Embargos culturais

Victor Klemperer e a o uso da linguagem pelos nazistas

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

13 de outubro de 2019, 8h00

Spacca
Victor Klemperer (1881-1960), filólogo, viveu na Alemanha, em um tempo de triste memória, no qual foi atormentado pelos horrores e pela perseguição do nazismo. Era judeu. Porém, o fato de ser casado com uma alemã lhe garantiu que sua prisão e execução fossem recorrentemente postergadas. Sobreviveu.

Deixou-nos intrigantes livros de memória. Deixou-nos também um impressionante estudo sobre os usos da língua alemã pelos nazistas: LTI: Lingua Tertii Imperii, isto é, a Língua do Terceiro Reich [1]. Concluído em Dresden (bombardeada) no natal de 1946, Klemperer dedicou esse texto fascinante para Eva, sua esposa. É um livro de apelo permanente. Transcende ao tema da linguagem no nazismo, alcançando padrões aplicáveis a todas as ditaduras. Klemperer lembra-nos o aviso de Franz Rosenzweig, para quem a linguagem é mais do que sangue. É um estudo de filologia aplicado à ciência política.

Klemperer lecionava na Alemanha. Percebeu que seus alunos que aderiam às ideias de Hitler falavam de um modo muito próprio, que os identificava, criando um sentido de grupo e de pertencimento. Para Klemperer, o nazismo se consolidou efetivamente quando dominou a linguagem.

Fixou-se um ideal de heroísmo, como prerrogativa de raça. Acreditou-se nessa falsidade até a ruína final. Era tarde demais. Uma pobreza de espírito, alimentada por um orgulho exuberante. Segundo Klemperer, “o nazismo se embrenhou na carne e no sangue das massas por meio de palavras, expressões e frases impostas pela repetição, milhares de vezes, e aceitas inconsciente e mecanicamente” [2]. Como em todas as ditaduras, altera-se o sentido das palavras e a frequência como eram utilizadas, impondo-se valores e visões de vida.

Segundo Klemperer, a pobreza dessa linguagem era gritante; “ela é pobre por princípio, como se cumprisse um voto de pobreza” [3]. Havia uma simplificação de estruturas sintáticas, substantivos e adjetivos tendiam a se confundir. Mentia-se despudoradamente. Lê-se em Klemperer que os nazistas, com sarcasmo e despudor, “afirmavam que só faziam o que a Constituição permitia, enquanto atacavam as instituições e as diretrizes do Estado e se lançavam furiosamente contra livros e jornais” [4]. Todo ditador tem um fascínio por constituições. Entre nós, Getúlio admirava o texto de Francisco Campos. Hitler não contava com texto próprio, mas havia adaptado a Constituição de Weimar ao seu regime.

A língua falada pelos nazistas, a LTI, era a língua do fanatismo das massas, instrumento de doutrinação, utilizada para fanatizar e para sugestionar [5]. Proliferam expressões que remetem à ideia de povo, como festa popular, concidadão, compatriota, conterrâneo, próximo do povo, popular, estranho ao povo, provindo do povo [6]. Até o automóvel padrão faria essa referência.

Assim, não nos esqueçamos que Volkswagen era justamente a idealização de um carro do povo. Esclarece-se no livro que Hitler havia prometido aos alemães realizar o sonho do carro próprio. O Estado venderia o veículo por 900 marcos, um valor baixo para aquele contexto. Uma Frente de Trabalho tocou o projeto, os alemães adiantaram os valores para pagamento, mas não receberam os veículos. No início da guerra as fábricas foram adaptadas para produção bélica [7].

As palavras remetiam a noções substancialmente concretas, ainda que ligadas a sentimentos. Para Klemperer, o discurso nazista não se dirigia ao intelecto, deixava de lado a inteligência, que entorpecia. Era o fanatismo, a ferramenta dos inimigos daqueles que procuram uma explicação racional para fatos potencialmente explicáveis. É o caso da “fé fanática na vitória final”, que ainda entorpecia quando os russos arrebentavam os prédios de Berlim.

A linguagem do nazismo alterava a pontuação, exagerava aspas irônicas e multiplicava siglas. Gestapo, SS, SA, NSDAP, e tantas outras passaram a ser substantivos de identificação comum. Os cartazes espalhados por todo o país acrescentavam a essas siglas uma estética de refinamento físico e de juventude idílica.

Klemperer também dedicou um capítulo para estudar nomes próprios que contavam com a preferência nos registros públicos. Segundo Klemperer havia predileção por nomes tipicamente germânicos (o que facilmente explicável), a exemplo de Dieter, Uwe, Margrit e, especialmente, por nomes ligados por hífen, como Bernd-Dietmar, "(…) muito apreciados, pela sonoridade, pela dupla profissão de fé, pelo caráter retórico, podendo-se depreender neles a intenção de pertencer à LTI" [8].

Regimes totalitários tem estética e linguagem que lhes marcam ostensivamente. Klemperer nos fornece uma metodologia para observação dessa disfunção linguística. É um livro cuja leitura atenta nos eleva e ao mesmo tempo nos adverte.


[1] Victor Klemperer, LTI- a Linguagem do Terceiro Reich, Rio de Janeiro: Contraponto, 2009. Tradução de Miriam Bettina Paulina Oelsner. É fundamental a leitura do estudo introdutório da tradutora. O estudo introdutório, tão somente, pela qualidade, já justificativa que se conheça o livro.

[2] Victor Klemperer, cit., p. 55.

[3] Victor Klemperer, cit., p. 61.

[4] Victor Klemperer, cit., p. 62.

[5] Victor Klemperer, cit., p. 66.

[6] Victor Klemperer, cit., p. 75.

[7] Victor Klemperer, cit., p. 147.

[8] Victor Klemperer, cit., p. 138.

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