Opinião

Irretroatividade das novas orientações dadas pelos tribunais superiores

Autor

  • David Metzker

    é sócio do escritório Metzker Advocacia advogado criminalista professor e palestrante pós-graduado em Direito Penal e Criminologia pela PUC-RS e MBA em Gestão Empreendedorismo e Marketing pela mesma instituição diretor cultural e acadêmico da Abracrim-ES.

16 de outubro de 2019, 6h56

A Constituição Federal, em seu artigo 5º, XXXVI, formaliza o princípio da segurança jurídica. Este princípio está relacionado a confiança que um cidadão coloca no ordenamento jurídico que está à mercê de sofrer alterações em razão da interpretação jurídica dada pelos tribunais superiores.

O cidadão, ao realizar qualquer situação que possa ter efeito jurídico, o faz na garantia dada aos atos até então vigentes. O legislador constituinte trouxe à segurança jurídica status de direito e garantia fundamental ao prescrever que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.

A lei aqui mencionada não é somente aquela que demanda um processo legislativo, mas sim todo ato com efeito normativo, que traz uma imposição aos operadores do direito. Podemos entender, igualmente como lei, as orientações dadas pelos tribunais superiores que possuem eficácia obrigatória, conforme previsto no informativo 896 do STF, a qual o relator do HC 152.752/PR afirmou em seu voto que “é forçoso registrar que o CPC/2015 consolidou cenário processual caracterizado por ferramentas de gestão de litigiosidade voltadas a conferir eficácia obrigatória a determinados precedentes, valendo registrar o que disposto no art. 988, § 5º, II”.

As orientações lançadas como teses abstratas a serem aplicadas ao caso concreto, traz em seu bojo normatividade, uma obrigação de cumprimento. O próprio Relator, no HC acima mencionado, assevera que o tribunal deve seguir a nova jurisprudência, e, ao fazer isso, o tribunal “limitou-se a proferir decisão compatível com a jurisprudência da Suprema Corte, a qual deve manter-se íntegra, estável e coerente, por expressa imposição legal (CPC, art. 926)”.

As orientações em plenários, cuja tese de direito tenha sido a ratio decidendi de acórdão emanado do plenário, possui força vinculante aos órgãos judiciais inferiores, cuja atividade do tribunal tem função legislativa.

Ao trazer nova orientação no HC 126.292/SP, o STF o fez para que os tribunais inferiores seguissem a tese ali encampada. A força trazida no CPC às jurisprudências dos tribunais superiores, obriga ao próprio tribunal (plano horizontal) e vincula aos juízes e tribunais inferiores (plano vertical), demonstrando a força normativa.

Elpidio Donizetti[1], em sua obra, nos traz a seguinte lição:

“Por fim, o inciso V torna obrigatória a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais os juízes e tribunais estiverem vinculados. Assim, a decisão do Plenário do STF vinculará todos os juízes e tribunais, sem exceção; a decisão do Plenário do STJ e do Órgão Especial, em matéria de legislação federal, terá que ser observada pelo próprio STJ, pelos Tribunais Regionais Federais, pelos Tribunais de Justiça dos Estados e pelos juízes a eles vinculados; as decisões do Plenário ou Órgão Especial dos Tribunais Regionais Federais vincularão os seus próprios membros e os juízes federais; e as decisões do Plenário e do Órgão Especial dos Tribunais Estaduais serão obrigatoriamente observadas pelos seus membros e pelos juízes estaduais. A fim de que não pairem dúvidas, é bom que se repita a expressão contida no caput do dispositivo: “os juízes e tribunais observarão”. Não se trata de faculdade, e sim de imperatividade.”

Esse é o entendimento que prevaleceu no HC 152.752/PR do STF. Com a obrigatoriedade em observar as orientações dadas no plenário dos tribunais superiores, há que se falar na força vinculante das orientações, devendo ser vista como uma atividade atípica do Judiciário.

