Interesse Público

O necessário controle do Poder Judiciário

Autor

  • Adilson Abreu Dallari

    é professor titular de Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da PUC/SP; membro do Conselho Científico da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP); membro do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos e Legislativos da FIESP; membro do Núcleo de Altos Temas (NAT) do SECOVI; membro do Conselho Superior de Direito da FECOMÉRCIO; membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (ABRADADE); membro do Conselho Superior de Orientação  do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo Financeiro e Tributário (IBEDAFT);  membro do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP); consultor jurídico.

17 de outubro de 2019, 8h00

Spacca

Este artigo está sendo publicado no momento em que o Supremo Tribunal Federal vai decidir sobre a soltura de Lula. Esse é o tema central, o verdadeiro objeto e o real objetivo da decisão. Ela pode afetar mais de 190.000 sentenciados, mas isso é secundário. Aqui será feita uma análise técnica do comportamento do STF, mas não é possível ignorar os interesses em jogo e os efeitos práticos da decisão.

É essencial demonstrar que o presente artigo se insere numa linha de pensamento há muito tempo sustentada e devidamente publicada, a respeito da separação de poderes e do controle do poder pelo poder: “O objetivo fundamental da chamada teoria da separação de Poderes, ou, mais exatamente, da especificação das funções de cada Poder, é exatamente evitar o absolutismo, o exercício do Poder Público em termos absolutos, sem qualquer limitação”. “é a criação de instrumentos de contenção do Poder, possibilitando que cada um dos Poderes controle cada um dos outros Poderes.” (ADILSON ABREU DALLARI, “Controle Compartilhado da Administração da Justiça”, in Revista Brasileira de Direito Público, RBDP, 07, out/dez. 2004, Editora Forum, Belo Horizonte, p. 15)

O art. 2º da Constituição Federal afirma que o Legislativo, o Executivo e o Judiciário são poderes independentes e harmônicos. Cada um deles tem funções próprias e específicas, que são estabelecidas no Título IV – Da Organização dos Poderes, a partir do art. 44 até o art. 75, merecendo especial destaque o disposto no §3º do Art. 58: “ As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores”. Fato determinado, não significa um único fato. Obviamente, a CPI pode ter como objeto alguns fatos determinados; no plural. Além disso, a prática reiterada de atos determinados pode revelar uma conduta (que também é matéria de fato) suspeita de ilicitude. O que se tem observado nos últimos tempos é uma conduta esdrúxula da Corte e de seus membros.

Obviamente, o Congresso Nacional não tem competência para revisar os atos jurisdicionais dos magistrados, nem questionar os fundamentos de dada decisão judicial. Não cabe ao Legislativo reformar decisões judiciais tomadas no exercício da competência jurisdicional, de dizer o direito. Mas não é possível que o Congresso ignore condutas estranhas, que denotam escancarado facciosismo, manifestado até pela imprensa. Um exemplo basta: o Ministro Gilmar Mendes move uma cruzada contra a operação Lava Jato e, particularmente, contra o Juiz Sérgio Moro. Paradoxalmente, caberá a esse mesmo Ministro, julgar se o seu desafeto agiu ou não com imparcialidade ao condenar o Lula.

Na República não existe qualquer cidadão ou autoridade imune a qualquer controle. Membros do Poder Judiciário, além dos atos típicos jurisdicionais,  também exercem funções administrativas; ou seja, praticam atos administrativos que, indubitavelmente. não são imunes a controle. O grande problema está nos atos processuais, nas decisões interlocutórias, monocráticas, que afetam substancialmente direitos de interessados e de terceiros.  Neste ponto, para deixar claro que não se trata da opinião isolada do autor deste texto, é forçoso transcrever artigo de Conrado Hubner Mendes sobre o que vem ocorrendo no STF: “As práticas anti-institucionais dos ministros, contudo, são ainda mais sofisticadas e combinam manipulação do tempo e do procedimento. Um ministro sozinho pode impedir, por prazo indeterminado, que o tribunal resolva um caso; pode também, quando relator, tomar uma decisão monocrática e obstruir o envio desse caso para julgamento colegiado. Um ministro relator, ao perceber que vai perder, pode tirar o caso da Turma e mandar para o plenário, sem explicação; pode também aproveitar a ausência anunciada de ministro opositor para colocar o caso em votação; pode, enfim, esperar ministro se aposentar, eleição ocorrer ou o Congresso se manifestar até devolver o caso e assim assegurar o resultado que lhe agrada. Eles podem violar regras de suspeição e impedimento, mesmo quando põem em risco a imagem da Corte. Esse poder é fruto de “acordos de cavalheiros”, “regras de fato”, não regras de direito”.(Conrado Hubner Mendes,  “O STF erra até quando acerta”, Revista Época, 09/06/18)

