Opinião

Disrupção, transporte rodoviário clandestino e o entendimento jurisprudencial

Autor

  • Daniel Siqueira Borda

    é especialista em Processo Civil e em Direito Tributário mestrando em Direito do Estado pela USP e advogado de entidades sindicais de transporte rodoviário que visam a garantir o cumprimento das normas atualmente vigentes no setor.

13 de outubro de 2019, 6h43

Uma suposta nova discussão surge, envolvendo a regulação e a prestação do serviço de transporte rodoviário de pessoas. Supostamente nova, pois a discussão envolve a oferta de serviço de transporte em plataformas eletrônicas. Não é nova, pois a essência da discussão é a oferta de transporte rodoviário clandestino, que há muito tempo assola os sistemas de transportes.

Pelo art. 6º e pelo sistema de competências da Constituição Federal, União e Estados possuem o dever de garantir o serviço de transporte rodoviário de passageiros. Os serviços de transporte coletivo urbano são garantidos pelos Municípios.

O serviço de transporte interestadual é regulado pela ANTT que, com base na Lei 10.233/2001, define as normas para viabilizar sua prestação universal, contínua e módica.

Mencionada Lei estabelece que a ANTT autorizará empresas transportadoras a prestar o serviço, desde que cumpridos os deveres impostos pelas normas. Dispõe também que a ANTT pode autorizar as empresas de transporte a realizar viagens episódicas para grupos de pessoas definidos (fretamento) que pretendem se locomover em ocasiões específicas. Ou seja, estabeleceram-se modalidades (regular e de fretamento) diferenciadas.

Para preservar a viabilidade econômica e técnica da prestação universal, contínua e módica do serviço de transporte, aqueles que operam para modalidades episódicas de transportes não podem se valer de suas autorizações para concorrer diretamente com o serviço regular. Para que se diferenciem as modalidades, vedam-se a venda de passagens individuais, a realização de paradas em seções e a oferta de viagens apenas de ida às empresas de fretamento.

Por outro lado, as empresas de fretamento não suportam os custos para a garantia da universalidade, continuidade e modicidade. Operam apenas quando há demanda em momentos específicos.

Em alguns Estados a regulação é ainda mais rigorosa, diante do dever de outorga por meio de licitação e celebração de contrato para definição da distribuição de riscos, da tutela ao equilíbrio econômico-financeiro relacionado à execução e à manutenção da adequabilidade do serviço.

Valendo-se da ideia de “disrupção”, empresas que operam por meio de um título habilitante, que apenas lhes permite realizar o serviço de fretamento, passaram a ofertar serviços idênticos ao transporte regular.

Para contornar as exigências normativas (legais e regulamentares), as empresas divulgam em suas plataformas a criação de um modelo supostamente novo: o “fretamento colaborativo”. Vendem a ideia de que tal modelo não estaria regulado, associando ao conceito o ideário das startups, da inovação e de combate a supostos monopólios como forma de evitar a única constatação possível: trata-se de empresas que prestam transporte irregular, eis que incompatível com a regulamentação vigente.

O “fretamento colaborativo” não possui nada de colaborativo e, da forma como é prestado, é proibido pelas normas que regem o setor. Trata-se de cópia do serviço prestado pelas empresas regulares. As viagens são comercializadas em plataformas eletrônicas por meio de um “rateio” (termo utilizado para mascarar a venda de passagem individual), cujos valores são sempre comparados com os preços cobrados pelas empresas regulares.

No que o fretamento “colaborativo” se diferencia do transporte regular?

  • Pessoas beneficiárias de isenção tarifária não podem se valer de seus benefícios nessas viagens. Devem pagar o valor individual pelas passagens vendidas pelas empresas de fretamento.
  • Sempre há o risco de que as viagens “colaborativas” agendadas não ocorram, caso não haja um número mínimo que justifique o lucro que a empresa de fretamento pretende atingir. Isso não ocorre no transporte regular, que deve ser prestado nos horários previstos, independentemente do número de passageiros.
  • Horários e localidades em que não há demanda não são atendidos pelas empresas “colaborativas”. Diversamente do serviço regular, elas só operam em linhas e horários extremamente superavitários.

Há outros aspectos, mas esses são os mais relevantes para demonstrar a incompatibilidade do modelo com o dever constitucional, imposto ao Estado, de garantir o transporte de todo cidadão.

A ANTT e os órgãos de fiscalização estaduais não atestam a legalidade do modelo. Notas técnicas revelam seu caráter ilegal e as diversas externalidades negativas que serão acarretadas aos serviços por elas regulados. As principais delas são a dificuldade para manutenção do atendimento de áreas e horários deficitários e a garantia da oferta do serviço a pessoas isentas.

Porém, esses entes não estão adotando providências efetivas contra o transporte irregular (p. ex. a interdição das plataformas respaldada pela Resolução 5.083/2016 da ANTT).