Ainda no CPC, no artigo 927, §3º, há uma proteção aos jurisdicionados para que as novas orientações não os venham pegar de surpresa. Poderá ocorrer modulação dos efeitos da alteração a fim de tornar eficaz a segurança jurídica.

O professor Humberto Theodoro Junior[2], nos ensina em sua obra, que:

“A modulação é necessária, e não apenas facultativa, nos casos de alteração de jurisprudência estabelecedora de precedente vinculante, como, v.g., o gerado por recursos especial e extraordinário repetitivos. É que, na espécie, o precedente assume força normativa, e assim, não pode a sua supressão ou modificação prejudicar os casos acontecidos sob a regência da tese ulteriormente desconstituída. Assim como a inovação legislativa não pode ter eficácia retroativa, também não pode tê-la a alteração da jurisprudência vinculante. É por isso que, in casu, se impõe a modulação com o fito de evitar surpresa e prejuízo para aqueles que realizaram negócios e ajuizaram demandas confiados no direito jurisprudencial consolidado. Trata-se de uma exigência de segurança jurídica que leva a alteração da jurisprudência vinculante a ter eficácia ex nunc e não ex tunc. A modulação necessária aqui se impõe como autêntica norma de direito transitório ou intertemporal.”

Por essa lição, verifica-se que o §3º do artigo 927, teve a intenção de mostrar que a alteração jurisprudencial tem efeito de novatio legis. Assim, quando há uma nova orientação dada pelo plenário ou órgão especial dos tribunais superiores, deve ser vista como novatio legis e modulada a alteração para que seja garantido ao jurisdicionado a segurança jurídica do ato praticado.

Visto isso, a orientação dada pelo plenário do STF no HC 126.292/SP, possui força vinculante e deve ser tratada como novatio legis.

Hodiernamente, as teses possuem força de lei, tentando se igualar ao conceito de precedentes adotado no common law. Ocorre que, essa “força de lei” dada às teses feitas pelos tribunais superiores, que nada mais são que enunciados abstratos com força vinculante, tem alterado entendimentos pacificados, cujo cidadão já tinha segurança no entendimento jurisprudencial até então válido. Pode-se enxergar na tese firmada no HC 126.292/SP do STF, que permitiu a execução provisória da pena a partir do esgotamento dos recursos nas instâncias ordinárias.

Neste ponto, temos a discussão se as orientações em plenários valerão para todos. Ao meu entender, o efeito erga omnes somente poderá ser dado nas Ações Direita e Indireta de Constitucionalidade e pelas súmulas vinculantes resultantes de julgamento de RE. Nas decisões de mérito em Recurso Extraordinário, não há que se falar em efeito erga omnes, contudo, não é o que temos visto.

Entende-se que não deveria ter se tornado obrigatório a execução provisória da pena, todavia, no HC 152.752/PR ficou decido pela força obrigatória.

Dito isso, passa a análise da orientação dada no HC 126.292/SP com base no artigo 5º, inciso XL da CFRB.

Quando a Constituição traz que nenhuma lei penal retroagirá, deve-se entender como todo ato com efeito erga omnes, ou força obrigatória, que modifica de qualquer modo norma de natureza material.

Todavia, antes, deve-se entrar no mérito da natureza jurídica dos artigos que tratam da execução provisória da pena, no caso o artigo 283 do CPP, que é o artigo objeto da discussão nas ADC´s 43 e 44, bem como o artigo 5º, LVII da CFRB, que trata da presunção de inocência.

Não é necessário detalhar a natureza jurídica do artigo 5º, LVII da CFRB, pois resta claro a natureza de direito material que o artigo possui, permanecendo somente a dúvida se o entendimento modificado em relação a este artigo deve seguir o princípio da irretroatividade da lei penal.

Dentro do nosso ordenamento jurídico, temos as normas penais e as normas processuais penais. Quando surge uma lei nova no decorrer de um processo penal, necessário se faz analisar a natureza, em razão do direito intertemporal.

