Ambiente jurídico

Importância do tratado de Roerich na defesa do patrimônio cultural do Brasil

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

19 de outubro de 2019, 8h00

Spacca
Nicholas Roerich, nascido na Rússia, em 1874, foi um historiador, poeta, pintor, escritor e líder espiritual com invejável trajetória intelectual em busca da paz e da cultura. Contudo, são poucos os que conhecem a importância de Roerich no cenário da tutela do patrimônio cultural em âmbito mundial.

Em sua juventude, na Universidade de São Petersburgo, Nicholas frequentava, simultaneamente, a Escola de Direito, a Faculdade de História e Filologia, a Academia de Artes e o Instituto de Arqueologia. Como explorador e cientista, realizou pesquisas arqueológicas e escavações na Rússia, na Ásia Central, China e Mongólia em busca de informações sobre as antigas civilizações.

Na década de 1920 esteve nos Estados Unidos, onde criou várias fundações de mecenato cultural e de teosofia. Em 1929 foi nomeado para o Nobel da Paz pela Universidade de Paris. Naquele mesmo ano, preocupado com as ameaças sobre os bens culturais do planeta, Roerich publicou proposta pioneira sobre a necessidade de um pacto internacional para proteção dos valores culturais e passou a sensibilizar autoridades de todo o mundo sobre a relevância do assunto.

Em 15 de abril de 1935, em sua homenagem, foi assinado na Casa Branca, em Washington, nos EUA, o pacto de proteção a instituições artísticas, científicas e monumentos históricos, por mais de vinte países da América. Na ocasião, o Embaixador Oswaldo Aranha assinou o documento pelo Brasil. Nos Estados Unidos o documento foi publicado pelo Presidente Franklin Roosevelt em 25 de outubro daquele ano, passando a integrar o ordenamento jurídico estadunidense. Também assinaram o importante documento Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, República Dominicana, Equador, El Salvador, Guatemala, Haiti, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela.

O Pacto de Roerich declara a necessidade de se proteger a atividade e a produção cultural no mundo, independentemente de a época ser de guerra ou de paz. Lugares de valor cultural são declarados neutros e protegidos. A herança cultural das nações deve ser, segundo o documento, cuidada e renovada, impedindo que se deteriore, pois não há nada de valor superior para uma nação do que sua cultura. O documento instituiu a Bandeira da Paz do Patrimônio Cultural, onde 3 círculos que representam a Arte, a Ciência e a Religião aparecem envoltos por uma circunferência que significa a totalidade da Cultura. Os monumentos assinalados com tal bandeira são considerados neutros pelo Pacto e não podem ser objeto de ações de beligerância, seja em tempo de paz ou de guerra.

Na sequência dos acontecimentos, em 08 de setembro de 1936, o Decreto nº 1.087, assinado pelo então Presidente Getúlio Vargas, promulgou em nosso país o “Tratado para a protecção das Instituições Artisticas, Scientificas e Monumentos Historicos (Pacto Roerich) firmado entre o Brasil e diversos paizes, em Washington, a 15 de abril de 1935”.

A importância do documento internacional para a tutela do patrimônio cultural do Brasil é incontestável e sua utilização prática merece maior atenção por parte dos operadores do Direito, sobretudo nos tempos hodiernos, em que, infelizmente, retrocessos e ações de desprezo pelo patrimônio cultural brasileiro são constatadas aos borbotões.

Por primeiro, pelo fato da internalização do Tratado ao ordenamento jurídico brasileiro anteceder o próprio Decreto-Lei nº 25, de 1937, que estabeleceu o tombamento de bens culturais em nosso país, o que torna o Pacto de Roerich uma das normas fundantes da tutela do patrimônio cultural brasileiro.

Outro ponto de extrema relevância contido no Pacto é o caráter de neutralidade (e, portanto, insuscetibilidade de serem objeto de qualquer tipo de ameaça ou dano) conferido a todos os monumentos históricos, museus e instituições cientificas, artísticas, educativas e culturais do país.

Não bastasse, o Tratado impõe o dever de respeito e proteção a todos os monumentos históricos, museus, instituições científicas, artísticas e culturais, e às pessoas que neles trabalham, tanto em tempo de paz como de guerra. Dessa forma, o Pacto de Roerich pode ser invocado como fundamento jurídico válido para a tutela do patrimônio cultural brasileiro, independentemente do bem cultural de ser tombado. Com efeito, nos termos do art. 5º, § 2º da Constituição Federal, os direitos e garantias expressos na Constituição Federal não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte, tal como o Pacto de Roerich.

Assim, o Tratado de Roerich pode e deve ser utilizado para a defesa dos bens culturais de nosso pais ao lado de outros documentos internacionais, a exemplo da Convenção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural, acerca da qual já decidiu o STJ no RESP 840.918:

A Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural tem aplicabilidade judicial direta no Brasil, seja porque seus princípios gerais e obrigações, mesmo os aparentemente mais abstratos e difusos, iluminam o sistema constitucional e legal brasileiro e com ele dialogam, em perfeita harmonia, coerência e omplementaridade, seja por ser inadmissível que o País negocie, assine e ratifique tratados internacionais para em seguida ignorá-los ou só aplicá-los de maneira seletiva, cosmética ou retórica. A cooperação entre os Estados-Parte, uma das marcas da Convenção, não a transforma em desidratado acordo de cavalheiros, que legitima a inação e a omissão estatal, algo que imunizaria seu texto, em cada País, contra eventual tentativa de implementação pelo Poder Judiciário.

