Limite penal

"Lava jato" usou ajuda internacional para criar um fundo bilionário para chamar de seu

Autores

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Thales Cassiano

    é especialista em Direito Penal Econômico pelo IDPEE e Coimbra mestrando em Ciências Criminais na PUC/RS e advogado associado do escritório Bouza Advogados.

18 de outubro de 2019, 8h00

O acordo criminal realizado entre Petrobras e autoridades estadunidenses no ano passado voltou a ser assunto de destaque. A ConJur [1], no último dia 12, replicou informação trazida pelo El País, da série de notícias da “Vazajato”, na qual foi divulgada uma planilha que continha as metas do coordenador da Lava jato para o ano de 2018. No meio de inúmeras informações, saltou aos olhos a intenção de “verificar quais empresas ainda poderiam estar sujeitas ao DOJ e poderiam fazer acordo”.

Em outras palavras, Deltan Dellagnol colocou como meta pessoal ou da força-tarefa – é impossível saber ao certo se existia alguma diferença – pressionar as empresas investigadas na Lava jato com o argumento de que poderiam sofrer também as punições de acordo com a legislação dos Estados Unidos de corrupção estrangeira – Foreign Corrupt Practice Acts (FCPA). Esta fórmula já havia sido efetiva com a Petrobras e depois com a Odebrecht. Diante do sucesso da prática, parece ter Deltan buscado a perfeição.

Inegavelmente, o que gerou maior repercussão pública no caso da Petrobras foi a criação de um fundo privado do Ministério Público Federal no Paraná para gerir 80% da generosa multa de R$ 3,4 bilhões aplicada à estatal brasileira pelo DOJ – Departamento de Justiça dos Estados Unidos. Posteriormente, coube ao Supremo suspender a homologação do acordo (ADPF 568, Rel.: Min. Alexandre de Moraes, DJe 19.09.2019). Na nossa visão, ainda que questionável pela forma, a quota-parte de 80% destinada para o MPF já demostrava o grau de colaboração “efetiva” da Lava jato com as autoridades estadunidenses.

A meta de Deltan era simples: já que no Brasil as empresas não podem sofrer ações penais, seria só enviar, por Auxílio Direto, aos Estados Unidos, elementos de informação que pudessem comprovar o cometimento de crimes formais segundo a FCPA. Para justificar as multas, dir-se-ia que foram assinados acordos de leniência com as autoridades judiciais dos Estados Unidos e, no caso de questionamentos mais rebuscados, a resposta era pronta: a Petrobras operava na bolsa de Nova Iorque. Toda a operação poderia ter passado desapercebida se não fosse a audácia de querer gerir um fundo bilionário, colhendo-se os frutos da atuação institucional.

Isso tudo foi possível devido ao emprego acrítico da Cooperação Jurídica Internacional em matéria penal, principalmente com utilização dos Auxílios Diretos, o que cresceu exponencialmente na esteira da própria Lava jato, segundo propaganda própria[2]. E por se tratar de instituto jurídico relativamente novo, moldado casuisticamente em acordos bilaterais e multilaterais entre estados soberanos, a doutrina apresenta muita dificuldade de apresentar limites claros e universalizáveis para a atuação dos operadores do direito nestas hipóteses.

A bem da verdade, os mestres Raúl Cervini e Juarez Tavares[3], já no final dos anos 90, articulavam a necessidade de que a dupla-incriminação (em analogia ao regramento para extradição) fosse uma regra aplicável, pelo menos, nos Auxílios Diretos para implementação de medidas de cooperação de 2o nível (que corresponderiam no processo penal a cautelares reais e pessoais sobre os investigados), respeitando-se a política criminal de cada ente soberano.

De lá para cá, seguindo nossa tradição diplomática, o Brasil celebrou diversos acordos bilaterais com outras nações e, muitas das vezes, optou pela necessidade da regra da dupla-incriminação, a exemplo do acordo com a França[4]. Por outro lado, não privilegiou a mesma regra no acordo celebrado com os Estados Unidos. Como dito, a difusão das fontes aplicáveis dificulta a apresentação de limitações claras e universalizáveis de cooperação por Auxílio Direto em matéria penal.

