Opinião

Iter criminis parece ser a próxima vítima do dogmaticídio jurisprudencial

Autor

  • Israel Domingos Jorio

    é autor do livro "Crimes Sexuais" (3ª ed. Editora Jus Podivm) doutor e mestre em direitos e garantias fundamentais professor de Direito Penal da Faculdade de Direito de Vitória (FDV) do Complexo de Ensino Renato Saraiva (Cers) da Escola da Magistratura do Espírito Santo e da Escola do Ministério Público do Espírito Santo e advogado criminalista.

14 de outubro de 2019, 6h50

Primeiro, o STF usou uma técnica de interpretação absolutamente desconhecida para ler "segunda instância" onde está escrito "trânsito em julgado". Tempos depois, ao empregar analogia in malam partem, leu "homofobia" onde está escrito "preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional", violando crassamente a pedra fundamental de qualquer Estado de Direito (princípio da legalidade penal), o que faz nossa ordem jurídica retroceder a um período pré-iluminista.1 Agora, tudo indica como próxima vítima potencial do “dogmaticídio” jurisprudencial o iter criminis.

O iter criminis é um elemento de dogmática penal desenvolvido para permitir uma estruturação didática das fases pelas quais pode passar um crime. Sua principal função é permitir a identificação, em alguns tipos de infrações2, das etapas de realização que os compõem, o que contribui para a uma análise mais segura sobre se o sujeito ativo ingressou, ou não, na área punível do agir humano.

Majoritariamente, entende-se dividido o iter criminis nas fases de cogitação, preparação, execução e consumação3. Vamos exemplificar todas as etapas com base no crime de homicídio doloso.

A cogitação se dá inteiramente no plano mental. Ali se formam a ideia do crime, o planejamento, a seleção dos meios de ação e a antecipação dos resultados e efeitos colaterais possíveis. O agente mentaliza a morte da vítima e os meios de que pode se servir para causá-la (tiros, facadas, venenos, asfixia). A cogitação sabidamente não é punida. Além da antiga e difundida formulação de Ulpianus, (“cogitationis poenam nemo patitur”), veja-se que nem no Direito Penal nazista se punia a mera intenção.4

Na preparação, o sujeito passa reunir as condições materiais para realizar o delito (adquire armas, munições, treina tiros ao alvo, afia lâminas, compra ou fabrica veneno, inocula-o em alimentos que podem vir a ser ofertados à vítima). Em regra, a preparação não é punível, mas há exceções específicas – e questionáveis.5

A fase da execução é aquela em que o sujeito efetivamente comete o crime. Tradicionalmente marca, portanto, o início da área punível do delito. É claro que o "início da execução", por tratar-se da fronteira entre o punível e o impunível, é objeto de profundas divergências. Tanto que se diz que há, entre a preparação e a execução, uma "zona de penumbra" (ou "zona cinzenta"), em que é difícil precisar se o agente está ainda no campo da preparação ou se já ingressou na área da execução. Exatamente por isso, há várias teorias que se ocupam da delimitação do início da execução. Voltaremos a isso daqui a pouco.

A última fase do iter criminis é a consumação, que se dá quando o resultado da ação definida pelo tipo penal se produz, aperfeiçoando uma conduta que reúne todos os elementos da descrição legal do crime. Quando um agente inicia a execução, mas não chega a reunir em sua conduta todos os elementos do tipo, responde pela forma tentada (nos delitos que admitem esse tipo de punição6). No homicídio, a consumação se dá com a morte da vítima.

Pois bem, ao "x" da questão: quais são os critérios possíveis para separar a preparação da execução? São muitos! Objetivo-formal, objetivo-material, objetivo-subjetivo… Nenhum deles é perfeito. Há muitas teorias, mas, felizmente, no caso brasileiro, algumas normas limitam as chances de escolha do intérprete. Por força do princípio da legalidade penal, não há como fugir da exigência de que se realize(m) algum(ns) dos elementos do tipo penal. Assim, execução pressupõe ingresso no tipo. Trata-se de critério formal, imposto, também, pelo art. 14, II, que define a tentativa em nosso CP. Mas não basta. Temos uma norma no art. 17 que é igualmente importante: considera-se impossível o crime quando, por absoluta ineficácia do meio ou absoluta impropriedade do objeto, for impossível alcançar a consumação. Significa que o método escolhido pelo agente é absolutamente inócuo, ou que o objeto que ele quer atingir não comporta a lesão pretendida (usar arma de brinquedo ou munição de festim para matar, ou tentar matar um cadáver, respectivamente). Não importa, para a lei, o quanto o agente esteja mal-intencionado ou o quanto ele seja perigoso. Para ser típica, sua conduta tem que ser idônea para produzir o resultado. No crime impossível, esse é o critério objetivo, que se identifica com o potencial da conduta de expor um bem jurídico a um dano. Assim, os requisitos são cumulativos: deve-se realizar um elemento do tipo e deve haver idoneidade para causar a morte. Por isso, no Brasil, falamos de um critério formal-objetivo7, apontado por Zaffaroni8 como a tese que “mayores garantías oferece en cuanto a su respecto por el princpio de lesividade y a su coincidencia con el derecho penal liberal, además de ser la más clara”.

