Opinião

Liberdade econômica no setor financeiro: primeiras impressões sobre a Lei nº 13.874

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17 de outubro de 2019, 13h02

A sanção da chamada Lei da Liberdade Econômica[1] foi noticiada com especial ênfase nos aspectos trabalhistas[2], certamente por força das alterações havidas no curso do processo legislativo[3].

O novo diploma, contudo, tem alcance muito maior. Trata-se de lei de direito econômico que estabelece princípios, direitos e diretrizes interpretativas e regulatórias da atividade econômica, direcionada a garantir a liberdade de iniciativa. Nessa linha, um dos instrumentos adotados é o estabelecimento de limites à atuação do Estado regulador.

Recém-estabilizado o conteúdo da lei pela sanção do projeto de conversão da medida provisória, já é possível vislumbrar alguns aspectos de especial interesse para a atividade privada no âmbito do mercado financeiro.

A questão central diz respeito à maneira como a nova lei dialogará com a legislação que rege as atividades econômicas e dispõe sobre o poder regulatório do Estado. Discute-se, no caso, a aplicação da Lei da Liberdade Econômica em face das legislações setoriais.

No mercado financeiro, essa preocupação ganha um elemento adicional, decorrente do comando constitucional que atribui a leis complementares a regulação da estrutura do sistema financeiro nacional (art. 192 da Constituição Federal). Assim, diante de eventuais incompatibilidades de prescrições das legislações confrontadas, além do critério da especialidade para a solução de antinomias aparentes, também caberá recorrer ao hierárquico – caso se entenda haver hierarquia entre lei complementar e ordinária[4] – ou, ao menos, verificar eventual inconstitucionalidade decorrente da invasão, pelo legislador ordinário, de matéria reservada a lei complementar[5].

Tem especial importância nesse tópico a Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964, que dispõe sobre o sistema financeiro nacional e foi recepcionada com status de lei complementar[7]. Cabe ressalvar, a propósito, que nem todos os atores relevantes no setor financeiro são considerados integrantes do sistema a que se refere o art. 192 da Constituição Federal[8], de modo que sua disciplina não depende de lei complementar. Nessa situação encontram-se, por exemplo, as câmaras e os prestadores de serviços de compensação e de liquidação no âmbito do sistema de pagamentos brasileiro, considerados infraestruturas do mercado financeiro[9], e as instituições de pagamento[10], todos regidos por leis ordinárias – Lei nº 10.124, de 27 de março de 2001, e Lei nº 12.865, de 9 de outubro de 2013.

Feitos esses registros, merece atenção, inicialmente, o art. 3º, II, da Lei da Liberdade Econômica, que estabelece o direito de desempenhar atividade econômica em qualquer horário ou dia da semana, observadas as normas ambientais, trabalhistas e de direito real, bem como regulamentos de condomínio e negócios jurídicos em geral. O especial interesse para o setor financeiro fica evidente no confronto com a norma que veda o funcionamento dos estabelecimentos de crédito aos sábados (art. 1º da Lei nº 4.178, de 11 de dezembro de 1962[11]) e também com a Resolução do Conselho Monetário Nacional nº 2.932, de 28 de fevereiro de 2002, que define o horário mínimo de atendimento obrigatório para as agências de determinadas espécies de instituições financeiras e extrai seu fundamento de validade de disposição de lei complementar (art. 4º, VIII, da Lei nº 4.595, de 1964).

Outro ponto com reflexos peculiares no setor financeiro é o direito ao arquivamento de documentos por meio digital, que se equipara ao original físico para todos os efeitos legais (observados os requisitos do regulamento, conforme os arts. 3º, X, e 18 da Lei da Liberdade Econômica), associado ao direito de destruição do original após a digitalização (art. 10, que incluiu o art. 2º-A, § 1º, na Lei nº 12.682, de 9 de julho de 2012).

