Opinião

O julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade 43, 44 e 54

Autor

  • Maria Lucia Karam

    é juíza de Direito aposentada ex-juíza auditora da Justiça Militar Federal e presidente da Associação de Agentes da Lei contra a Proibição (Leap Brasil).

22 de outubro de 2019, 13h29

O julgamento das ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs) 43, 44 e 54 logo suscita uma primeira perplexidade: como é possível que a apreciação de questão tão simples obtenha tamanha repercussão e ocupe tanto tempo? Não bastasse o período decorrido desde o julgamento de pedidos de liminar em 5 de outubro de 2016, na retomada do caminho para o julgamento do mérito, uma única sessão do Supremo Tribunal Federal (STF), a do último dia 17 de outubro, foi inteiramente dedicada apenas ao relatório, às sustentações dos advogados dos autores das ações e a manifestações não concluídas de uma dezena de habilitados amici curiae!

Uma explicação talvez possa ser encontrada no desvio das atenções para pontos estranhos à única e singela questão a ser efetivamente considerada. Essa única questão, como em regra há de acontecer, é delimitada pelo objeto dos pedidos formulados nas referidas ações.

Tratando-se de ações declaratórias de constitucionalidade, em que se pretende que o tribunal declare a compatibilidade da regra contida no artigo 283 do Código de Processo Penal com o disposto no inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal, só o que é preciso verificar é se existe ou não alguma contradição entre o referido dispositivo da lei ordinária e o parâmetro contido na norma constitucional (os pedidos naturalmente visando a declaração da inexistência de contradição).

Assim, a questão trazida nas referidas ações versa tão somente sobre a relação entre a norma constitucional (inciso LVII do artigo 5º CF) e a norma legal (artigo 283 CPP), devendo-se averiguar e ao final declarar se esta norma legal está ou não em conformidade com aquela norma constitucional, se é ou não compatível com aquela, se seu sentido cabe ou não no sentido daquela, coincidindo ou não com seu sentido.

Com efeito, na conhecida conceituação de Jorge Miranda, elaborada desde sua juventude na dissertação apresentada, há mais de cinquenta anos, no Curso Complementar de Ciências Político-Econômicas da Faculdade de Direito de Lisboa, “constitucionalidade e inconstitucionalidade designam conceitos de relação: a relação que se estabelece entre uma coisa – a Constituição – e outra coisa – uma norma ou um acto – que lhe está ou não conforme, que com ela é ou não compatível, que cabe ou não cabe no seu sentido.” [1] 

A mera leitura do teor de tais normas é suficiente para rapidamente elucidar a questão:

CPP – Artigo 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva [grifo meu].

CF – Artigo 5º (…). LVII. Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória [grifo meu].

Mais do que a compatibilidade ou a conformidade, o que imediatamente se encontra na relação entre as normas consideradas é a identidade de seus sentidos, evidenciada na igual exigência do trânsito em julgado da sentença penal condenatória para a afirmação da culpabilidade e consequente execução de pena privativa de liberdade. A verificação de tal identidade dispensa qualquer mergulho em meandros da hermenêutica jurídica. Uma simples interpretação de texto, que poderia ser feita até mesmo em exercício dado a alunos dos primeiros anos de escolas elementares, já seria suficiente para afastar qualquer dúvida sobre a perfeita harmonia entre aquelas normas.

A evidente impossibilidade de identificar contradição no que é idêntico – e, portanto, a imperativa afirmação da manifesta procedência dos pedidos de declaração da constitucionalidade do dispositivo contido no artigo 283 CPP – estaria a sugerir que, também aqui, o tempo fosse poupado, colocando-se, desde já, um ponto final nesses comentários.

Permito-me, porém, prosseguir por mais algumas linhas, comentando um dos tantos pontos que vêm desviando as atenções da – repita-se – única e singela questão efetivamente considerável nas ADCs 43, 44 e 54.

Trata-se da observação, tão repetida, de que a exigência do trânsito em julgado da sentença penal condenatória para execução da pena – exigência imposta tanto na norma constitucional inscrita no inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal (norma que, vale ressaltar, tem natureza de regra e não de princípio), quanto repetida em dispositivo contido no artigo 283 do Código de Processo Penal – constituiria singularidade do ordenamento jurídico brasileiro, louvada por alguns disso orgulhosos, ou criticada por outros, que nela enxergam uma desprezível ‘jabuticaba’.

