Opinião

As alternativas do STF para extensão de nulidade pela ordem das alegações finais

Autor

  • Víctor Gabriel Rodríguez

    é professor livre-docente de Direito Penal da Universidade de São Paulo (USP) membro do Prolam/USP autor do livro Delação Premiada: Limites Éticos ao Estado com versão ibero-americana pela Ed. Temis (Colômbia e Argentina) e bolsista da Fundación Carolina/España para professor convidado na Universidad de Granada e pela Capes na Autónoma de Madrid.

22 de outubro de 2019, 6h20

Há algum tempo temos escrito sobre a delação premiada, tema que agora alcança um divisor de águas: o julgamento, que segue em mesa para ser retomado pelo Plenário do STF, sobre a distinção ou não das alegações finais entre réu-delator e réu-delatado (HC 157627), pode aniquilar grande parte da eficácia do instituto até hoje.

Com resultado já formado para declarar a nulidade do ato em um caso concreto, resta definir quais são os efeitos da decisão colegiada. E deve já haver uma estratégia muito pensada para ordenar a sessão de julgamento daquilo oficialmente deixou de ser uma modulação os efeitos[1] para chamar-se algo como “aprovação de tese jurídica para direcionar jurisprudência”. Afinal, um ponto em falso dessa votação pode conduzir a uma diferença brutal para os efeitos da delação premiada e, sem exagero, para o futuro do País.

Está longe de nossos objetivos influenciar no modo de conduzir essa sessão. Aqui, nos cingimos a analisar os fundamentos de cada tese que deve ser levantada nesse espectro de extensão da decisão plenária. E o fazemos sob um claro critério reitor: o da coerência com os precedentes da Corte, talvez em contraste com o que temos defendido há algum tempo.

Falando em coerência, antes da análise dessas teses deve ser fixado aqui um par de premissas, acerca (a) da eficácia da delação premiada no Brasil atual e (b) do modo como a lei de delação está em nosso ordenamento.

(a) Sobre o primeiro ponto, há que se destacar o que, com outras palavras, já aparece no voto declarado de alguns membros, a exemplo do Min. Barroso: a delação premiada é um dos instrumentos essenciais para que, por primeira vez, o direito penal tenha alcançado a classe política e empresarial. Indivíduos que há pouco tempo eram inatingíveis pelo castigo estatal são os que agora conseguem provocar nos ministros divisão, confronto e, mais, a redação de votos de dezenas de páginas em matéria penal.

O problema é saber se essa matéria de eficácia da Lei pode ter alguma relevância jurídica nesta sessão que se aproxima, e nossa resposta é positiva. A função política da Corte, principalmente ao analisar extensão de efeitos, permite tomar em conta a relevância da Lava-Jato em toda América Latina, desde que não afronte a direitos fundamentais. Falar em “tubarões da República”, como fez o Min. Marco Aurélio, não é juridicamente inconsistente, enquanto não seja argumento único de um voto.

(b) Voltando às origens da delação, há muito se sabia que a pressão internacional para a introdução do instituto em nosso ordenamento seria insuperável. Mas havia ao menos três maneiras de fazê-lo: introduzindo-a via um expresso “princípio da oportunidade”[2], no Código de Processo Penal, como ocorrera na Colômbia; trazê-lo inscrito no Código Penal, como circunstância posdelitiva, conforme fez o legislador argentino; ou simplesmente criar, seguindo a convenção da ONU[3], uma lei de crime organizado, que aglutina medidas mistas para a finalidade, ausente porém qualquer adaptação ao ordenamento local. Claro que o Brasil, seguindo a eterna lei do menor esforço, optou pela terceira via, ignorando problemas como as diferenças culturais frente ao mundo anglo-saxão, mas, principalmente, com a realidade sistêmica do instituto: o silêncio sobre a natureza processual ou penal da delação criou indefinição, que teve de ser desfeita pelo STF ao atropelo, sem o necessário amadurecimento[4]. Tanto a indefinição quanto o precipitado precedente passarão sua conta, no julgamento que se avizinha.

