Opinião

Desmonte do Conanda: afronta ao pacto constitucional e à prioridade da criança

Autor

  • Denise Auad

    é doutora pela Faculdade de Direito da USP; professora titular da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo; advogada; membro do Conselho Consultivo do Programa Prioridade Absoluta do Instituto Alana e da Comissão Especial dos Direitos Infantojuvenis da OAB/SP.

15 de outubro de 2019, 6h19

Recentemente, o governo federal editou o Decreto 10.003/19, o qual literalmente significa um punhal no coração da estrutura de existência e funcionamento do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA). Para compreender como são deletérios os efeitos deste decreto, é preciso desmistificar seu teor a partir da compreensão da essência e da atuação do Conanda.

O Conanda foi criado em 1991 pela Lei 8.242, integra o Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente a fim de estruturá-lo e de efetivar os direitos fundamentais do segmento infanto-juvenil. Atua como parte de um trabalho em rede, alicerçado nos princípios da democracia participativa.

É um Conselho Gestor de Políticas Públicas e sua concepção se fundamenta nas diretrizes da Constituição Federal e no desenho institucional estabelecido pela Lei 8.069/90 (ECA), os quais zelam pela garantia do princípio da proteção integral da criança e do adolescente, com prioridade absoluta, paradigma fundante da Convenção dos Direitos da Criança da ONU, de 1989, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto 99.710/90.

Segundo este modelo jurídico-institucional, a elaboração das políticas públicas na área infanto-juvenil não pode ser concebida de forma isolada pelo Poder Executivo, pois necessita da experiência e do diálogo da própria sociedade, os quais permitem oxigenar a burocracia estatal com as reais demandas da comunidade.

Nessa lógica, o Conanda é um colegiado paritário, composto do mesmo número de representantes da sociedade civil organizada e do governo, responsável por desenhar as diretrizes das políticas públicas básicas e emergenciais na área da infância e juventude. Além disso, fiscaliza o orçamento público e um fundo emergencial para que contemplem essas diretrizes e controla os resultados das políticas públicas implementadas.

Vale ressaltar que os Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente, como é o caso do Conanda, existem nos três níveis da federação: União, Estados e Municípios. Cada qual desempenha seu papel institucional para garantir políticas públicas adequadas conforme as regras constitucionais de repartição de competências federativas. Assim, o Conanda, dentro deste desenho institucional, é responsável por estabelecer as diretrizes gerais da política de atendimento à criança e ao adolescente para todo o país, inclusive estabelecendo resoluções normativas para a estrutura deste sistema nacional.

A razão para que a efetivação dos direitos da criança e do adolescente ocorra com base nos princípios da democracia participativa também se justifica para assegurar que os programas de proteção não fiquem reféns, unicamente, da política partidária, condicionada à ideologia dos eleitos e restrita ao período quadrienal do mandato político, que pode ser estendido, no máximo, por uma reeleição subsequente. Os programas na área da infância e juventude são muito mais abrangentes e complexos, como, por exemplo, os relacionados à saúde pública, erradicação do analfabetismo e consolidação da educação básica, os quais, inclusive, têm metas de longo prazo estabelecidas em tratados internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil.

O Conanda é um órgão ativo e responsável por consolidar muitas conquistas. Vale lembrar sua importante atuação para estruturar o Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente, por meio da elaboração de diversas resoluções, dentre as quais se destaca a Res 113/06, específica para esta estruturação, bem como a Res. 162/14, que aprova um plano nacional de enfrentamento da violência Sexual contra crianças de adolescentes e a Res. 163/14, que dispõe sobre a abusividade do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica ao segmento infanto-juvenil.

O Conanda também foi muito ativo para garantir o funcionamento do Fundo Nacional da Infância, o qual permite a aplicação de verbas em projetos emergenciais com mais celeridade que o empenho de verbas orçamentárias. Foi um grande incentivador do protagonismo infanto-juvenil e deu visibilidade para a proteção de crianças negras, indígenas e quilombolas.

A participação da sociedade civil organizada em colegiados gestores de políticas públicas inclusivas é necessária para a manutenção do Estado Democrático de Direito. Muitas ações para diminuir a desigualdade social, no Brasil, não conseguiriam ser implementadas sem a força dessa participação. Calar, portanto, a vozes da sociedade civil nas estruturas institucionais do Estado é, sem dúvida, rasgar o pacto constitucional de 1988 e, de forma sutil e paulatina, plantar a semente de um Estado autoritário no Brasil.

