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Considerações e jurisprudência sobre a recente lei do distrato

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14 de outubro de 2019, 8h00

1 – Alcance da Lei nº 13.786
A Lei nº 13.786, de 27 de dezembro de 2.018 serviu como um marco legal para os contratos de alienação de imóveis na planta e em loteamento, contendo regras para o inadimplemento desses contratos. O objetivo dessa lei é disciplinar o desfazimento do contrato causado por culpa de uma das partes (resilição unilateral ou resolução por inadimplemento).

Em relações envolvendo compra de imóveis “na planta”, a parte mais fraca é o adquirente, isto é, o consumidor. O Código de Defesa do Consumidor atenua o pacta sunt servanda e a autonomia da vontade em proteção ao consumidor, que é a parte mais vulnerável.

Logo, a Lei nº 13.786/18 tem de ser interpretada no sentido de proteger o adquirente do bem, colocando limites a cláusulas exageradas, porque a livre iniciativa prevista no art. 170 da Constituição Federal só pode ser flexibilizada quando houver algum valor social relevante protegido pela Carta Magna, como o da proteção do consumidor. A referida lei modificou apenas a Lei nº 4.591/64 e a Lei nº 6.766/76 e não o Código de Defesa do Consumidor, que será aplicado, de modo a limitar práticas abusivas para proteção da parte mais vulnerável.

2 – Irretroatividade da Lei nº 13.786/2018
Ora, nos termos do art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. No mesmo sentido, o art. 6º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro – LINDB determina que “a lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”.

Dessa maneira, o ordenamento jurídico nacional rechaça a aplicação retroativa da lei, ainda que seja, quanto às disposições contratuais, em seu grau mínimo, sob pena de ferimento à vontade das partes.

A obrigação contratual é estabelecida mediante equilíbrio entre as prestações que se imputam a seus participantes. A incidência de novos comandos normativos acaba por afetar o arranjo validamente estabelecido (verdadeiro direito pactuado pela autonomia das vontades), que levou em consideração as regras existentes ao tempo da celebração do contrato.

Na relação contratual, é relevante o princípio do pacta sunt servanda, de modo que as condições livremente negociadas e estabelecidas entre os contratantes sejam fielmente observadas.

A respeito do assunto, JOÃO BAPTISTA MACHADO1, citado por Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco leciona:

“O fundamento deste regime específico da sucessão das leis no tempo em matéria de contratos estaria no respeito das vontades individuais expressas nas suas convenções pelos particulares no respeito pelo princípio da autonomia privada, portanto. O contrato parece um acto de previsão em que as partes estabelecem, tendo em conta a lei então vigente, um certo equilíbrio de interesses que será como que a matriz do regime da vida e da economia da relação contratual. A intervenção do legislador que venha modificar este regime querido pelas partes afecta as previsões desta, transforma o equilíbrio por elas arquitetado e afecta, portanto, a segurança jurídica. Além de que as cláusulas contratuais são tão diversificadas, detalhadas e originais que o legislador nunca as poderia prever a todas. Por isso mesmo não falta quem entenda que uma lei nova não pode ser imediatamente aplicável às situações contratuais em curso quando do seu início de vigência sem violação do princípio da não retroactividade”.

Outrossim, acerca da vedação à irretroatividade da lei, o entendimento do Supremo Tribunal Federal:

“Compromiso de compra e venda. Rescisão. Alegação de ofensa ao artigo 5º, XXXVI, da Constituição – Sendo constitucional o princípio de que a lei não pode prejudicar o ato jurídico perfeito, ele se aplica também às leis de ordem pública. De outra parte, se a cláusula relativa a rescisão com a perda de todas as quantias já pagas constava do contrato celebrado anteriormente ao Código de Defesa do Consumidor, ainda quando a rescisão tenha ocorrido após a entrada em vigor deste, a aplicação dele para se declarer nula a rescisão feita de acordo com aquela cláusula fere, sem dúvida alguma, o ato jurídico perfeito, porquanto a modificação do efeitos futuros de ato jurídico perfeito caracteriza a hipótese de retroatividade minima que também é alcançada pelo disposto no artigo 5º, XXXVI, da Carta Magna. Recurso extraordinário conhecido e provido”2.

Necessário pontuar, ainda, que a Lei nº 13.786/1208 é claramente mais gravosa para o adquirente de imóvel, constituindo fato novo com repercussões prejudiciais ao consumidor e relevante impacto nas relações contratuais do sistema consumerista.

Logo, inviável admitir a aplicação retroativa das disposições trazidas pela Lei nº 13.786/2018, eis que acarretaria intolerável violação aos princípios do equilíbrio contratual, da informação e da segurança jurídica, valores esses essenciais e inafastáveis em se tratando de relação travada com regência no Código de Defesa do Consumidor, cujas normas são de ordem pública e interesse social (artigo 1º, CDC).