A pouca fiscalização realizada é insuficiente para conter a venda ilegal de passagens. Pior: é desprovida de inteligência estratégica. Permite-se que diversas pessoas embarquem em pátios clandestinos, mesmo sendo conhecidos os locais e horários em que os (des)embarques ocorrem (pois, são previamente definidos pelas plataformas). Ou seja, a fiscalização é raramente realizada em postos avançados – dificultando as autuações e o transbordo dos passageiros.

Para mitigar a pecha da clandestinidade e atrair os passageiros do transporte regular, o modelo criado oferta promoções, que, no mundo real, são impraticáveis. Os passageiros atraídos não se sentem responsáveis pelos danos causados ao sistema – a economia imediata lhes é mais importante.

Diante das ofertas predatórias e da inoperância fiscalizatória, o modelo clandestino vem ganhando escala. Por isso, coube ao Judiciário examinar sua legalidade e impor as medidas necessárias para garantir o cumprimento das normas.

A JFPR, reconhecendo a ilegalidade de plataforma eletrônica que oferta viagens irregulares, confirmou liminar para que a ANTT “adote as medidas que entender adequadas e necessárias para obstar, no âmbito do Estado do Paraná, (…), a prestação, por meio da plataforma (…), de serviços de transporte rodoviário interestadual de passageiros (…)”. Parte do pressuposto de que:

(…) o marco regulatório estabelecido pela ANTT em relação à prestação do serviço público de transporte rodoviário interestadual de passageiros propicia, por exemplo, que moradores de municípios menores não restem privados da prestação dos serviços em razão da ausência ou insignificância de retorno econômico da linha que passa pela localidade. É que, caso considerados exclusivamente os interesses privados das empresas privadas atuantes no setor, há forte tendência a que apenas as linhas economicamente rentáveis sejam operadas, com a consequente inexistência ou sucateamento de linhas das quais não resultam lucros aos agentes particulares. (…)

Extrai-se da sistemática de atuação da (…) que a empresa, embora alegue desempenhar atividade econômica, realiza viagens típicas ao âmbito do serviço público de transporte rodoviário interestadual de passageiros – sem arcar, entretanto, com os ônus operacionais e financeiros decorrentes da série de imposições e restrições a que as demais empresas do setor, regularmente autorizadas pela ANTT, estão submetidas (sentença de 09.05.2019 da ação nº 50275660620184047000).

A sentença foi complementada pelo TRF4 ao deferir pedido de tutela antecipada recursal, impondo multa diária de R$50.000,00 contra a empresa que oferta o fretamento irregular. Consignou-se que:

(…) A presente medida justifica-se pela necessidade de preservar o serviço regular de transporte prestado pelas empresas autorizadas que devem cumprir inúmeras exigências, seja de segurança, mas sobretudo de habitualidade e continuidade dos serviços.

(…) há serviços que, pela natureza, precisam de autorização e regulamentação, exigências estas também previstas na Constituição, a exemplo dos serviços de transporte rodoviário interestadual – 'e' do inciso XII do art. 21 da CF/88.

(…) não se pode permitir, ao menos neste momento, é a manutenção de uma concorrência desleal e predatória em face das empresas legalizadas. Veja-se que todo o sistema é feito de forma a manter uma habitualidade e continuidade dos serviços, bem como um equilíbrio na distribuição de linhas: horários mais rentáveis são divididos entre as empresas, ao tempo em que são obrigadas a operar outros trechos não tão lucrativos em centros menores mas que são essenciais às suas comunidades (incidente de nº 50406188320194040000).

No âmbito do transporte intermunicipal do Paraná, também houve proibição da oferta do modelo, pelo desrespeito a regras estruturantes do setor e a constatação de concorrência desleal. A decisão proferida, consigna que:

(…) ainda que haja uma tentativa de camuflar a atividade de fato exercida, com a utilização de termos como “rateio” para o pagamento de valores pelo serviço prestado, transparecendo que se trata de serviço de fretamento eventual, na verdade o que realiza é transporte intermunicipal de passageiros, em desconformidade às normas que regem a matéria.

(…)

Ora, não se está aqui buscando coibir a livre iniciativa, a qual merece inclusive forte incentivo do poder público. Todavia, impõe-se considerar, além do caráter de serviço público essencial – e coletivo – que goza o transporte intermunicipal de passageiros e que, por sua vez, sujeita-se às limitações do poder de polícia estatal, que toda a concessão pública é uma via de mão dupla, onde o concessionário assume diversos ônus na execução do serviço e, por isso, deve ter suas prerrogativas asseguradas, sob pena de inviabilizar-se a prestação de serviço regulamentada. Relevante ressaltar os ônus suportados pelas permissionárias, como o atendimento à todas as regulamentações impostas pelo poder público, tais como as previstas pelo Decreto 1.821/2000, a manutenção de linhas deficitárias (sendo necessárias para atendimento à determinada população), cumprimento da legislação que concede gratuidade à grupos especiais, entre várias outras, o que interfere sobremaneira na composição do preço dos serviços de transportes. (decisão de 19.09.2019 da ação nº 00024870620198160179, que tramita na 5ª VFP de Curitiba).