Enfim, vale conhecer e refletir sobre as amplas perspectivas que nos abre, em benefício da melhor tutela do patrimônio cultural brasileiro, o texto do pouco explorado Pacto de Roerich, cujo conteúdo abaixo transcrevemos.

DECRETO Nº 1.087, DE 8 DE SETEMBRO DE 1936

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA dos Estados Unidos do Brasil: Tendo sido ratificado o Tratado para a protecção das Instituições Artisticas, Scientificas e Monumentos Historicos (Pacto Roerich), concluido e firmado entre o Brasil e diversos paizes em Washington ,a 15 de Abril de 1935,e

Havendo sido depositado o instrumento de ratificação nos Archivos da União Panamericana a 5 de Agosto do corrente anno, DECRETA:

Que o referido Tratado appenso por cópia ao presente decreto seja executado e cumprido tão inteiramente como nelle se contém.

Rio de Janeiro, em 8 de Setembro de 1936, 115º da dependencia e 48º da Republica.

GETÚLIO VARGAS

José Carlos de Macedo Soares

GETULO DORNELLES VARGAS

Presidente da Republica dos Estados Unidos do Brasil

 

Faço saber aos que a presente Carta de Ratificação virem que, tendo sido approvado pela VII Conferencia Internacional Americana, foi pelos Estados Unidos do Brasil e diversos paizes concluido e assignado em Washington, a 15 de Abril de 1935, o Tratado para a proteção das Instuições Artisticas, Scientificas e Monumentos Historicos (Pacto Roerich), do teôr seguinte :

TRATADO PARA A PROTECÇÃO DAS INSTITUIÇÕES ARTISTICAS, SCIENTIFICAS E MONUMENTOS HISTORICOS

(PACTO ROERICH)

As Altas Partes conrtactantes, animadas do desejo de transformar em convenção os postulados da Resolução approvada a 16 de Dezembro de, 1933 por todos os Estados representados na Setima Conferencia Internacional Americana, realizada em Montevidéo, que recommendou "aos Governos da America, que o não tivessem feito, a assignatura do "Pacto Roerich", iniciado pelo "Museu Roerich" dos Estados Unidos e que tem por objecto a adopção universal de uma bandeira, já creada e conhecida, para com ella preservar, em qualquer época de perigo, todos os monumentos immoveis, de propriedade nacional ou particular, que constituem o patrimonio cultural dos pôvos, e afim de que esse patrimonio de cultura seja respeitado e protegido em tempo de guerra e de paz, resolveram celebrar um tratado e, com esse fim, convieram nos artigos seguintes:

ARTIGO PRIMEIRO

Serão considerados neutros, e, como taes, respeitados e protegidos pelos belligerantes, os monumentos historicos, os museus e as instituições scientificas, artiticas, educativas e culturaes.

Igual respeito e protecção serão dispensados ao pessoal das instituições acima referidas.

Conceder-se-á o mesmo respeito e protecção nos monumentos historicos, museus, instituições scientificas, artisticas, educativas e culturaes, tanto em tempo de paz como de guerra.

ARTIGO II

A neutralidade, protecção e respeito devidos aos monumentos e instituições, mencionados no artigo precedente, serão outorgados em todo o territorio de cada um dos Estados signatarios ou adherentes, sem distincção de nacionalidade a que pertençam. Os respectivos Governos se compromettem adoptar as medidas de legislação interna necessarias para assegurar a protecção e respeito previstos.

ARTIGO III

Afim de identificar os monumentos e instituições a que se refere o artigo I, poder-se-á usar uma bandeira distinctiva (um círculo vermelho, circumdando uma triplice esphera sobre um fundo branco), conforme o modelo annexo a este tratado.

ARTIGO IV

Os Governos signatarios e os que adheriram ao presente tratado enviarão à União Panamericana, no acto da assignatura ou do adhesão, ou em qualquer época posterior, uma lista dos monumentos e instituições para os quaes desejem a protecção outorgada por este tratado.

A União Pan-americana, ao notificar aos Governos os actos da assignatura ou adhesão, enviará tambem a lista de monumentos e instituições mencionada neste artigo, e informará os demais Governos de qualquer mudança que ulteriormente se faça na referida lista.

ARTIGO V

Os monumentos e instituições mencionados no artigo não gozarão mais os privilegios estipulados pelo presente convenio, quando forem utilizados para fins militares.

ARTIGO VI

Os Estados que não assignarem este tratado nesta data poderão assigna-lo ou a ella adherir em qualquer tempo.

ARTIGO VII

Os instrumentos de adhesão, bem como os de ratificação e denuncia do presente tratado serão depositados na União Pan-americana, a qual communicará aos demais Estados signatarios ou adherentes a acta deste deposito.

ARTIGO VIII

Qualquer Estado signatario do presente tratado ou que a elle, adherir, poderá denuncial-o em qualquer tempo, e a denuncia produzirá effeito tres meses depois de sua notificação aos demais signatarios ou adherentes.

EM FÉ DO QUE, os Plenipotenciarios abaixo assignados, depois de terem depositado os seus Plenos Poderes, que foram encontrados em bôa e devida forma, asssignam o presente tratado em nome de seus respectivos Governos e appõem ao mesmo os seus sellos, nas datas que figuram em seguida ás suas assinaturas.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!