Nesse ponto, surgem preocupações de ordem prática em relação aos títulos de crédito cartulares (não emitidos digitalmente), pois alguns de seus efeitos legais são dependentes da materialização no documento em papel – não apenas pelo princípio da cartularidade, mas por imposição da realidade. Cabe questionar a viabilidade prática de esse título (cuja cártula foi eliminada após a digitalização) produzir certos efeitos típicos, como, por exemplo, circular via endosso mediante a mera assinatura no verso seguida da tradição, ou ainda por meio da simples tradição da cártula (inexistente, pois destruída) anteriormente endossada em branco (arts. 13 e 14, “3”, da Lei Uniforme de Genebra e arts. 910, §§ 1º e 2º, e 913 do Código Civil).

Cabe ao futuro regulamento resolver o problema, esclarecendo de que maneira o novo “original” (a via digital) se tornará passível de entrega corporal e transmissão do poder fático independentemente de qualquer manifestação de vontade[12][13].

Esse problema, contudo, não deve alcançar o sistema financeiro nacional, pois o descarte dos originais de documentos digitalizados referente a operações e transações nele realizadas tem regulamentação própria. De maneira cautelosa (ou mesmo realista), esse regramento privilegia as legislações específicas dos direitos e obrigações retratadas nos documentos – o que inclui, por exemplo, aquelas referentes aos títulos de crédito cartulares. A Lei da Liberdade Econômica, ao incluir o § 6º no art. 2º-A da Lei nº 12.682, de 2012[14], reafirmou a competência do Conselho Monetário Nacional (prevista desde 2015, quando se incluiu o § 2º no art. 23 da Lei nº 12.865, de 2013) para regular o tema no âmbito do referido sistema. Reforçou-se, assim, o fundamento de validade da Resolução do Conselho Monetário Nacional nº 4.474, de 31 de março de 2016, que, ao disciplinar a eliminação da matriz física, condicionou-a à compatibilidade com as legislações especiais, inclusive no que tange às consequências para a tutela dos direitos e interesses correspondentes (art. 10, §§ 1º e 2º, da Resolução[15]).

As questões abordadas neste texto merecem maior reflexão e aprofundamento, assim como outros pontos da nova lei que são caros ao setor financeiro – por exemplo, os desdobramentos processuais do direito à eliminação dos documentos digitais após o decurso dos prazos de decadência ou de prescrição (novo art. 2º-A, § 3º, da Lei nº 12.682, de 2012, introduzido pelo art. 10 da Lei da Liberdade Econômica) e a nova disciplina do registro mercantil de atos societários que dependem de autorização governamental (arts. 14 e 19, VI, “b”, da nova lei, que alteraram o parágrafo único do art. 35 da Lei nº 8.934, de 18 de novembro de 1994, e revogaram seu inciso VIII). No primeiro caso, a pertinência se revela diante da rotineira atuação de instituições financeiras em cobranças judiciais. No segundo, é útil examinar eventual impacto da nova lei diante das disposições de lei complementar que atribuem ao Conselho Monetário Nacional a competência para regular a própria constituição das instituições financeiras e condicionam seu funcionamento a autorização prévia do Banco Central do Brasil (arts. 4º, VIII, e 18 da Lei nº 4.595, de 1964).

Portanto, como evidenciam os exemplos acima, a compreensão e os efeitos práticos da Lei da Liberdade Econômica constituem importantes desafios para os aplicadores, que devem estar atentos às peculiaridades dos diversos setores da atividade econômica.

Os entendimentos manifestados no texto não refletem necessariamente aqueles das instituições de que o autor faz ou fez parte.


[1] Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019, resultante da conversão da Medida Provisória nº 881, de 30 de abril de 2019.

[2] Por exemplo: Bolsonaro sanciona MP que flexibiliza regras trabalhistas, Consultor Jurídico, 20 set. 2019, disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-set-20/bolsonaro-sanciona-mp-flexibiliza-regras-trabalhistas>, acesso em 27 set. 2019.

[3] As disposições dos arts. 15 e 19, V, que alteram e revogam diversos dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943), não existiam na medida provisória de origem.

