Opinião

O controle social das atividades de proteção ao consumidor

Autor

  • Fernando Rodrigues Martins

    é professor da graduação e da pós-graduação da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) mestre e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) membro do Ministério Público do Estado de Minas Gerais e presidente do Brasilcon.

19 de outubro de 2019, 6h18

Passou a viger em 09/10/2019 o Decreto Presidencial nº 10.051, que institui o Colégio de Ouvidores do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC). Elaborado formalmente no âmago da Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor, o édito, que não conta com a adesão dos membros que compõem o mencionado sistema (Procons, Ministério Público, Defensoria Pública, Delegacias de Defesa do Consumidor, Juizados Especiais Cíveis e Organizações Civis de defesa do consumidor) [1], fixa o ‘controle social’ das atividades dos órgãos protetivos.

A atenta análise do mencionado Decreto revela que a respectiva natureza o qualifica como ato normativo (obviamente, passível de controle) [2], estando fragmentado na trilogia finalidade – composição – competência. Decompondo: finalidade vinculativa de fixação de diretrizes para o ‘controle social’ das atividades desempenhadas pelos órgãos e entidades; composição estruturada com assentos destinados na maioria a agentes públicos e assimetricamente com baixa representatividade das entidades civis de defesa do consumidor; e competência distribuída em quinze dispositivos, dos quais surte bastante espécie aquele que atribui ao colégio de ouvidores a criação de instrumentos para fiscalização e acompanhamento de atos ilegais ou arbitrários cometidos por operadores de proteção e defesa do consumidor (inc. VIII, art. 5º). [3] 

O desiderato, à vista disso, é nitidamente frear e estabelecer limites à atuação dos PROCONS e demais órgãos que vinculadamente estão obrigados à proteção e defesa do consumidor, já que só de controle administrativo (inclusive, de mérito) se trata. Enfim, imediatamente restringe as instituições constitucionalmente criadas para ações  protetivas; mediatamente fragiliza o consumidor, como agente vulnerável e diferenciado. [4] 

Mesmo que não haja dúvidas quanto à relevância de políticas de controle sobre a Administração Pública, parece que a edição do ato normativo encontra forte óbice frente à Constituição Federal, assim como inadequação a demais disposições legislativas.

Em primeiro lugar, a positivação expressa como direito fundamental dos direitos do consumidor leva a nítido efeito ‘bumerangue’ quanto à correlação de deveres fundamentais de proteção por parte do Estado. Esta é a manifestação objetiva, clara e palpável prevista na legalidade constitucional e nesta esfera de direitos prevalentes (característica primaz dos direitos fundamentais) nada pode ser corrompido, defraudado ou desviado. [5] 

Por conseguinte, a fixação de restrição à atuação daqueles que são obrigados e vinculados a agir esbarra em nítido sistema de validade constitucional, afinal não é da competência da SENACON e muito menos do SNDC ações correcionais ou limitativas aos órgãos públicos que compõem o sistema. O Decreto, nesta percepção, desvia-se da finalidade precípua no âmbito do SNDC cuja linha de atuação respeita às políticas públicas de promoção aos consumidores.

Abusos e ilícitos são solvidos mediante controle judicial dos atos e decisões administrativas e também internamente pelos próprios órgãos correcionais de cada ente federado, inclusive mediante instauração de processo administrativo disciplinar. Atente-se que a responsabilidade fiscalizatória já encontra plena disposição no próprio sistema [6], o que redunda na verificação de que o Decreto 10.051/19 é desnecessário e oculta escopo vedado pelo ordenamento: proteção deficiente (Untermassverbote). [7] 

O Decreto, ainda, como ato normativo ultrapassa os limites federativos. Regula em termos de atribuição de condutas e comportamentos, dirigindo-se aos Estados, Distrito Federal e Municípios. Induvidoso que, na vertente, o poder central tisnou as respectivas autonomias regionais e locais, contrariando o consagrado federalismo democrático [8]. Vale lembrar que os Estados têm legislação e regulamentos com temas de defesa do consumidor, assim como a grande maioria dos municípios brasileiros igualmente mantém dispositivos para proteção dos vulneráveis. Não só isso, tais unidades federativas também fixam, por legislação, ouvidorias e sistemas de controle internos.

Há, em correntio, imenso desajuste no ato normativo, porquanto, na prática a consecução de qualquer atividade esbarrará em instituições que por muitos lustros já dispõem de estruturas de ouvidorias, como no caso os Ministérios Públicos e Defensorias Públicas. [9]

Pois bem, justamente nesta medida é que surge outro entrave frente à Constituição Federal. Como os órgãos protetivos (estaduais e municipais) já possuem ouvidorias próprias, bem como outros nichos de controle interno e externo, não faz sentido nova plataforma de monitoramento, a não ser que o telos preponderante seja realmente o ‘desestímulo’ às ações dos órgãos protetivos. A invalidade resta verificada tanto na cláusula de proibição de excesso (restrição injustificada), como na vedação do retrocesso social, com claro risco de romper o núcleo essencial dos direitos fundamentais do consumidor [10], sem prejuízo do abalo à segurança jurídica. [11]

No campo formal igualmente é possível verificar que o Decreto não encontra arrimo magno. Cabe ratificar que as ouvidorias (e demais sistemas de apoio, denúncias e participação do usuário) perante a Administração Pública foram constitucionalmente consagradas a partir da Emenda 19/1998, consolidando a redação do § 3º do art. 37 [12]. Nesta configuração não se vê observado o atendimento ao princípio da reserva legal [13], o que mitiga bastante as funções valorativas das ouvidorias que merecem caráter de estabilidade e institucionalidade, conforme recomendação anterior da própria União [14], que para tanto editou a Lei 13.460/17.