Soma-se a esta dificuldade a descentralização que os Auxílios Diretos possibilitam, uma vez que tramitam perante Autoridades Centrais, geralmente vinculadas a órgãos do Poder Executivo. Os pedidos realizados diretamente por juízes, procuradores e delegados são enviados e devolvidos pelo mesmo canal administrativo por outros países. Não raro, todo este contexto possibilita que a atuação dos legitimados a cooperarem desta forma não sejam objeto de controle sistêmico.

Essa utilização descentralizada dos Auxílios Diretos só é possível sob a perspectiva da necessidade de que se cumpra o ordenamento jurídico pátrio integralmente neste tipo de cooperação, nas palavras de Maria Rosa Guimarães Lobo[5] trata-se de um procedimento inteiramente nacional, que começa com uma solicitação de ente estrangeiro para que um juiz nacional conheça de seu pedido como se o procedimento fosse interno”. O CPC contemplou esta regra no art. 26, § 3º e, por determinação constitucional, somente o STJ pode conceder exequatur de decisão alienígena que opere efeitos contra legem, segundo o ordenamento pátrio.

Em resumo, o Auxílio Direto imprescinde do respeito à legislação nacional.

A meta de Deltan era agir exatamente neste espaço de incerteza e segredo que os Auxílios Diretos possibilitam e, de certa forma, a repercussão da própria operação Lava jato criava a ideia de que tudo que foi feito era permitido, o que “legitimava” a atuação. Os acordos de não-agressão da Petrobras e da Odebrecht são a prova de que a estratégia rendeu seus frutos, mas o que assusta é a meta estipulada: pressionar as empresas a fazer acordos – ou melhor, forçar delações?!

“Verificar quais empresas ainda poderiam estar sujeitas ao DOJ e poderiam fazer acordo” era, de fato, uma meta: burlar os limites da aplicação lei penal no Brasil. A situação fica ainda pior quando o elemento subjetivo dos agentes do Estado é exposto por uma tabela de metas, no mínimo, pitoresca.

A dupla-incriminação como regra é um início de uma necessária discussão acadêmica sobre a utilização dos Auxílios Diretos em matéria penal. Entretanto, muito mais deve ser colocado em perspectiva; as empresas citadas neste artigo são vítimas das condutas de seus gestores de acordo com o ordenamento jurídico nacional e, justamente por isso, a Petrobras inclusive atuou como assistente de acusação em diversas ações penais.

Mas os absurdos não param por aí, o acordo criminal assinado pela Petrobras envolve, inclusive, assunção de culpa – criminal – por fatos ocorridos no Brasil: entre outros, caso do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (p. A7) e da Refinaria de Abreu e Lima (p. A4). Assim, a meta de Deltan era utilizar o Auxílio Direto para possibilitar a inversão da posição processual da vítima (pessoa jurídica no Brasil) para a posição de ré em ordenamento estrangeiro, por fato acontecido no Brasil.

Ao fim e ao cabo, não se pode aceitar que os instrumentos de Cooperação sejam utilizados como meio para que autoridades nacionais recriem a política criminal, agindo quase como se advogados privados fossem na prospecção de clientes e assim criar um fundo bilionário para chamar de seu… Há muito que se evoluir neste tema, mas seguramente a positivação de acordos bilaterais de assistência mútua não tem como objeto possibilitar que os agentes do Estado atuem dessa forma.


[1] Acessível em: https://www.conjur.com.br/2019-out-12/deltan-procurou-empresas-acordo-governo-eua.

[2] CERVINI, R.; TAVARES, J. Princípios de Cooperação Judicial Penal Internacional no Protocolo do Mercosul. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, pg. 138.

[3] Acessível em: http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/sci/noticias/noticias-1-1/lava-jato-completa-tres-anos-com-mais-de-180-pedidos-de-cooperacao-internacional

[4] Decreto nº 3.324, de 30 de dezembro de 1999, Capítulo I, art. 2, “a”.

[5] LOBO, Maria. Auxílio Direto em matéria civil: novo instrumento de cooperação jurídica internacional brasileiro, tese de doutorado apresentada no Programa de Pós Graduação da UERJ, 2006.

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