No homicídio, deve-se começar a matar alguém, mas não alcançar o resultado típico "morte" (que, se se verificar, é porque o crime está consumado). Com base nisso, como se começa a matar alguém? Com a realização de um ato voltado a causar a morte, e que seja objetivamente idôneo para tanto. Dando um tiro, desferindo uma facada, entregando um alimento envenenado, empregando asfixia, mas de maneira incompetente, imperfeita, que não foi suficiente para matar (mas poderia ter sido, se bem executada a conduta). O agente errou o tiro; a facada não atingiu órgão vital; o veneno não foi potente o bastante. Tudo o que estava ao alcance do agente, ele realizou, não se consumando a infração “por circunstâncias alheias à sua vontade” (art. 14, II, CP).

Não entra na execução alguém que empunha uma arma de fogo, ainda que esteja muito resoluto em relação ao plano de matar; ainda que a encoste na testa da vítima potencial; ainda que a engatilhe e, tudo o que ficar faltando for o emprego da força de “meio Newton” para puxar o gatilho. Quem assim age, não ingressa nos elementos do tipo. Não realiza o “matar”. Não pratica ato idôneo para causar o resultado típico “morte”. Não deixa, enfim, de alcançar o resultado por circunstâncias alheias à sua vontade, mas, justamente, não persegue a produção desse resultado por uma decisão livre, inteiramente pertencente à sua vontade. Poderia ter acionado o gatilho, mas não o fez. Não há que se falar em homicídio, em tais circunstâncias, nem mesmo na forma tentada.9 O fato é atípico e absolutamente irrelevante para o Direito Penal.10

A hermenêutica, embora não devesse, tende a se alterar em função dos sujeitos da infração. Tradicionalmente, isso se dá referentemente ao sujeito ativo vulnerável (seletividade penal em sua forma mais característica). Vemos, no entanto, que o mesmo raciocínio anti-isonômico pode ocorrer a depender de quem ocupe o posto de sujeito passivo. Já vimos, há pouco tempo, um caso em que um homem foi condenado a 20 anos de reclusão por ter jogado combustível em uma juíza, durante uma audiência, enquanto a ameaçava com um isqueiro. O fato se passou em São Paulo, em 2016, e foi filmado. Ali se vê um homem que obrigou uma juíza a declarar sua inocência em um vídeo que seria enviado à filha do coator. Foi condenado por homicídio tentado. Uma tipificação absurda, com uma pena absurda.11 De fato, a juíza foi ensopada por combustível. De fato, ele tinha um isqueiro que funcionava. E de fato, se ele o houvesse acionado, talvez tivesse incendiado a juíza, levando-a à morte. Mas nada disso aconteceu. Ele não acionou o isqueiro, colocando-se na mesma posição do nosso agente hipotético que engatilha uma arma e a encosta na testa da vítima, mas não chega a puxar o gatilho. Se ia fazê-lo, mas não o fez porque foi impedido, não importa: tecnicamente, não ingressou na execução, de modo que não pode responder pelo homicídio tentado. Nem o portador do revólver, nem o do isqueiro, deram o último passo, que é o que os levariam a ingressar no território da execução. Permaneceram, por resolução própria ou por razões alheias à sua vontade, na esfera da preparação. Somente podem responder por atos até então praticados (crimes residuais, como, hipoteticamente, porte ilegal de arma, ameaça, constrangimento ilegal, coação no curso do processo etc.).

Mas afinal, por que toda essa discussão sobre o iter criminis, e por que trazer esse caso do isqueiro de volta à tona? Em breve, veremos que fim levará um homem que, com uma arma de fogo em punho, mas escondida, aproximou-se de seu desafeto e, no último instante, deixou de acioná-la. Será sua conduta esquecida, como o irrelevante penal que é, ou será alvo de persecução penal, deformada a ponto de expressar um início de execução de homicídio? Considerando que a suposta vítima é, também, um magistrado, com o singelo detalhe de integrar nossa Corte Suprema, desconfiamos que vá se repetir o destino do homem do isqueiro. O Ministro está vivo. A juíza, também. Mas a dogmática penal, torturada e vilipendiada pela jurisprudência em nosso país, talvez não resista a mais essa agressão.