Indicados perfunctoriamente os desajustes constitucionais, o Decreto no âmbito infraconstitucional merece duas críticas. Imperceptível o cumprimento do disposto no art. 29 da LINDB que exige consulta pública prévia dos administrados, como concretude à processualidade e consensualidade administrativa na formação compartilhada da decisão jurídica.

Não fosse isso, se o desiderato do ato normativo é evitar abusos e atos ilícitos dos operadores que atuam na defesa do consumidor, contraditoriamente acabou adotando medida contra a transparência administrativa, abrindo espaço para sigilos. Precisamente, o § 4º do art. 6º traz a seguinte redação: “É vedada a divulgação de discussões em curso nas reuniões ordinárias e extraordinárias sem a anuência prévia do Presidente do Colégio de Ouvidores do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor”. [15] 

Outro exemplo de desvio de finalidade, ofensivo à boa-fé objetiva e à moralidade administrativa, incompatível com a eticidade que se espera dos poderes públicos. [16]


[1] Art. 2º do Decreto 2.181/97

[2] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 16ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 352.

[3] Aqui faço a transcrição: Art. 5º. Inc. VIII “propor a criação de instrumentos para aprimorar a fiscalização e o acompanhamento de práticas de atos ilegais ou arbitrários cometidos por operadores de proteção e defesa do consumidor’.

[4] Cláudia Lima Marques. Contratos no CDC: o novo regime das relações contratuais. 8ª. ed. São Paulo: Ed. RT, 2016, p. 413.

[5] MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 2ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 40. Também: DUQUE, Marcelo Schenck. Curso de direitos fundamentais: teoria e prática. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 52, aqui na passagem: “Trata-se de bens do mais alto significado, que se originaram não da ação estatal em si, mas do mundo dos fatos e que na acepção do Estado de direito, devem ser protegidos pelo Estado”.

[6] O próprio Decreto 2.181/97 já estabelece a dimensão da responsabilidade. Observe: “Art. 11. Sem exclusão da responsabilidade dos órgãos que compõem o SNDC, os agentes de que trata o artigo anterior responderão pelos atos que praticarem quando investidos da ação fiscalizadora”.

[7] SILVA, Jorge Pereira. Deveres do estado de protecção de direitos fundamentais: fundamentação e estrutura nas relações jusfundamentais. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2015, p. 37

[8] STF – ADI: 5745 RJ – RIO DE JANEIRO 0007807-89.2017.1.00.0000. Relator: Min. ALEXANDRE DE MORAES. Data de Julgamento: 07/02/2019.

[9] Vejam os exemplos de Minas Gerais e Ceará, unidades federativas nas quais os PROCONS estaduais são geridos e administrados pelos respectivos Ministérios Públicos, mediante expressas legislações (Minas Gerais Lei Complementar 94/2007) e Ceará (Lei Complementar 14.093/2008).

[10] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Almeida, 2003, p. 339-340

[11] BRASIL. STF – ADI: 4717 DF – DISTRITO FEDERAL. Relatora: Min. CÁRMEN LÚCIA. 05/04/2018. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA PROVISÓRIA N. 558/2012.

[12] Verbis: “§ 3º A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta”

[13] MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2003. p. 69.

[14] www.cgu.gov.br/assuntos/ouvidoria/produtos-e-servicos/consulta-publica/arquivos/produto_5_gestao_de_ouvidorias.pdf

[15] Tal dispositivo é antagônico à Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, no Brasil internalizada pelo Decreto 5.687/06. A exigência de transparência é clara: Artigo 5. Políticas e práticas de prevenção da corrupção 1. Cada Estado Parte, de conformidade com os princípios fundamentais de seu ordenamento jurídico, formulará e aplicará ou manterá em vigor políticas coordenadas e eficazes contra a corrupção que promovam a participação da sociedade e reflitam os princípios do Estado de Direito, a devida gestão dos assuntos e bens públicos, a integridade, a transparência e a obrigação de render contas.

[16] NOBRE JUNIOR, Edilson Pereira. O princípio da boa-fé e sua aplicação no direito administrativo brasileiro. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.

Autores

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    é promotor de Justiça em Minas Gerais, professor adjunto de Direito Civil na Universidade Federal de Uberlândia, doutor e mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP e pesquisador científico no Max Planck Institute for Comparative and International Private Law (Alemanha).

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