A partir deste panorama, é possível, agora, compreender o quanto é nefasto e inconstitucional o conteúdo do Decreto 10.003/19.

Em primeiro lugar, o Decreto dispõe sobre matéria que não é de sua competência. Estabelece diretrizes que enfraquecem o Conanda, alterando profundamente sua estrutura de funcionamento a ponto de inviabilizá-lo. Segundo a própria Lei 8.242/91, criadora do Conanda, matéria afeta à sua estrutura e funcionamento deve estar prevista em seu Regimento Interno, o qual só pode ser modificado pelo voto de, no mínimo, dois terços de seus membros. Ressalta-se que o comando da Lei 8.242/91não pode ser afrontado por decreto do Poder Executivo.

O Decreto 10.003/19 reduziu de 28 para 18 o número total de membros do Conanda, a qual é uma mudança sutil, mas bastante destrutiva, pois, embora esteja mantida a representação paritária entre membros do governo de da sociedade civil, houve uma sensível diminuição de entidades da sociedade civil com assento no Conselho, o que, por consequência, diminui a diversidade de demandas que devem chegar ao aparato institucional do Estado.

Também modifica o processo de eleições das organizações da sociedade civil, realizado por meio de eleição assemblear conforme regimento interno do Conanda. Tal processo será substituído a regras que ainda serão elaboradas pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, o que torna o processo obscuro e controlado pelo Executivo.

O Presidente da República designará o Presidente do Conselho e este passará a ter um voto de qualidade para o desempate das decisões. Além disso, em caso de ausência ou impedimento do Presidente do Conselho, será substituído por representante da Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Esta é uma tentativa clara de colocar o Conanda em estrita obediência aos ditames e à ideologia do governo, em completa afronta ao princípio constitucional da democracia participativa.

Ressalta-se também, que as reuniões do colegiado, que tinham uma frequência mensal, passaram a ser trimestrais e os representantes da sociedade civil que não residirem no Distrito Federal não terão os gastos do deslocamento custeados, passando a participar das reuniões por videoconferência. As reuniões extraordinárias do Conanda só poderão ser convocadas pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e os grupos de trabalho terão caráter temporário, cuja duração não poderá ser superior a um ano, além de limitados a atuar simultaneamente na quantidade de apenas três.

Um dos pontos mais graves do Decreto 10.003/19 foi estabelecer que todos os membros do Conanda, inclusive os representantes da sociedade civil que foram democraticamente eleitos em assembléia, ficam automaticamente dispensados de sua atuação, ou seja, o Executivo desprezou, de forma impositiva e arbitrária, o resultado de um processo eleitoral legítimo. Dessa forma, tornou o Conanda totalmente inoperante, pois destituiu todos os membros e, portanto, não realizará qualquer atividade até que seja feito o processo de escolha de seus novos representantes por meio de um procedimento ainda inexistente, a ser estabelecido pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, sem prazo estipulado.

O prejuízo que o Decreto causa à sociedade, mas, principalmente, aos direitos fundamentais das crianças e adolescentes brasileiros é gravíssimo e irrecuperável, pois o esvaziamento do Conanda paralisa o funcionamento federativo do Sistema de Garantia de Direitos Infanto-Juvenis, do trabalho em rede, bem como da aplicação das verbas do Fundo Nacional da Infância para projetos emergenciais de maior amplitude.

É, portanto, mais do que urgente, restabelecer o pleno funcionamento do Conanda, inclusive com o deferimento de medidas cautelares por meio do Poder Judiciário, caso necessário. É visível que o Estado Democrático de Direito está sendo minado no Brasil em suas bases institucionais.

A história já demonstrou à humanidade o quanto é nefasto o caminho dos governos autoritários. Urge protegermos o Conanda e, consequentemente, os direitos de proteção integral de nossas crianças e adolescentes, os quais têm prioridade absoluta segundo determinação expressa do art. 227 da Constituição. O caminho para o aprimoramento da sociedade não é calar suas vozes, mas com elas dialogar, para que a construção de nossas políticas públicas contemple verdadeiramente, em sua essência, as demandas de interesse social.

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    é doutora pela Faculdade de Direito da USP; professora titular da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo; advogada; membro do Conselho Consultivo do Programa Prioridade Absoluta do Instituto Alana e da Comissão Especial dos Direitos Infantojuvenis da OAB/SP.

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