1 Definitivamente, não se discute a justiça ou a correção material da decisão do STF, que suprime uma lacuna lamentavelmente deixada pelo legislador. O preconceito em razão da orientação ou da identidade sexual certamente comporta criminalização, posto que atenta contra os mesmos valores humanitários e igualitários que legitimam a criminalização do racismo. A forma segundo a qual isso se deu, no entanto, é absolutamente absurda e inadmissível. Embora a decisão seja “simpática” (ou politicamente correta), não compete ao Poder Judiciário a criminalização de condutas, e o princípio da legalidade só tem valor se for absoluto. À primeira exceção, desfaz-se sua segurança, podendo a legislação ser amplamente “complementada” por outras decisões “bem-intencionadas”.

2 Normalmente não se esclarece, nos manuais, que o iter criminis não tem aplicabilidade a todos os tipos de delito. Tecnicamente falando, sua utilidade se restringe aos delitos comissivos dolosos (pois a preparação não está presente nos crimes omissivos, nem nos culposos, que também não admitem a cogitação, já que são frutos de descuido). Ainda assim, há delitos comissivos dolosos que são de ímpeto (cometidos no calor da emoção), de modo que não passam pela cogitação ou preparação.

3 Uma porção minoritária da doutrina considera o exaurimento como quinta etapa do iter criminis. Como a existência do crime, em sua modalidade aperfeiçoada, não depende do exaurimento, este é enxergado pela maioria como um dado externo à infração, posterior à sua consumação, capaz, no máximo, de interferir na sua reprovabilidade e de repercutir na dosagem da pena.

4 CEREZO MIR, José. Tratado de Derecho Penal: Parte General. São Paulo: RT, 2007, p. 1042.

5 O art. 5º da Lei 13.260/16 expressamente determina a punição de atos preparatórios de atentados terroristas. Além disso, embora tecnicamente sejam vistos como crimes autônomos, delitos como o porte ilegal de arma de fogo (arts. 14 e 16, Lei 10.826/03) e de petrechos de falsificação (art. 291, CP) são, na verdade, etapas preparatórias de crimes mais graves que foram isoladas e criminalizadas como infrações de perigo abstrato (técnica que se denomina “antecipação da tutela penal”).

6 Não admitem a tentativa os crimes culposos (não há espaço para a estéril discussão sobre a artificial figura da “culpa imprópria”), preterdolosos, unissubsistentes, omissivos próprios, habituais e de atentado, além das contravenções penais.

7 Reconhecendo que a teoria usada pelo Brasil é a objetivo-formal, mas apontando suas deficiências e admitindo possibilidades de complementação, BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. 23.ed.rev.atual.ampl. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 544-545, v. 1; JESUS, Damásio E. de. Direito Penal: Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 1999, p.329, v. 1.

8 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho Penal: Parte General. 2.ed. Buenos Aires: Ediar, 2002, p. 812.

9 Suponhamos, ainda, que esse agente, que estava com o revólver engatilhado e apontado para a vítima, prestes a dispará-lo, tenha deixado de assim proceder porque foi surpreendido por policial que, também armado, deu-lhe o comando de largar tudo e deitar-se ao chão. Não há, do mesmo modo, tentativa. Aqui, o agente foi impedido de entrar na própria execução, e o que a punição da tentativa exige é que o agente ingresse na execução, mas não alcance a consumação por razões alheias à sua vontade. Pela mesma razão, não se aplicam, também, os institutos da desistência voluntária e do arrependimento eficaz (ambos previstos no art. 15, CP). Nos dois casos, é imprescindível que o agente ingresse nos atos de execução.

10 Aqui entra a antecipação da tutela penal, pouco acima comentada: como fruto de uma mentalidade punitivista, a técnica da antecipação da tutela penal serviria, nesse caso para não deixar impune o autor da conduta, que seria castigado por infrações residuais como o porte ilegal de arma de fogo, ameaça etc..

11 Embora ele tenha sido condenado pelo Conselho de Sentença, competia ao Ministério Público, em um momento, realizar o juízo adequado de tipicidade e não denunciá-lo por homicídio tentado. Depois, a bola passou para o Judiciário, que não deveria tê-lo pronunciado por homicídio tentado. O Conselho de Sentença entra aos 47 do segundo tempo para fazer um gol “de barriga”: condenar, sem qualquer técnica, atendendo aos apelos punitivistas do promotor e ao costumeiro excesso de linguagem do juiz, na pronúncia. E a pena dada, de 20 anos de reclusão, raramente é imposta a autores de homicídio consumado, o que indicia o animus de infligir uma punição exemplar.

Autores

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    Doutor e mestre em Direitos e Garantias Fundamentais (FDV-ES). Professor de Direito Penal da FDV (graduação e especialização), da Escola da Magistratura do ES, da Escola do Ministério Público do ES e do Complexo de Ensino Renato Saraiva (CERS). Advogado criminalista.

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