É incontestável (e até inerente ao ser humano) que agentes públicos podem praticar atos lícitos ou ilícitos. Algumas ilicitudes são patentes, evidentes, visíveis e identificadas de plano, por conterem erros grosseiros, indiscutíveis; puras arbitrariedades. Porém existem condutas e decisões ilícitas que não são perceptíveis de plano, dada sua aparente legalidade. É o que acontece com o denominado desvio de poder, uma ilegalidade disfarçada, uma ilicitude com aparência de legalidade. Isso pode acontecer (e deveras acontece) nessas decisões de condução do processo e que vão afetar a decisão (ou a indecisão) final.  O consagrado mestre Caio Tácito, desde longa data, já alertava: “Tanto o desvio de poder legislativo, como o desvio de poder jurisdicional, se podem caracterizar na medida em que o legislador ou o juiz destoem, de
forma manifesta, do âmbito de seus poderes que, embora de reconhecida  amplitude, não são ilimitados e atendem a fins que lhe são próprios e definidos.” (
CAIO TÁCITO, “Temas de Direito Público – Estudos e Pareceres”, 1º Volume, Editora Renovar, Rio de Janeiro, 1997, p. 340)

Se no âmbito do Poder Executivo já é difícil apurar decisões tomadas com desvio de poder ou desvio de finalidade, essa dificuldade é imensamente potencializada quando se trata de decisões tomadas por magistrados.  No âmbito da Suprema Corte, a essa dificuldade natural soma-se a suposta intangibilidade da pessoa física do ministro. Juízes de primeiro grau podem ser punidos, desembargadores nem tanto,  ministros em geral desfrutam de uma simples  aura da santidade, mas os Ministros do STF são incontestavelmente semideuses, amparados pelo mito da inimputabilidade por sua conduta.

Essa presunção absoluta é totalmente inadmissível nos dias atuais. Não só pelos avanços havidos no tocante ao conceito de separação de poderes , mas pela predominância de decisões monocráticas, de decisões contraditórias em casos idênticos, por preferências e engavetamentos inexplicáveis, por pedidos de vista estratégicos, pela promiscuidade entre julgadores e partes interessadas. Embora isso também ocorresse no passado, tudo ficava “intra muros”. Atualmente, na era das comunicações, com a revolução da informática, nada é secreto e é muito fácil fazer ligações entre comportamentos, dentro e fora dos Tribunais, ao longo do tempo.

É fato inquestionável que o STF perdeu prestígio e respeitabilidade, sendo alvo de protestos e até chacotas, na imprensa e nas redes sociais. Algumas atitudes vão além do ridículo, como é o inquérito conduzido pelo Ministro Alexandre de Moraes para averiguar supostas ameaças aos ministros do tribunal e fake news. O “fundamento” alegado para esse absurdo foi o Art. 43 do Regimento Interno que autoriza a instauração de inquérito para apurar “infração penal na sede ou dependência do Tribunal”. No exercício dessa inexistente competência foi determinada a censura à imprensa (O antagonista e Cruzoé).  Com a mesma abusividade foram feitas restrições de direito ao ex Procurador Geral da Justiça, Rodrigo Janot, que apenas cogitou de cometer um crime. Porém, o mais grave é que o STF vem usurpando a competência do Poder Legislativo,  como é o caso da inovação feita no processo penal, criando as razões semifinais, no caso de réus confessos delatores.

Isso tudo mostra ser absolutamente necessário que o Congresso Nacional exerça seu poder-dever de controlar o Poder Judiciário, pois não há outra autoridade competente para isso. O Ministério Público, não obstante seus amplíssimos poderes está impotente, pois não faz sentido algum abrir procedimento objetivando que o STF contenha os seus próprios abusos, salvo se isso lhe for determinado pelo Congresso, nos termos do Art. 58, § 3} da CF. As decisões que serão tomadas no processo mencionado no primeiro parágrafo merecem especial atenção, pois poderão despertar a consciência adormecida dos membros do Congresso Nacional.

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