Importante assinalar, ademais, que o novel artigo 67-A da Lei nº 4.791/64, que dispõe sobre as consequências da rescisão do contrato de compra e venda de imóvel mediante distrato ou resolução pelo adquirente, somente poderá ser aplicado quando e se previstas tais consequências em Quadro-Resumo no contrato. Além disso, as penalidades deverão vir destacadas e negritadas no documento. Nesse sentido, é o teor expresso do artigo 35-A:

“Art. 35-A. Os contratos de compra e venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de unidades autônomas integrantes de incorporação imobiliária serão iniciados por quadro-resumo, que deverá conter:

(…)

VI – as consequências do desfazimento do contrato, seja por meio de distrato, seja por meio de resolução contratual motivada por inadimplemento de obrigação do adquirente ou do incorporador, com destaque negritado para as penalidades aplicáveis e para os prazos para devolução de valores ao adquirente; (grifado)

Portanto, é incabível a aplicação da Lei nº 13.786/2018 nessa situações, seja por afrontar o ato jurídico perfeito, seja pela ausência de previsão das consequências gravosas do artigo 67-A na relação estabelecida entre a construtora/incorporadora e os adquirentes lesados. Logo, é inquestionável que as repercussões contratuais do artigo 67-A são parâmetros que podem ser observados apenas para novos contratos de venda e compra de imóvel, que deverão trazer o conteúdo de forma clara e destacada em Quadro Resumo no início do ajuste entabulado.

Este, aliás, é o entendimento recente e que tem se consolidado no Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

“COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA. DESISTÊNCIA DO NEGÓCIO. RECURSO DA RÉ PARA RETENÇÃO DAS ARRAS E RETENÇÃO POR FRUIÇÃO DO LOTE. Impossibilidade. O adiantamento realizado consistiu arras confirmatórias e não meramente penitenciais, cabendo a devolução ao comprador. Lote de terreno sem comprovação de edificação. Inaplicabilidade da Lei nº 13.786/2018, pois vedada sua retroatividade para produzir efeitos sobre o pactuado pelas partes em data anterior à sua vigência. Correta a sentença ao determinar devolução em parcela única. Aplicação da Súmula 2 deste Egrégio Tribunal de Justiça. Decisão mantida. Recurso Desprovido.”3 (grifado)

“Embargos de declaração. Compromisso de venda e compra. Dissolução do contrato por iniciativa da adquirente. Alegação de omissão quanto à aplicação da Lei 13.786/2018. Vício inexistente. Ademais da inovação acerca do tema, a nova lei não se entende aplicar a contratos antes dela pactuados. Disposições que dizem respeito a efeitos materiais e consistentes no regime jurídico da resolução. Embargos rejeitados.”4 (grifado)

“EMBARGOS DE DECLARAÇÃO – Inexistência dos pressupostos autorizadores do acolhimento – Ausência de omissão no julgado – Pedido de aplicação da Lei nº 13.786/2018 ao caso – Descabimento – Impossibilidade de se surpreender o adquirente com consequências que não contratou – Manutenção da retenção fixada no acórdão embargado, segundo a legislação aplicável, especialmente o CDC, e a jurisprudência dominante sobre o tema – Inaplicabilidade da cláusula contratual de retenção de valores para a hipótese de rescisão do contrato– Termo inicial da correção monetária bem analisado à luz da legislação aplicável – RECURSO REJEITADO, ADMITIDO O PREQUESTIONAMENTO.”5 (grifado)

Do mesmo modo, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça entendeu pela inaplicabilidade da Lei do Distrato (Lei n º 13.786/2018) aos contratos firmados antes de sua vigência ao julgar os Temas 970 e 971 submetidos à sistemática dos recursos repetitivos.

Inequívoco, outrossim, a existência de abusividade em cláusulas contidas no contrato de adesão de compra e venda de imóvel anteriores à promulgação da Lei do Distrato.

Com efeito, a incidência da retenção contratualmente prevista implica em perda exagerada das quantias pagas pelos adquirentes, revela-se abusiva, nos termos do artigo 51, inciso IV, do Código de Defesa do Consumidor

Além disso, a jurisprudência também se consolidou no sentido de ser abusiva, por onerar demasiadamente o consumidor, a cláusula que fixa a multa pelo descumprimento do contrato com base no valor do imóvel, e não no valor das prestações efetivamente pagas.

A propósito, a Súmula 2 deste Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo prevê que: “A devolução das quantias pagas em contrato de compromisso de compra e venda de imóvel deve ser feita de uma só vez, não se sujeitando à forma de parcelamento prevista para a aquisição”.

Há, de fato, verdadeiro enriquecimento ilícito da construtora/incorporadora com a aplicação de cláusula que obriga o consumidor a receber os valores pagos da mesma forma parcelada em que vinha quitando o contrato, considerando que aquela poderá revender imediatamente o imóvel.

Nesse sentido, é o enunciado da Súmula 543, do STJ: Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador – integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento.

Bibliografia:

MACHADO, JOÃO BAPTISTA – Curso de Direito Constitucional. 10ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2015.


1 Curso de Direito Constitucional. 10ª edição. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 381.

2 STF, RE 205999, Relator: Min. MOREIRA ALVES, Primeira Turma, j. em 16/11/1999, DJ 03/03/2000.

3 TJSP, Apelação nº 1131899-71.2018.8.26.0100, Rel. Des. Coelho Mendes, 10ª Câmara de Direito Privado, j. 10.09.2019, DJe 11.09.2019.

4 TJSP, Apelação nº 1010144-17.2017.8.26.0100, Rel. Des. Claudio Godoy, 1ª Câmara de Direito Privado, j. 21.02.2019, DJe 21.02.2019.

5 TJSP, Apelação nº 1043923-26.2018.8.26.0100, Rel. Des. Miguel Brandi, 7ª Câmara de Direito Privado, j. 15.05.2019, DJe 15.05.2019.

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