Assentadas as premissas, buscamos apresentar sistematicamente as vantagens e as deficiências das distintas teses sobre os efeitos da declaração de nulidade. Acreditamos, pelo que já foi desenhado pelos Ministros, que elas serão basicamente três:

1) Primeira tese: anulação de todas as condenações em processo em que ocorrera delação
Não é a tese mais forte da desejada “orientação jurisprudencial” em que consistirá o próximo julgamento, mas talvez seja levantada. Em teoria, essa pretensão de que os efeitos do Habeas Corpus se transformem em uma grande anulação de todas as sentenças de primeiro grau em que houve delação já foi derrubada, quando o Pleno aceitou por criar essa nova etapa, para modulação de efeitos.

Em nossa opinião, a tese, embora não seja juridicamente correta, tem fundamentos sólidos. Ela se baseia, grosso modo, na percepção de que a falta de oportunidade de o réu-delatado falar em alegações finais depois do réu-delator é uma afronta ao princípio do contraditório e à ampla defesa, portanto o prejuízo é presumido. Ao se tratar de um prejuízo presumido, está-se diante de nulidade absoluta.

(i) Primeiro ponto forte é tratar-se de uma tese eminentemente constitucional, portanto sua análise segue a atribuição principal da Corte, mas isso, como se verá, pode trazer sua própria antítese. De momento, é sim um grande valor dela: centrar-se na vigilância do texto constitucional.

(ii) Segundo ponto forte é o da coerência com os precedentes, pois a tese segue a orientação que o STF tem dado, em linhas gerais, ao instituto da “colaboração premiada”. A Corte, em seus variados julgamentos, tem implicitamente aceitado a eufêmica ideia imposta aos povos latinos de que o delator, em lugar de ser alguém que tira proveito (lícito) de sua situação de traição, é na verdade um “arrependido”. Alguém que se “converteu” ao Estado, e portanto merece benefícios. Temos reiteradamente hostilizado essa crendice[5], tentando fazer com que os operadores assumam, sem maiores culpas, o estrato utilitarista do prêmio ao delator, sua ideia de lei de combate a um inimigo maior. Porém, quem crê nessa condição de que o delator seja um novo amigo do Estado evidentemente deve vedar-lhe a oportunidade de falar nos autos ao lado dos delatados. É simplesmente caso de definir quem está de qual lado da trincheira.

(iii) Derivação dessa visão – e portanto seguindo como ponto forte – está a própria decisão maior do Supremo sobre a natureza da delação premiada. Curiosamente capitaneado pelo atual presidente da Corte, o STF decidiu que a colaboração é um “contrato entre as partes”, em que terceiros não podem intervir[6]. Já temos notado como esse entendimento deve ser superado, mas, uma vez mais, se a Corte o sustenta, assume que o réu-delator desfruta de uma condição em nada homologa à do delatado. Para ser harmônico com a concepção privatista que o precedente concede à delação, nasce uma divisão clara entre os réus: aqueles que são acusados pelo Ministério Público, e aqueles que com firmaram um contrato. A oportunidade de falar, no processo, sempre depois do “sócio” ou “contratante” da acusação seria uma derivação natural do direito de defesa.

A tese é forte e segue, como se vê, o entendimento firmado pela Corte. Ela tropeça, entretanto, em dois pontos. (i) Um deles é visão nossa: que as colocações anteriores não são reais, porque o réu não é de fato um arrependido, o instituto não é primordialmente processual e a delação não é um contrato inatingível. Isso, porém, é mera visão pessoal, não a da Corte.

(ii) Falha maior da tese está em que, para considerar uma nulidade absoluta no caso, estendendo a todos os réus, sem qualquer noção previa de prejuízo, o Supremo está inovando um rito processual, que lei nenhuma criara. Esse é o revés da missão constitucional, a que antes nos referimos: a tese implica afirmar que o CPP está em desacordo com a Constituição, e isso, pelos fundamentos até agora apresentados, parece-nos muito pretensioso. Salvo engano, foi realçado no voto lido pelo Min. Marco Aurélio uma condição muito precisa: que nenhuma lei que previu delação premiada, entrando por ritos processuais, previu esse novo rito de alegações. Quer dizer que o legislador teve várias oportunidades para consagrar essa nova forma de devido processo legal, mas não o fez, por consciente escolha.

Aceitar a tese, na prática, significaria alterar o rito processual via estudo principiológico da Constituição; e, mais, fazer essa alteração com efeitos ex tunc, que processualmente tampouco é adequado.

Por mais garantista que agora queira ser o Tribunal, a criação legislativa parece ser ativismo extremado.

