Segunda Leitura

Juscelino Kubitschek conseguiria hoje mudar a capital para Brasília?

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

13 de outubro de 2019, 10h25

Spacca
Presidente do Brasil de 1956 a 1961, Juscelino Kubitschek de Oliveira deu ênfase ao desenvolvimento e à integração nacional, cumprindo a promessa de sua campanha de fazer “50 anos em 5”.

Entre as suas múltiplas iniciativas, destaca-se a criação de Brasília. Não foi dele a ideia, pois José Bonifácio de Andrada e Silva já a proclamava em 1823 e a Constituição de 1891, no art. 3º, previu que: “ Fica pertencendo à União, no planalto central da República, uma zona de 14.400 quilômetros quadrados, que será oportunamente demarcada para nela estabelecer-se a futura Capital federal”.

Mas foi dele a execução, superando, com um permanente sorriso nos lábios, todos os obstáculos que lhe foram postos e inaugurando, no dia 21 de abril de 1960, a nova capital. Brasília é, hoje, uma cidade totalmente consolidada, que propicia elevada qualidade de vida aos seus habitantes.

Pois bem, imaginemos a hipótese de JK (assim era ele conhecido) vir a este mundo com um atraso de 60 anos, que fosse o atual Presidente da República Federativa do Brasil, no Rio de Janeiro, e anunciasse solenemente, na mídia e nas redes sociais, sua intenção de mudar a capital para o planalto central em 21 de abril de 2020.

Conseguiria JK concretizar o seu sonho? Seu determinismo, carisma e liderança seriam suficientes para superar os desafios?

Supondo que a notícia fosse postada na noite de um domingo, em menos de 10 minutos estaria ecoando por todo o território nacional. Famílias, grupos de amigos, redes de whats app estariam trocando mensagens polêmicas, a favor e contra. Ainda à noite, dirigentes de órgãos de grande relevância na República estariam convocando para reuniões urgentes, às 8:00 horas da manhã.

Todos os órgãos de controle previstos na Constituição Federal de 1988, o Ministério Público Federal, do Trabalho e Estadual, Defensorias Públicas, organizações não governamentais das mais variadas espécies, sindicatos patronais e de empregados, todos promoveriam acalorados debates sobre a audaciosa iniciativa.

Por volta das 11:00 horas, os programas de petições eletrônicas dos Tribunais receberiam as primeiras petições iniciais. Um cidadão do sul do país, afirmando que a mudança impediria as pessoas de ir à capital a serviço e, nas horas vagas, ter momentos de lazer que a Constituição lhes assegura (artigo 6º), proporia uma ação popular no foro do seu domicílio, colocando a União junto com JK como réus (artigo 109, § 2º da Constituição). Uma ONG do norte ingressaria com ação civil pública, alegando que a destruição do cerrado infringiria o artigo 225 da Carta Magna.

Pouco depois, o “Jornal das 12” de uma TV informaria que o Ministério Público deliberou instaurar inquérito civil e, preliminarmente, recomendava ao Chefe do Executivo que suspendesse qualquer iniciativa sobre a matéria.

Durante a tarde, reuniões de professores de conceituadas universidades debateriam o tema em programas extraordinários da televisão, onde jornalistas diriam, com voz pausada e grave, que a iniciativa era inconstitucional.

Por volta das 17 horas uma manifestação de servidores públicos, das mais diversas origens, estaria reunida em frente ao Palácio do Catete, originando enorme confusão no trânsito, com cartazes e faixas. Black blocks aproveitariam a oportunidade para destruir o que pela frente lhes surgisse e nem a Câmara Municipal, que nada tinha a ver com o assunto, deixaria de ter quebrados os vidros de suas janelas.

O Tribunal de Contas da União receberia pedidos de intervenção, uma vez que lhe cabe a fiscalização financeira, operacional e patrimonial da União, inclusive realizar auditorias nas unidades administrativas dos três poderes (artigos 70 e 71 da CF). A Controladoria-Geral da União não seria ignorada, receberia, da mesma forma, pedidos formais, por caber-lhe manter atividade de apoio ao controle externo, na forma do artigo 74 da Constituição.

Alguns partidos políticos também expressariam suas preocupações, alguns deles cogitando até mesmo o impeachment do Presidente da República, pela possível existência de crime de responsabilidade (artigo 85, inciso V).

Quando chegasse ao Palácio no dia seguinte, após uma noite mal dormida, JK seria citado por vários oficiais de Justiça e receberia alguns mandados de citação, alguns ordenando que suspendesse qualquer atividade para a mudança da capital, sob pena de multa pessoal diária.

Suando frio, talvez ele cogitasse de largar tudo e retornar para a sua bela cidade de Diamantina, MG, onde poderia dedicar-se a curar os Policiais Militares (era médico da corporação) e participar das serestas de que tanto gostava. E o Brasil não teria uma capital que tem o grande mérito de unir o país, de integrar regiões diferentes e de dar à nação voz uniforme.

Tudo isto, aqui dito de forma inusitada, mas que serve para evidenciar um problema, revela que chegamos a uma situação de verdadeiro decisionismo imobilista, ou seja, tudo, o tempo todo, é decidido por todos, porém nada de fato se faz. O administrador queda-se imobilizado e qualquer iniciativa que saia de seus sonhos para a realidade é impedida por isto ou aquilo.

Óbvio que todos os órgãos e entidades que atuam na defesa da probidade administrativa, na boa aplicação de verbas, na proteção do consumidor, na responsabilidade fiscal, na defesa da igualdade e de tantas outras coisas importantes, agem com a melhor das intenções e de acordo com as suas atribuições constitucionais ou legais.

Por isso mesmo, não há que se criticar o MP, o TCU, a CGU, a DP e os órgãos da administração direta ou indireta. O que se tem a criticar é o sistema, pois ao cercar de tantas cautelas e garantias tudo, por vezes com dois, três ou quatro entes legitimados para apurar responsabilidade, simplesmente fez com que nada consiga avançar. O país está atravancado.

E mais. Todas estas atribuições e iniciativas desaguam na Justiça, já que o artigo 5º, inciso XXXV, dispõe que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Aparentemente fascinante, este inciso teve a má consequência de congestionar todas as instâncias judiciais, fazendo com que nada termine em tempo razoável e sugando recursos do Estado, que se vê obrigado a sustentar uma estrutura enorme.

Se a conclusão for esta, ou seja, a de que o sistema tornou-se emperrado, burocrático, ineficaz, impedindo que o país evolua, se desenvolva para o bem da coletividade, o raciocínio se encaminhará para duas opções: a) a Constituição de 1988 inviabilizou o país, assegurando a todos direitos infinitos e permitindo que a tudo se possa atribuir inconstitucionalidade, até à mudança do ponto de ônibus pelo município; b) a Constituição de 1988 é excelente, porém nós, brasileiros, é que somos maus e só por isto ela não tem se revelado útil.

Podemos todos fazer a escolha. De minha parte, adoto a primeira hipótese e rejeito a segunda, pois, sem qualquer ingenuidade, penso que os bons brasileiros são maioria absoluta. Portanto, a Constituição, com suas benesses e garantias exageradas, aliadas a um sistema de cobranças multifacetado, acabou se tornando um problema que ninguém se dispõe a enfrentar.

E assim concluindo, volto ao início: conseguiria JK, hoje, mudar a capital para Brasília?

Autores

  • Brave

    é chefe da Assessoria Especial de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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