Não há dúvida quando se trata de norma de natureza processual, pois conforme prescreve o artigo 2º do CPP, aplica-se imediatamente, independente se é benéfica ou não.

No que se refere à norma penal, temos a previsão do direito fundamental da irretroatividade da lei penal, que no artigo 5º, inciso XL da CFRB, afirma que a lei penal não retroagirá, salvo se for para beneficiar o réu.

Todavia, a discussão que se pretende trazer no presente artigo, pauta-se nas normas híbridas, ou normas heterotópicas, que são aquelas normas que possuem natureza penal e processual ou que, apesar de estarem em determinado diploma, possuem natureza distinta do diploma a qual está inserida[3].

O nobre professor Norberto Avena (AVENA, 02/2014), nos ensina que:

“Assim, há dispositivos que, a despeito de incorporados a leis processuais penais, inserem um conteúdo material, razão pela qual devem retroagir para beneficiar o réu. Em outras situações, estas regras encontram-se incorporadas a leis materiais, mas, em sua natureza, possuem conteúdo processual, devendo reger-se pelo critério tempus regit actum. Infere-se, então, que não é a circunstância do diploma em que se encontra inserida a norma legal que define o critério de sua aplicação no tempo e sim a sua essência.”

Quando estamos diante de uma norma híbrida, como ocorrerá a intertemporalidade?

O STF e o STJ já se pronunciaram quando à esta questão.

[…] A Lei 11.719/08 alterou o artigo 387 do CPP e incluiu, no inciso IV, o dever de o Magistrado, na sentença condenatória, fixar valor mínimo para a indenização dos danos causados pela infração. A novel legislação passou a permitir que a vítima execute a parcela mínima reparatória. No entanto, mesmo com a reforma, é mister que a reparação ex delito obedeça às demais disposições legais e constitucionais, mormente porque, no Juízo Criminal, “a verdade processual é obtida a partir de critérios mais rigorosos” (…). Assim, além da necessidade de o crime ser posterior à vigência da lei, por tratar-se de norma heterotópica, deve haver pedido formal, seja do Ministério Público ou da assistência da acusação. A providência é essencial para viabilização da ampla defesa e do contraditório. (…).

(ARE 677265, Relator(a): Min. ROSA WEBER, julgado em 06/12/2013, publicado em DJe-243 DIVULG 10/12/2013 PUBLIC 11/12/2013)

Informativo Nº: 0509 – Período: 5 de dezembro de 2012 – 6.ª Turma.

DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. NATUREZA DA AÇÃO PENAL. NORMA PROCESSUAL PENAL MATERIAL.

A norma que altera a natureza da ação penal não retroage, salvo para beneficiar o réu. A norma que dispõe sobre a classificação da ação penal influencia decisivamente o jus puniendi, pois interfere nas causas de extinção da punibilidade, como a decadência e a renúncia ao direito de queixa, portanto tem efeito material. Assim, a lei que possui normas de natureza híbrida (penal e processual) não tem pronta aplicabilidade nos moldes do art. 2º do CPP, vigorando a irretroatividade da lei, salvo para beneficiar o réu, conforme dispõem os arts. 5º, XL, da CF e 2º, parágrafo único, do CP. Precedente citado: HC 37.544-RJ, DJ 5/11/2007. HC 182.714-RJ, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 19/11/2012.

Verifica-se, portanto, que quando se trata de norma heterotópica, não seguirá a regra do artigo 2º do CPP e seguirá a regra do artigo 5º, inciso XL da CFRB.

Passa-se a discutir agora se os artigos que tratam das prisões, como o 283 do CPP, é norma de natureza híbrida.

Quando se fala de prisão, a discussão paira no direito à liberdade do cidadão. A prisão atinge a liberdade, e, é sabido que todos têm direito à liberdade, conforme prevê o artigo 5º da CFRB, sendo, assim, um direito fundamental aos cidadãos.