2) Segunda tese: de que a sentença somente se possa anular para aqueles que protestaram pela oportunidade de falar nos autos após as alegações do réu-delator
Parece ser tese proposta pela Presidência, no posicionamento já lido pelo Ministro Toffoli. (i) O argumento mais forte da tese, nessa “orientação jurisprudencial” está, parece-nos, nominalmente na relativização da nulidade. Em palavras apenas nossas, significa que dizer que o réu-delatado tem a liberdade do exercício de sua defesa (que também é um direito constitucional) e, portanto, é quem deve decidir se, para ela, há ou não prejuízo em falar no processo antes de ter total ciência das alegações finais do delator. Isso implica que, se a defesa não alegou esse prejuízo no momento oportuno, o reconhecimento atual do direito não pode regressar a quem, em seu livre exercício de defesa, optou por que essa ordem de atuação era irrelevante.

(ii) Há mais pontos fortes nessa tese, que é obrigação realçar. Principalmente o de ser harmônico com a visão da legislação adjetiva, de que o prejuízo é premissa de qualquer nulidade. Esse não é um princípio doutrinário, senão um comando claro do art. 563 do CPP. O caráter absoluto da nulidade, mesmo na aplicação penal da processualística, ocupa lugar de exceção. Também o posicionamento é coerente com a própria decisão de mérito do Habeas Corpus, porque, ali, o paciente parece ter requerido, na oportunidade própria, essa especial ordem de fala.

Mas as incoerências nos parecem maiores que essa boa observação. (i) Não apenas porque a relativização da nulidade desconsidere a posição, que o Supremo mesmo fixou, do réu-colaborador como “contratante” do Ministério Público, como já dito, mas em especial por criar (ii) uma fantasia em relação à situação jurídica vigente ao tempo procedimental. Afinal, exigir que o advogado tenha requerido o direito de falar antes do delator supõe que tal direito estivesse inscrito em alguma lei, e ele simplesmente não está. Visto sob um espectro realista, a exigência está mais para o exercício de uma atividade criativa do que para a reinvindicação de um direito, que não encontrava lugar na jurisprudência e não se lê em qualquer lei.

(iii) Corolário disso é dizer que a inconsistência principal da tese proposta pela Presidência é ancorá-la no instituto da preclusão, que por sua vez se bifurca em dois pontos. Existem, sim, momentos claros de alegar as nulidades no procedimento (arts. 571 e ss do CPP), mas para isso é necessário que as condições de nulidade estivessem visíveis a todos. Daí a razão do Min. Lewandowski ao dizer, em Plenário, que a proposta privilegia alguns advogados visionários ou mais esforçados. Em palavras nossas, os direitos no processo penal não podem depender de um olhar excepcional (no sentido de incomum) da defesa técnica.

(iv) Segundo ponto relativo à preclusão está na segunda parte da proposta. Se ela entender que, por princípio, doravante vige a obrigatoriedade de que os delatados falem depois dos delatores, ela está a atestar o caráter absoluto da nulidade que o HC reconhece. Isso enfrentaria todo percurso proposto até o momento, pois, nesse caso absoluto, sequer se poderia falar em preclusão – instituto que, até então, era o maior sustentáculo da proposta.

(v) Esse quadro nos leva a uma nova deficiência da tese, bem observada pelo Dr. Helios Moyano: se o Supremo reconhecer que, antes, qualquer advogado diligente tinha a obrigação de pedir essa quebra na ordem de fala, mesmo que ela não constasse expressamente em lei, está a reconhecer que os defensores que não o requereram foram deficientes. Ocorre que a defesa deficiente, diante do prejuízo claro da condenação, também obriga o reconhecimento de nulidade, conforme enunciado da sumular da própria Corte.

Nesse último caso, não se trata de uma contradição própria, mas uma sugestão: que os ministros que optarem por essa saída desde logo decidam como se solucionará a futura alegação da súmula 523 do STF, ou seja, o reconhecimento da defesa deficiente para os que não requereram o direito de falar processualmente depois do réu-delator.

