Justiça Tributária

Medida provisória da transação tributária cria Refis permanente

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

21 de outubro de 2019, 8h00

Spacca
Foi editada semana passada a MP 899, estabelecendo parâmetros para a transação tributária no âmbito da União e regulamentando o artigo 171 do CTN. Trata-se de iniciativa louvável visando facilitar as relações entre o Fisco federal e os contribuintes, o que seguramente será seguido pelos Fiscos dos entes subnacionais, tão logo seja transformada em lei. Diversos tributaristas já comemoraram sua edição, e a Unafisco já a criticou É digna de registro a frase do discurso do professor José Levi do Amaral, atual PGFN, quando menciona que "é preciso tirar o Estado do cangote do contribuinte".

A ideia de editar uma norma sobre transação tributária não é nova, sendo uma das propostas mais conhecidas a defendida por Heleno Taveira Torres anos atrás. De certo modo, os diversos Refis já editados também se constituem em transação tributária, conforme expus em coluna anterior.

A MP 899 se pretende uma lei geral sobre transação tributária. Permite que sejam transacionadas as dívidas fiscais dos contribuintes que já se encontram inscritas em dívida ativa e aquelas que ainda não chegaram a esta fase processual. O artigo 1º, parágrafo 3º, dá uma abertura para transação das dívidas ativas não-tributárias, o que é igualmente positivo.

A transação nesta MP pode ocorrer por proposta individual (iniciativa do devedor) ou por adesão, o que pressupõe a existência de editais periódicos a serem divulgados pelo Fisco, estabelecendo os critérios pelos quais os contribuintes podem aderir.

Dentre seus critérios consta a inclusão dos créditos que “sejam classificados como irrecuperáveis ou de difícil recuperação, desde que inexistam indícios de esvaziamento patrimonial fraudulento”, embora isso seja apenas uma das possibilidades aventadas na norma (artigo 5º, I).

Observando as condições estabelecidas para a adesão do contribuinte, chama a atenção a do artigo 4º, inciso IV (repetida no artigo 14, parágrafo 1º), que determina a renúncia a qualquer alegação de direitos, atuais ou futuras, sobre as quais se fundem ações judiciais, individuais ou coletivas. Da forma como está redigido, este item pode dar ensejo a perversas exigências, tais como a renúncia de créditos em ADIs (como no caso dos créditos de PIS/Cofins acrescidos indevidamente à base de cálculo do ICMS) para fins de quitação de valores infinitamente menores que estão no rol de débitos inscritos do contribuinte – é preciso estar alerta para isso. Esse tópico também chama a atenção para outros aspectos importantes, tais como (a) pode estar sendo ferida a norma do artigo 5º, XXXV, da Constituição, que determina a indisponibilidade de apreciação do Poder Judiciário à lesão ou ameaça de lesão a direitos; e, igualmente, (b) pode estar sendo ferido o Princípio da Reserva Legal Tributária (aspecto que será objeto de análise específica, a ser feita em outra ocasião).

A transação não poderá envolver o valor principal da dívida, só seus acréscimos, e, mesmo assim, estão afastadas (a) as que se refiram a algumas espécies de multas (inclusive “as de caráter penal” – o intuito seria mencionar “as multas punitivas”, conceito diverso?); (b) os créditos de FGTS (afinal, o titular desse crédito são os trabalhadores); (c) aqueles não inscritos em dívida ativa (o que é uma incongruência da norma, veiculada pelo artigo 5º, §2º, III, “c”, em contradição com o artigo 1º, §3º, I); e (d) os decorrentes do Simples Nacional (seguramente afastado por questões federativas, pois a União acabaria por transacionar débitos de outras unidades federadas).

O débito poderá ser parcelado em até 84 meses, com redução de até 50% do valor dos créditos que poderão ser transacionados. Para as pessoas físicas, microempresas e empresas de pequeno porte, o parcelamento pode ocorrer em até 100 meses, com redução de até 70% dos créditos permitidos a serem transacionados. Poderá ser exigida garantia para o parcelamento, ou a manutenção das que já tiverem sido oferecidas, até a quitação final.

É curioso notar que a transação não suspende a exigibilidade dos créditos, e nem a tramitação das ações, o que poderá ocorrer apenas se a PGFN permitir. Isso reforça o poder desse órgão na concessão de CNDs, o que é igualmente perverso e difere dos usuais parcelamentos especiais anteriores. Todavia, o requerimento de transação, nos termos dos editais a serem divulgados, suspenderá o trâmite das ações administrativas (artigo 14, §5º), embora não suspenda a exigibilidade do crédito (artigo 14, §6º).