Tal afirmação traduz desinformação sobre muitos dos ordenamentos jurídicos estrangeiros invocados, que, na realidade, nada importam para o julgamento em questão, já que a constitucionalidade do dispositivo do artigo 283 CPP diz respeito óbvia e unicamente à sua relação com norma inscrita na constituição brasileira. De todo modo, cabe dizer que singular seria sim a antecipação da execução da pena para momento anterior ao trânsito em julgado. Em estados democráticos, a garantia da presunção de inocência constitui um de seus sustentáculos, daí naturalmente decorrendo a regra de que a prisão com natureza de pena só possa se efetivar quando o pronunciamento condenatório se torne definitivo, isto é, irrecorrível. É assim, por exemplo, no ordenamento jurídico alemão, no ordenamento jurídico italiano, no ordenamento jurídico português.

A desinformação talvez decorra da desconsideração ou desconhecimento dos diferentes sistemas recursais considerados. No ordenamento jurídico brasileiro, os recursos extraordinários (especial e extraordinário em sentido estrito) têm efetivamente natureza de recurso, por isso impedindo a formação da coisa julgada e consequentemente a execução da pena. Em outros ordenamentos jurídicos, a definitividade da condenação em geral se dá com o julgamento de recurso que, a grosso modo, equivaleria à apelação, na medida em que aqueles instrumentos que extraordinariamente conduzem a discussão da matéria de direito para tribunais superiores não são recursos (mesmo que sejam assim denominados), tratando-se sim de ações autônomas de natureza rescisória e, por isso, pressupondo o trânsito em julgado da sentença ou acórdão condenatórios. Mesmo assim, o cuidado com a garantia da presunção de inocência leva a que muitas desses ordenamentos jurídicos admitam eventual suspensão ou interrupção da execução da pena quando propostas tais ações impugnativas da coisa julgada.

Sobre o ordenamento jurídico alemão, é recomendável a leitura de recentíssimo e excelente texto de Orlandino Gleizer e Guilherme Góes, em que os autores esclarecem: “No Direito alemão, a pena só pode ser executada após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória (§ 449 StPO). Não se aceita execução provisória de pena na Alemanha, também por força do princípio constitucional da presunção de inocência (cf. BVerfGE 19, 342; 74, 358; 133, 168), embora, lá, seja ele apenas um derivado do princípio do estado de direito, enquanto, entre nós, segue afirmado rigidamente pela Constituição Federal (art. 5º LVII).” [2]

Aos que, indiferentes à claríssima harmonia entre as cotejadas regras do artigo 283 CPP e do inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal, refratários até mesmo a uma elementar interpretação de texto, em função de sua avidez por uma vedada execução antecipada da pena, resta apenas um consolo: pugnar pelo fim dos recursos extraordinários (especial e extraordinário em sentido estrito), através de emendas constitucionais e alterações legislativas.

Ressalte-se que obviamente – e, nesses tempos de ‘pós-verdade’ e dificuldade de interpretação de textos, o óbvio há de sempre ser dito – a eliminação dos recursos extraordinários não poderia se limitar àqueles em que versada matéria penal, estendendo-se sim a todo e qualquer recurso de tal natureza. A uniformização de jurisprudência, a contrariedade a dispositivos de leis e a contrariedade a normas constitucionais seriam assim objeto unicamente de ações autônomas de natureza rescisória. Só aí, operando-se o trânsito em julgado com o acórdão condenatório proferido por órgão jurisdicional de segundo grau, possível se faria a por eles tão almejada execução da pena. Simples assim.


[1] Miranda, J. Contributo para uma teoria da inconstitucionalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1996 (reimpressão), pag.11.

[2] Gleizer, O. e Góes, G. Breves comentários sobre a execução da pena no direito alemão. Jota. 16/10/2019. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/penal-em-foco/breves-comentariossobre-a-execucao-da-pena-no-direito-alemao-16102019 (acesso em 18/10/2019).

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  • Brave

    é juíza de Direito aposentada, ex-juíza auditora da Justiça Militar Federal e presidente da Associação de Agentes da Lei contra a Proibição (Leap Brasil).

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