3) Terceira tese: que cada réu-delatado deve vir, após a orientação do STF, comprovar o prejuízo havido pela concomitância da defesa com o réu-delator
Não posso dizer que seja exatamente essa tese proposta pelo Min. Alexandre de Moraes, mas parece que melhor dirime os pontos até aqui levantados. Não havendo, até o momento, qualquer lei que imponha momentos distintos de defesa de delator e delatados, como bem disse o Min. Marco Aurélio, o mais razoável é entender que pode existir, na defesa final do réu-delator, algum elemento que mereça contradita. Havendo necessidade dessa contradita, a ausência de oportunidade do delatado de exercê-la antes de prolatar-se a sentença gera lesão a direito (art. 563 do CPP). Afinal, aquela poderia alterar o teor da decisão condenatória, potencialidade que também é exigência legal (art. 566, CPP).

Essa tese, se vencedora, não deixa de ter seus pontos fracos. (i) Abriria flanco para que o Judiciário se obrigue a apreciar todas as alegações que viriam nesse sentido, mas essa tutela não seria necessariamente incumbência da Suprema Corte; (ii) Como as demais, enfrenta o precedente da própria Corte, o qual coloca o delator na condição de contratante com a acusação, evidenciando sua posição privilegiada. Mas esse precedente, como já dissemos, em breve deveria ser revisto.

(iii) Cria o grave problema de saber quais os critérios para aquilatar-se esse prejuízo que deve vir a ser comprovado. Não é impossível criar critérios objetivos, mas isso demandaria maiores cavilações. Grosso modo, de um lado está o fato de que o rito imposto permite que o réu delatado tenha acesso a todo o teor da delação antes de suas alegações finais, portanto os fatos necessários à defesa já estavam sempre disponíveis ao réu-delatado; de outro, neste mundo linguístico em que vivemos, falar sobre os fatos já pode significar inová-los. Esse equilíbrio, entretanto, será objeto de outro texto nosso, porque o tema é extenso.

Para que, entretanto, esta tese seja vencedora, ela não pode ser vinculante à declaração de incondicionada nulidade do rito processual previsto em lei, caso em que cairia na mesma autofagia apontada na tese anterior. Mesmo que, na prática, resulte no mesmo, ela teria de restringir seu efeito ao paciente do Habeas Corpus julgado, apenas indicando que os próximos procedimentos em primeira instância, para evitar prejuízos delatados, oportunizem um sistema bifásico de apresentação de defesas. Isso deixaria claro que esse escalonamento não é um direito absoluto, consagrado a partir da introdução da delação premiada em nosso ordenamento, mas faria mais: preservaria – como, em fala, notou o Min. Marco Aurélio – a liberdade de todos os juízes do País, para compreender interpretar a lei tal como ela se encontra escrita.

A delação premiada enfrenta vários de nossos princípios, e isso, somado à precipitação do nosso legislador, torna previsível um longo tempo de adaptação à lei, no qual serão demandadas muitas e muitas decisões do STF. Manter a Supremacia da Corte nesse momento politicamente conturbado – em grande parte, pela delação mesma – passa por encontrar o equilíbrio entre o legítimo exaurimento da preservação dos direitos individuais, mas também pelo respeito à atribuição de cada um dos Poderes da República.


[1] A modulação e efeitos, que está no art. 27 da lei 9868/99 não é aplicável a Habeas Corpus. Talvez seja esse o motivo de se haver criado essa figura da orientação jurisprudencial.

[2] Sobre essas três possibilidades, veja-se texto nosso: RODRÍGUEZ, Víctor Gabriel, Tres modelos legislativos de delación premiada en Latinoamérica: las soluciones de Colombia, Brasil y Argentina y la de conformidad con los principios fundamentales de los derechos internos, in: Nuevas Fronteras del Derecho Penal Global, Bogotá: Temis, 2019, pp. 233-259.

[3] Veja-se art. 26 da Convenção de Palermo. Esta, entretanto, diz que cada estado parte deve atuar “em conformidade com os princípios fundamentais do seu ordenamento jurídico interno”, alerta que o legislador nacional parece haver ignorado.

[4] Sobre o tema, escrevemos em https://www.conjur.com.br/2019-jun-04/victor-rodriguez-direitos-delatado-ea-precipitada-posicao-stf

[5] Veja-se Conclusão §22 de nosso: RODRÍGUEZ, Víctor Gabriel, Delação Premiada: limites éticos ao Estado, RJ: Gen Forense, 2018

[6] Veja-se HC 127483, do STF.

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