Diário de Classe

Neoconstitucionalismo e o pós-positivismo à brasileira

Autor

  • Júlio César Rossi

    é advogado da União pós-doutorando em Direito pela Unisinos doutor em Direito pela PUC-SP e membro da ABDPro e do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

12 de outubro de 2019, 10h28

Na última aula ao discutirmos os caminhos do Direito Constitucional foi lembrado que, não raro, a imensa maioria dos livros atuais sobre a matéria – esses manuais famosos – trazem em suas primeiras páginas o epíteto: Neoconstitucionalismo.

Será mesmo que a doutrina brasileira sabe em que terreno epistemológico está pisando ou apenas se intitula de neoconstitucionalista porque tal expressão virou um modismo a demonstrar pretensa erudição no âmbito do movimento fashion e de cunho meramente performático do Direito que por aqui passou a ser ensinado?

Parece-me que a resposta está na segunda indagação.

A doutrina pátria de um modo geral vem tratando o neoconstitucionalismo – para nós o pós-positivismo à brasileira – como o novo direito constitucional, identificado como um conjunto amplo de transformações ocorridas no Estado e no direito constitucional, em meio as quais podem ser assinalados, como marco teórico, a formação do Estado constitucional de direito, cuja consolidação se deu ao longo das décadas finais do século XX; como marco filosófico, estaria o pós-positivismo, com a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre direito e ética e, finalmente, como marco teórico, encontraríamos o conjunto de mudanças que incluem a força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional1.

A doutrina brasileira, até certo ponto vai bem, quando afirma que no Estado Democrático a lei cede à força normativa da Constituição, assim como reconhece a jurisdição constitucional e as suas formas de interpretação, mas peca ao afirmar que o neoconstitucionalismo possui como marco filosófico o pós-positivismo.

Em verdade, quando fazem essa afirmação, estão buscando no pós-positivismo o álibi para adotar a teoria da argumentação de Robert Alexy e a sua teoria da ponderação.

Como dito, o pós-positivismo à brasileira é um disfarce para a aplicação rasa da ponderação de valores, muito mal recepcionada pela doutrina pátria, notadamente pelo fato de que a concretização da ponderação autoriza a arbitrariedade na “escolha” ou “descoberta” de um princípio que prevalecerá na solução do caso; afinal, princípios são considerados pelos “neos” como genuínos mandamentos de otimização2.

Nada mais equivocado!

Há uma tendência contemporânea brasileira de apostar no protagonismo judicial para a busca na concretização de direitos. Isso decorre de uma equivocada recepção da chamada Jurisprudência dos Valores3, movimento ocorrido na Alemanha após a Segunda-Guerra. Essa metodologia serviu para equalizar a tensão produzida depois da outorga da Lei Fundamental. Nos que se seguiram, houve um esforço considerável por parte do Tribunal Constitucional para legitimar uma Carta que não tinha sido constituída pela ampla participação do povo alemão. Daí a afirmação de um ‘jus’ distinto da ‘lex’, ou seja, a invocação de argumentos que permitissem ao Tribunal recorrer a critérios decisórios que se encontravam fora da estrutura rígida da legalidade. Assim, a referência a valores aparece como um mecanismo de ‘abertura’ de uma legalidade extremamente fechada que possibilitaria o totalitarismo nazista4.

Com efeito, o ‘nosso pós-positivismo’, ancorado na metodologia (jurisprudência dos valores), assim como os adeptos da ponderação, utiliza-se de certos valores (axiomas) para auxiliar o julgador a identificá-los no momento em que procuram resolver o conflito levado à apreciação.

Desta forma, o que era na visão do positivismo exegetista a aplicação pura da lei ao fato, por meio da subsunção, com a jurisprudência dos valores, reveste-se de um colorido orientado por axiomas, os quais são sacados pelos aplicadores ao caso concreto, já que nessa forma de compreender a interpretação, os ‘valores’ servem de fundamentação da decisão. Na jurisprudência dos valores, o foco se volta a orientar os julgadores segundo os padrões de valores eleitos pela sociedade.

A jurisprudência dos valores em muito se aproxima de sua antecessora, a jurisprudência dos interesses, mas com ela não se confunde5. De qualquer modo, essas metodologias se formam em torno do positivismo e são tropicalizados para o Brasil, através da doutrina que se autodenomina “neoconstitucionalista”, sem se preocupar com o efeito colateral de continuar adotando variações do velho positivismo normativista, cujo ponto de maior destaque era a preocupação com a semântica, atribuindo ao julgador, a vontade (subjetivismo) em decidir os casos que lhes são submetidos à análise.

