Opinião

Por que a Comissão Parlamentar de Inquérito da "lava toga" não é uma boa ideia

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15 de outubro de 2019, 13h28

“As ideias têm uma cara e um reverso e é difícil averiguar qual é o lado em que está o cunho legítimo”, Gregorio Marañon, no livro Amiel.

A instauração da chamada CPI da Lava Toga, cujo objetivo ainda se desconhece, só por esta demolidora razão já deve ser, a priori, considerada má ideia. Concebida no Senado, que por ter a faculdade de admitir e julgar impeachments de ministros de tribunais superiores, a CPI extrapola a condição de investigação. Teria, assim, como fatos determinados – essenciais a sua própria viabilização –, episódios de omissão e ativismo judicial, mas, nessa seara pantanosa, chafurdam tanto investigados quanto investigadores.

Há muito as CPIs deixaram de ser instrumento de investigação objetiva e imparcial, tornando-se, ao contrário, arenas partidárias e ideológicas em que se opõem, em geral de forma estrepitosa, encenadas para a TV da casa, particularismos que nada têm que ver com o interesse público. Se inquérito vem de inquirir, perguntar, indagar, para, enfim, investigar, é a atitude menos comum no desempenho dos parlamentares que integram as tais comissões. Antes, apresentam argumentos, teses, circunlóquios que, a pretexto de embasar a pergunta, terminam por respondê-la à frente do depoente. Ao final, produzem relatórios vagos que, se apontam ilícitos, são remetidos aos órgãos que de fato têm poder de investigar e punir.

A par dessa deformidade impenitente, fatos determinados objetos da CPI planejada devem ter sua origem investigada no próprio Congresso Nacional. Afinal, é público e notório que o Parlamento é o primeiro a estimular o ativismo judicial, em atos de baixa estima que o descaracterizam como poder republicano independente. Muitas vezes, o Judiciário vai além das sandálias atendendo a recursos de parlamentares insatisfeitos com decisões tomadas nas casas legislativas. Partidos que perdem votações ou deputados e senadores contrariados por decisões da maioria, abandonam seu foro legítimo de atuação e recorrem ao Supremo Tribunal Federal para invalidar no tapetão judicial as derrotas que sofreram no debate parlamentar. O despautério inspirou o ex-ministro do Supremo Francisco Rezek a observar: “Só falta o sujeito atravessar a praça para reclamar que lhe negaram um aparte”.

Nesses embates nada harmônicos entre poderes, cabe ao Congresso cumprir sua função precípua – a de legislar no interesse da sociedade nacional, organizando o funcionamento e até disciplinando os demais poderes de Estado. Acaba de fazer isso com galhardia ao aprovar a Lei de Abuso de Autoridade, que nada mais é que uma lei de segunda instância, ou seja, criada para impor respeito a outras leis recorrentemente violadas pelo Executivo (sobretudo a polícia judiciária), Judiciário e pelo Ministério Público. Pressionado pelos que são alvo da lei, o presidente da República vetou vários dispositivos e, agora, cabe ao Congresso mantê-la, derrubando o ato presidencial.

Poder popular por excelência, o Congresso claudica em sua trajetória, mas também mostra sintonia com a sociedade quando corta excessos, corrige ou arquiva propostas legislativas oriundas do Executivo, do que está dando demonstração ao analisar o “pacote anticrime” enviado pelo Ministério da Justiça. Zelando pela tradição do Direito Penal garantista, recusa tornar lei a patacoada de inspiração americana chamada “plea bargain”, que suprime a etapa essencial do julgamento e dá poder ao Ministério Público para negociar penas e assim assumir a função de juiz dos feitos.

Antes de se ocupar do que considera desvios do Judiciário, espera-se do Congresso o cumprimento efetivo de sua missão constitucional. Falha, por exemplo, ao não preencher as lacunas normativas deixadas pela Constituição de 1988, em numerosos dispositivos que, apesar de assertivos na enunciação, remetem para uma regulamentação “na forma da lei”. Trinta anos depois, nada menos que 119 itens da Carta Magna aguardam regulamentação, inclusive no capítulo Dos Direitos e Garantias Fundamentais.

Se um poder não cumpre seu dever, outro avança no vácuo. Daí o apetite da Justiça de legislar na omissão do Parlamento – como o fez recentemente ao criminalizar a homofobia – até que o Legislativo edite lei sobre o assunto. Nesse caso, o Supremo foi provocado, entre outros, por um partido político, o então PPS, hoje Cidadania. Noutro, ministros do tribunal entenderam que o artigo 283 do Código de Processo Penal não impede o início da execução da pena após condenação em segunda instância e concedeu permissão, quando em rigor a norma penal jamais permite, antes pune, para antecipação da pena, afrontando a Constituição da qual deveria o STF ser o primeiro e último guardião.

A decisão é tão esdrúxula que há ministros que a cumprem e outros que a ignoram – fraturando o tribunal em correntes doutrinárias que o colegiado não consegue unificar. Agora, ao retirar a prisão antecipada do pacote anticrime que está analisando, o Parlamento lavou as mãos e deixou válida a (in)decisão do tribunal, quando poderia aproveitar a oportunidade para reafirmar o princípio constitucional do trânsito em julgado, segundo o qual ninguém pode ser preso até esgotar todos seus recursos de defesa, e para isso existe a derradeira análise dos tribunais superiores.

Tal qual o Executivo e o Legislativo, o Judiciário é poder que sofre o velho mal brasileiro de desvio de finalidade, tantas são as deformidades e absurdos que prosperam em suas entranhas. Se é vão o (unânime) desejo de que se autocorrijam, uma CPI, buliçoso palco de estrelismos e ardis partidários, só agravaria a já manifesta crise da busca de protagonismo entre os poderes. Em suma, não se trata de uma boa ideia.

*Ricardo Toledo Santos Filho

É advogado criminalista e vice-presidente da OAB São Paulo

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