[4] Sustentam a existência dessa hierarquia Maria Helena Diniz (Curso de direito civil brasileiro, volume 1: teoria geral do direito civil. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 39) e Uadi Lammêgo Bulos (Curso de direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 1199), que esclarece, contudo, tratar-se de superioridade “no sentido de que cada degrau normativo incide em campos reservados de competência.”.

[5] José Afonso da Silva afasta a ideia de hierarquia entre as duas citadas espécies legislativas, afirmando tratar-se de “reserva legal qualificada” e explicando que a “lei ordinária que ofenda uma lei complementar estará vulnerando a própria Constituição, visto que disciplinará interesses que esta determina sejam regulados por ela” (Comentário contextual à Constituição. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 470-471).

[6] José Afonso da Silva, obra citada, p. 768-769.

[7] Sobre a abrangência do sistema financeiro nacional após a simplificação do texto do art. 192 pela Emenda Constitucional nº 40, de 29 de maio de 2003, ver Leonardo Vizeu Figueiredo (O Sistema Financeiro Nacional na República Federativa do Brasil e a Atualização Monetária. Revista da AGU. Ano VII. Número 18, out./dez. 2008, p. 95-136. Disponível em: <https://seer.agu.gov.br/index.php/AGU/article/view/313/196>. Acesso em 27 set. 2019, p. 100), Luciane Moessa de Souza (Sistema de ordenação das finanças. In: CLÈVE, Clèmerson Merlin; PEREIRA, Ana Lucia Pretto (coords.). Direito constitucional brasileiro: volume III: constituições econômica e social. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 187-223; p. 203) e Uadi Lammêgo Bulos (obra citada, p. 1549-1550).

[8] Ver Infraestruturas do mercado financeiro, no sítio do Banco Central do Brasil na internet. Disponível em: <https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/infraestruturamercado>. Acesso em 27 set. 2019.

[9] “As Instituições de Pagamento não compõem o SFN, mas são reguladas e fiscalizadas pelo BCB, conforme diretrizes estabelecidas pelo CMN” (Sistema Financeiro Nacional, no sítio do Banco Central do Brasil na internet. Disponível em: <https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/sfn>. Acesso em 27 set. 2019).

[10] Embora a ementa da lei sugira que se trataria de norma trabalhista, o comando do art. 1º é expressamente direcionado ao funcionamento dos estabelecimentos, e o art. 2º rege aspecto relevante da atividade-fim do setor bancário (vencimento de obrigações). Desse modo, considerado o conteúdo com efetivo caráter normativo, a mencionada lei rege, na verdade, a própria atividade econômica.

[11] A tradição situa-se na classe dos “atos-fatos jurídicos” e, nas palavras de Pontes de Miranda, consiste na “entrega corporal da coisa”, sem necessidade de manifestação de vontade, “quer da parte de quem transmite, quer da parte de quem obtém o poder fáctico”. (Tratado de direito privado: parte geral. Tomo II. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1974, p. 372-376, §§ 209-212).

[12] Reitere-se que a análise diz respeito à digitalização de documentos originalmente físicos, em papel, o que torna irrelevante a disciplina dos títulos de crédito que já são emitidos digitalmente, nos termos do art. 889, § 3º, do Código Civil.

[13] “§ 6º Ato do Conselho Monetário Nacional disporá sobre o cumprimento do disposto no § 1º deste artigo, relativamente aos documentos referentes a operações e transações realizadas no sistema financeiro nacional.”

[14] “Art. 10. As instituições referidas no art. 1º podem descartar o documento origem após a sua digitalização. § 1º O descarte de que trata o caput deve ser compatível com as disposições da legislação específica aplicável aos direitos e às obrigações consignados no documento origem. § 2º Previamente ao descarte de que trata o caput, as instituições mencionadas no art. 1º devem averiguar se a eliminação do documento origem poderá, direta ou indiretamente, impedir, prejudicar, dificultar ou mitigar, por qualquer forma, a tutela judicial ou extrajudicial dos direitos e dos interesses que decorram, direta ou indiretamente, do documento origem, inclusive no que diz respeito à produção de provas. […]”

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