Também consta da MP um conjunto de normas estabelecendo os paradigmas para a elaboração dos editais, que serão periodicamente divulgados, os quais também deverão observar os impactos financeiros e orçamentários, obedecendo ao artigo 113 da CF (disposição repetida várias vezes na MP 899: artigo 10, parágrafo único, artigo 18, parágrafo único e artigo 19).

O artigo 20 delimita a responsabilidade dos agentes públicos envolvidos no processo de transação apenas “quando agirem com dolo ou fraude para obter vantagem indevida para si ou para outrem”, o que não contempla as diversas possibilidades existentes, dentre elas a de negar o direito ao contribuinte, quando o sabe correto e adequado, dentre outras hipóteses.

Há um silêncio eloquente sobre a hipótese de transação decorrente de proposta individual (iniciativa do devedor) que é tão somente mencionada no início do texto e esquecida ao longo da norma.

Como referido, a ideia de transação é algo que deve ser louvado, porém a norma editada (MP 899) traz um novo componente extremamente peculiar, que merece redobrada atenção, pois, será que o Congresso Nacional deseja abrir mão do poder de decidir quando e para quem serão concedidas as transações?

Este é o ponto central da MP 899, uma vez que ela delega integralmente ao Ministério da Economia o direito de decidir quem, quando e sob quais condições concretas deve ser utilizada a transação tributária.

Isso traz um componente de transferência de poder, uma vez que o poder de tributar é ínsito ao Congresso Nacional, e, por via de consequência lógica, também o poder de não-tributar – que é, em apertada síntese, o objeto da transação, através de renúncia e parcelamento de créditos. Todos os Refis, qualquer que tenha sido seu nome, passaram pelo Congresso Nacional com a específica determinação de seu objeto.

No caso da MP 899 há uma verdadeira delegação de competência normativa ao Poder Executivo para decidir quem deve se beneficiar da transação. As linhas traçadas são muito genéricas, dando muito mais a impressão de uma moldura de um quadro, à espera de uma tela. Só após se terá conhecimento se a tela (o verdadeiro conteúdo da norma) será uma pintura original de Leonardo da Vinci ou um pôster do Romero Britto. O Congresso Nacional, se anuir com essa proposta, fará o papel daquelas lojas de molduras à minuto – sendo que nestas, pelo menos, o proprietário leva a tela para ser enquadrada, enquanto que na MP 899 o Congresso entregará uma moldura e só posteriormente verá no quê ela foi utilizada.

Uma primeira impressão, a ser confirmada, aponta que o formato legislativo pretendido mais parece o de uma lei delegada (artigo 68, CF), cujo processo legislativo é completamente diverso daquele de uma MP. As leis delegadas são elaboradas “pelo Presidente da República, que deverá solicitar a delegação ao Congresso Nacional”, com o complicador de que é de competência exclusiva do Congresso Nacional “fiscalizar e controlar, diretamente, ou por qualquer de suas Casas, os atos do Poder Executivo” (CF, artigo 49, X), o que impede seu uso, pois “não serão objeto de delegação os atos de competência exclusiva do Congresso Nacional” (CF, artigo 68, §1º).

Inegavelmente a matéria é urgente e relevante, o que permite o uso de uma MP (artigo 62, CF), porém é claro que nos termos vazados se trata de uma delegação de poder tributário do Poder Legislativo ao Poder Executivo.

Resta saber como o Congresso Nacional analisará esse aspecto, dentre outros, pois a proposta enviada lhe subtrai poder, permitindo que o Poder Executivo, através do Ministério da Economia, adote uma espécie de Refis permanente, ao sabor da análise de conveniência e oportunidade, inerentes aos atos administrativos.

Assim, é previsível a propaganda governamental no sentido de que “neste governo não foram mais editados Refis”, quando, na verdade, haverá um Refis permanente nas mãos do Poder Executivo, caso a MP venha a ser aprovada tal como editada.

Ficarão os deputados e senadores com o ônus político de aprovação das matérias que complicam a vida dos contribuintes, como a reforma previdenciária e a reforma tributária, e transferirão ao Poder Executivo o bônus político de facilitar a vida do contribuinte, através da possibilidade permanente de redução e parcelamento de dívidas fiscais, a seu exclusivo critério? É ver para crer. Aguardemos.

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    é sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados, professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e de Direito Financeiro e Tributário da Universidade Federal do Pará (UFPA).

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