A decisão foi objeto de recurso de agravo de instrumento pela plataforma eletrônica, cujo pedido de efeito suspensivo foi indeferido pelo TJPR.

A JFSC também reconheceu a ilegalidade do modelo de fretamento “colaborativo” praticado por plataforma eletrônica, proibindo-o e exigindo que a ANTT o fiscalize. A decisão consigna que as características do modelo “não se amoldam ao transporte interestadual em regime de fretamento” pois:

Além da nota de regularidade na oferta dos serviços (viagens diárias, no mesmo horário), a venda de bilhetes individuais e a compra facultativa da passagem de volta (circuito aberto) revelam que não se trata de serviço de caráter ocasional, mas sim de "estabelecimento de serviços regulares ou permanentes".

(…) [A ANTT] Apontou, nesses termos, que a ré, ao gerir atividades de transporte interestadual de passageiros na modalidade regular sem arcar com os ônus para tanto – como a obrigação de disponibilizar também viagens de caráter necessário, por demanda do poder público, ainda que economicamente inviáveis – atua de modo clandestino, ilegal e predatório (…) (decisão de 02.10.2019, na ação de nº 50201191220194047200).

O Judiciário sinaliza que as normas que regulam o setor devem ser respeitadas por uma questão finalística (a preservação de um sistema eficiente que vem garantindo o transporte do cidadão). Ressalte-se que o transporte rodoviário regular, há anos, vem evoluindo para garantir a locomoção com segurança de milhões de passageiros, inclusive daqueles agraciados por benefícios e isenções tarifárias.

Não se trata de um setor refratário à inovação – jamais houve discussão sobre a implementação de outras tecnologias que permitam a redução de custos e melhoria do serviço para o usuário.

As empresas do transporte regular cumprem importante função social, cumprindo as normas instituídas por entidades técnicas que visam a ampliar a rede de transporte para o cidadão. As empresas possuem frota moderna, investem em programas de compliance para seus milhares de funcionários, implantam sistemas modernos de aquisição de passagens, realizando com qualidade ímpar um serviço essencial à população – inclusive, por meio de tarifa extremamente módica, quando comparada ao transporte aéreo (que goza de incentivos fiscais e regulatórios).

Por outro lado, as empresas irregulares, embrulhando-se nas capas do “fretamento colaborativo” e da disrupção, escondem as externalidades negativas provenientes do descumprimento de normas fundamentais.

Tais empresas (1) não tratam do risco imposto à rede que torna eficiente o transporte coletivo para a população de um país continental; (2) nem demonstram como a universalidade, continuidade e modicidade tarifária serão garantidas a toda população. O ônus de demonstrar isso é das empresas que querem alterar o modelo atualmente vigente.

Porém, tal ônus não foi implementado pelas empresas de fretamento “colaborativo” – e está longe de assim o ser, especialmente quando se leem os argumentos apresentados, que diminuem a complexidade do transporte de passageiros ao compará-lo a outras atividades econômicas privadas (p. ex. Netflix), cujo desenvolvimento se dá em ambiente de livre iniciativa e nas quais jamais se cogitou de discutir sobre imposição de obrigações como universalidade, continuidade e modicidade tarifária.

Enfim, é preciso que se tenha cuidado ao tratar do tema da inovação no âmbito do transporte rodoviário. Ela é um instrumento, um meio necessário (jamais, um fim em si mesmo) para atingimento dos fins constitucionais. Não pode ser uma porta de entrada para clandestinidade, seja qual for o setor.

As empresas irregulares visam a operar sem assumir custos e compromissos com os usuários, que ficarão sujeitos a embarcar e desembarcar em pátios clandestinos, à interrupção de viagens e às definições de qualidade do serviço de acordo com os parâmetros definidos pelas empresas irregulares.

As normas vigentes devem valer para essas empresas, independentemente da plataforma em que operam, nos termos do que o Judiciário sempre decidiu sobre o tema. Espera-se que os entes competentes realizem efetivamente a fiscalização e, se assim entenderem necessário, rediscutam o padrão de oferta do serviço – a fim de que todos os passageiros e todas as empresas que prestam o serviço, em suas diversas modalidades, possam se beneficiar das vantagens, arcando com os custos que o transporte regular e de fretamento exigem.

Diante do seu caráter normativo, qualquer alteração regulamentar do sistema atual, inclusive para tratamento de pautas relevantes (como liberdade tarifária, gerencial e viabilidade operacional), pressuporá a consulta aos agentes econômicos e a realização de estudos de impacto que comprovem sua eficiência em garantir o direito constitucional de transporte à população brasileira.

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  • é especialista em Processo Civil e em Direito Tributário, mestrando em Direito do Estado pela USP, e advogado de entidades sindicais de transporte rodoviário que visam a garantir o cumprimento das normas atualmente vigentes no setor.

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