Opinião

O que significa prisão somente "após o trânsito em julgado"?

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22 de outubro de 2019, 17h07

A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) prevê que:

Artigo 9
Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.

Artigo 10

Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir seus direitos e deveres ou fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.

Artigo 11

1.Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.

Como se pode ver, essa declaração que visava precipuamente sua universalização, isto é, sua adoção por todos os povos, não apoiou-se em expressão técnica particular de nenhum país ou sistema legal, como “trânsito em julgado”, mas em dados objetivos: a) “justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial”; e b) “ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”.

Outras declarações, como a da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Costa Rica, 1969) trazem texto semelhante (arts. 7 e 8) e também não fazem menção ao “trânsito em julgado” mas à presunção de inocência até prova de culpa e processo sujeito a confirmação por Tribunal.

A Constituição Brasileira de 1988, traz diversos dispositivos voltados aos direitos e garantias individuais em matéria penal; são os incisos XXXVII a LXVIII do seu artigo 5º. Dentre esses 32 incisos, 2 dizem respeito diretamente ao tema aqui tratado:

LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

É nesse texto constitucional brasileiro que brota a celeuma em torno à possibilidade de prisão de réus condenados pelos Tribunais competentes, mas que aguardam julgamento de recursos interpostos junto ao que chamamos, no Brasil, de Tribunais Superiores: o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Numa explicação simples e direta:

  • devido processo legal” é uma expressão tomada da quinta emenda da Constituição norte-americana (1791) e que significa processo julgado por juiz imparcial, com publicidade e possibilidade de ampla defesa pelo réu (como nas declarações universais de direitos humanos citadas), e que vai pouco a pouco tendo seu sentido refinado, como quando se incluiu o direito a ser defendido por advogado (1962);
  • trânsito em julgado” é expressão que corresponde à decisão judicial da qual não cabe mais recurso.

A discussão que se trava hoje no país e, particularmente, no Supremo Tribunal Federal é: ter os direitos humanos respeitados, ou ter o “devido processo legal”, em matéria penal, significa que a prisão dos condenados somente poderá ocorrer após não caber mais nenhum recurso? Ou mais especialmente, no caso brasileiro, não caber mais nenhum recurso ao STJ ou ao STF, isto é, não caber mais o Recurso Especial e o Recurso Extraordinário?

Neste texto defende-se que: para decretação de prisão de réu em processo por crime é preciso respeitar-se o devido processo legal, que inclui necessariamente a revisão da decisão em Tribunal, isto é, em juízo colegiado. Mas isso não significa que seja necessário esperar que todos os recursos excepcionais sejam decididos antes de decretar a prisão.

Esse entendimento ficaria muito mais fácil de ser compreendido e aceito caso se adotasse uma distinção e sua nomenclatura própria:

  • Trânsito em julgado ordinário: aquele ocorrido quando já não cabe nenhum recurso ordinário da sentença condenatória (como ocorre na esmagadora maioria dos países);
  • Trânsito em julgado especial e extraordinário: aquele ocorrido quando já não cabe recurso especial ou extraordinário da decisão condenatória (no caso do Brasil, o recurso Especial, ao STJ, e o Extraordinário, ao STF)

É bastante evidente (utilizando-se dos métodos histórico sistemático de interpretação e do comparativo) que a exigência constitucional de devido processo legal e a de trânsito em julgado da sentença penal condenatória configuram um único e mesmo direito fundamental (juntamente com os outros 30 incisos que o configuram), o de liberdade e que implica em não poder ser preso arbitrariamente.

É consequência dessa evidência que os citados incisos não podem ter interpretação que leve a conflito intransponível entre eles, o que significa que a prisão de condenado criminalmente em devido processo legal não pode ser indefinidamente protelada pela interposição de recursos de duvidoso cabimento e demorado julgamento.

