Paulo: Atlas, 2019).

[4] Art. 165-A. Recusar-se a ser submetido a teste, exame clínico, perícia ou outro procedimento que permita certificar influência de álcool ou outra substância psicoativa, na forma estabelecida pelo art. 277 […]

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