Ademais, importante frisar que quando se trata de prisão antes do trânsito em julgado, estamos tratando diretamente do princípio da presunção de inocência, que é um direito fundamental. Todos têm direito de ser considerado inocente até o trânsito em julgado. Assim, não há dúvida: quando se trata de norma referente a prisão, há uma lesão ao direito fundamental à liberdade e a presunção de inocência.

Tratando-se de um direito dos cidadãos, e, quando há uma norma que visa alterar, modificar ou afetar de alguma forma esse direito, estamos diante de uma norma de natureza material, ainda que inserida em um diploma processual.

Norberto Avena (AVENA, 02/2014), já citado, traz assim em sua obra:

“No que concerne, especificamente, às modificações introduzidas pela Lei 12.403/2011, entendemos que os dispositivos relativos à prisão e liberdade provisória possuem natureza material, a despeito de inseridos em diploma que modifica o Código de Processo Penal, uma vez que dizem respeito à garantia constitucional da liberdade. Trata-se, enfim, de dispositivos heterotópicos.”

Com isso, temos entendido que, quando surge uma lei que reforma, revoga ou modifica de qualquer modo artigo que trata de prisão, tanto provisória quando definitiva, deve seguir a regra insculpida no artigo 5º, XL da CFRB, aplicando somente a fatos posteriores a sua vigência, caso não seja benéfica ao réu.

Com base no todo exposto até o presente momento, infere-se que a nova orientação emanada do HC 126.292/SP do STF atinge norma de natureza hibrida e deve obedecer ao disposto no artigo 5º, inciso XL da CFRB por ter natureza de novatio legis in pejus.

A nova orientação dada pelo plenário é prejudicial ao réu, pois modificou um entendimento até então consolidado no ordenamento e trouxe prejuízo a quem estava em liberdade aguardando julgamento nos tribunais superiores.

A orientação possui efeito erga omnes, portanto, possui força de lei, possui uma normatividade, e, diante dessa normatividade, deve ser modulado os seus efeitos em privilégio ao princípio da irretroatividade.

Essa discussão não tinha então importância, visto a ausência de efeito erga omnes nas orientações. Em razão dessa ausência de força obrigatória, não se discutia a modulação dos efeitos com base na irretroatividade da lei penal.

Hoje, não se pode mais admitir que as orientações dos tribunais superiores sejam mera forma de interpretação da vontade da lei, que já existia, mas que com a orientação dada está sendo reconhecida. As orientações tem sido dada de forma abstrata e aplicada a casos concretos, trazendo em seu bojo preceitos primários, dizendo o que é e o que não é crime, se aplica ou não fiança, se é ou não imprescritível, enfim, as orientações tem sim características de força de lei, devendo, em razão da segurança jurídica, seguir a regra insculpida na Constituição Federal, que proíbe a retroatividade da lei penal, salvo para beneficiar o réu.

Por tudo que aqui foi dito, entende-se que a nova orientação dada pelo STF no HC 126.292/SP e reconhecida a repercussão geral no Agravo (ARE) 964246, aplicando a todos os processos em cursos no Brasil, somente pode ser aplicada a fatos posteriores a data da publicação do julgamento do HC citado, em homenagem ao princípio da segurança jurídica e irretroatividade da lei penal, visto que a alteração foi prejudicial ao réu.

Clique aqui para ler a versão completa.


[1] Donizetti, Elpídio. Curso Didático de Direito Processual Civil / Elpídio Donizetti. – 22. ed. – São Paulo: Atlas, 2019.

[2] Theodoro Júnior, Humberto. Curso de Direito Processual Civil, volume 3 / Humberto Theodoro Júnior. – 52. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019.

[3] Avena, Norberto Cláudio Pâncaro. Processo penal: esquematizado / Norberto Avena. – 6.ª ed. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2014.

Autores

  • é advogado, professor universitário, pós-graduado em Direito Penal e Criminologia pela PUCRS e especialista em Gestão pela mesma instituição. Membro da Comissão da Advocacia Criminal e de Política Penitenciária da OAB-ES.

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