O caso Maluf é icônico. Político que enfrentou acusações de graves e reiteradas improbidades administrativas e que chegou a ter condenação por tais atos até no exterior (França), com verdadeiras fortunas desviadas escondidas igualmente no exterior (Suíça e depois ilhas britânicas), quando finalmente preso após a contínua e sistemática interposição de recursos, foi liberado para cumprir prisão domiciliar, dada sua avançada idade (mais de 80 anos). Na prática, Maluf, o exemplo popular de político que “rouba (mas faz)”, foi “condenado” após inúmeros esforços da máquina pública policial e judiciária (muito bem remunerada pelos contribuintes), a viver seus últimos dias confortavelmente instalado em sua mansão nos Jardins, em São Paulo, ou seja, a passar seus últimos dias exatamente onde passaria, no conforto de seu luxuoso lar.

Com todo respeito (de verdade) àqueles que defendem que aguardar o trânsito em julgado extraordinário é a única interpretação coerente com a Constituição e com a afirmação histórica dos direitos humanos, identificar o devido processo legal com a necessidade de espera do trânsito em julgado extraordinário, é uma perfeita e direta traição ao conteúdo desses dispositivos.

Essa proteção dos direitos individuais não é sinônimo de consagração da (enorme e concretíssima) possibilidade e tendência à impunidade dos crimes praticados pela parcela mais articulada da sociedade (desde os crimes do colarinho branco, aos do crime organizado, passando pelos dos políticos).

Aos que defendem aguerridamente os direitos humanos, total homenagem, mas, ao mesmo tempo, o alerta sincero e humilde de que estão cegos por sua boa vontade, de que ao sublimar o direito a evitar a arbitrariedade da atuação do Estado, estão na verdade sublimando a arbitrariedade dos que compõem os governos e as falsas “elites” que vivem e apoiam a corrupção. Não há arbitrariedade em condenar criminalmente com o devido processo legal observado, mas há arbitrariedade em transformar o devido processo legal em protelatório.

Nessa ordem de ideias, de ver na expressão “trânsito em julgado” amplo fundamento para distingui-la em ordinária e extraordinária, no Brasil, é de lembrar dois aspectos técnicos processuais de muita relevância nesse estudo:

a) todo abuso praticado contra o devido processo legal tem recurso de acesso imediato e prioritário aos Tribunais Superiores, o habeas corpus;

b) as questões penais em que há condenação nunca transitam efetivamente em julgado, cabendo sempre a revisão criminal.

De fato, dizer que não pode haver prisão enquanto não alcançado trânsito em julgado extraordinário, porque seria preciso garantir ao acusado o direito de revisão de decisões abusivas, é argumento falso, pois esse direito já lhe é garantido por meio do habeas corpus, pedra angular em que se apoia a defesa do devido processo legal. Seu sistema é estruturado de forma a garantir que seja rápido, eficaz.

E também é fato que o argumento de que não se poderia prender o réu enquanto lhe for possível provar sua inocência no processo penal, é igualmente falso, pois precisamente por se tratar de pena privativa de liberdade, a revisão criminal sempre é possível em favor do réu, não importa quanto tempo passe. Assim, levado às últimas consequências o argumento pró necessidade de trânsito em julgado (absoluto) previamente à prisão, chegar-se-ia à absurda conclusão de que nunca ninguém poderia ser preso pois garantido seu direito de recorrer à revisão criminal.

Por derradeiro, não é absolutamente desprezível a experiência e a vivência dos demais países do planeta! É nelas que nosso sistema é fundado e é delas que retira parte substancial de sua virtude. Não existe direito humano brasileiro; ou é humano, universal, ou não é.

Ora, a experiência internacional apoia amplamente a prisão no curso ou no final do devido processo legal, assim considerada a decretada por Tribunal ordinário. Não há caso conhecido de país que exija para a decretação da prisão o esgotamento de todos os possíveis recursos, inclusive extraordinários.

Somente o que se pode acrescentar, mas não para infirmar a possibilidade de prisão após condenação em tribunal ordinário, é que a imensa maioria das prisões brasileiras não passa por um exame de mínimas condições humanitárias. Será que alguém pode ser condenado a viver naqueles infernos? Será que mesmo os que roubaram descaradamente os recursos públicos em favor de si mesmos (ou de seus projetos de perpetuação no poder) poderiam ser condenados a viver nessas prisões (às quais faltaram os recursos e a administração honesta e consciente, que se recursaram a fazer)?

Esperando sejam úteis à reflexão, estas são as considerações que gostaria de fazer a respeito desse tema.

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