A jurisprudência dos valores leva à criação de padrões decisórios calcados no subjetivismo (enraizado no ideal valorativo individual), os quais, como sabemos, são lançados pelo sujeito encarregado de decidir6, denunciando a máxima de que “primeiro se tem a solução e depois se busca a lei para fundamentá-la7.

É nesse estado da arte que, no Brasil, com o auxílio da “descoberta” da ponderação de valores, abrimos uma aposta no protagonismo judicial como forma de concretizar direitos, muitas vezes ao arrepio do texto normativo Constitucional e legal.

O que podemos arriscar em sustentar é que, enquanto não nos livrarmos de uma vez por todas dessa postura neoconstitucionalista, com procedimentos ou instrumentos metodológicos os quais acreditam que princípios se aplicam por ponderação e regras por subsunção, na falsa premissa de que o pós-positivismo é um movimento teórico por meio do qual normas são princípios e regras, onde os primeiros têm a função de resolverem casos difíceis e as últimas os fáceis, estaremos mergulhados no ideal norteador da filosofia da consciência8 de cariz metafísico, alvoroçando o protagonismo judicial e, por consequência, enfraquecendo a democracia.


1 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Revista da Associação dos Juízes Federais do Brasil. Ano 23, n° 82, 4° trimestre, 2005, p.123.

2 Princípios não são mandamentos de otimização (o que nos faz voltar nas “jurisprudências dos interesses e valores e na (im)ponderação/reponderação por meio da razoabilidade e proporcionalidade) que o neoconstitucionalismo nos deixou … mas devem ser compreendidos “(…) como padrões normativos cuja função é fechar a interpretação, ou seja, não é desenvolver um sopesamento entre normas, mas desvelar os elementos que ficam obnubilados pela incompletude interpretativa da regra” (STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: quarenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2017, 239-244).

3 Frisemos que o termo ‘Jurisprudência’, nesse ponto, significa ciência jurídica, sem qualquer conotação às decisões tomadas por um Tribunal. Em verdade, jurisprudência dos conceitos, jurisprudência dos interesses e jurisprudência dos valores são expressões que traduzem um modo específico de se relacionar com o conhecimento do direito e apresentar soluções para os casos judiciais. (ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à teoria e à filosofia do direito. São Paulo: RT, 2013, p.333).

4 STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência. 2.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 21.

5 “A chamada jurisprudência dos valores (wertungsjurisprudenz) representa mais uma continuidade do que uma verdadeira ruptura com o método da jurisprudência dos interesses. […], a principal diferença entre essas duas correntes metodológicas reside no fato de que, a jurisprudência dos interesses possui um acentuado corte sociológico (da identificação dos interesses em conflito que levaram o legislador a editar a norma), ao passo que a Jurisprudência dos valores é revestida de um colorido filosófico: auxiliar o julgador a identificar os valores que subjazem ao direito naquele dado conflito levado à sua apreciação […]. Uma segunda diferença está no lugar privilegiado para o Leitmotiv da discussão: na jurisprudência dos interesses […] as atenções estão voltadas para a atividade do legislador. A tarefa do intérprete, aqui, é reconstruir os argumentos e ponderar os interesses que levaram à edição do diploma legislativo. Já no caso da jurisprudência dos valores, o polo da discussão é deslocado para a atividade jurisdicional, o problema a ser enfrentado é a fundamentação da decisão final. Aqui a preocupação é orientar a decisão dos juízes segundo os valores que constituem os fundamentos do convívio social. […] Na última década, começaram a surgir estudos […] que dão conta da expansão do judge made law no continente Europeu e, mais recentemente, pelos países periféricos (hoje chamados de emergentes, como é o caso do Brasil). Ou seja, as transformações operadas pelo constitucionalismo do segundo pós-guerra e o papel efetivo desempenhado pelo Tribunal Constitucional Federal (Bundesverfassungsgericht) alemão para efetividade da Lei de Bonn de 1949, passam por essa tendência, hoje global, de ‘expansão do poder judicial’. Essa é outra diferença decisiva que a jurisprudência dos valores guarda com relação à jurisprudência dos interesses. No caso da primeira, seus postulados metodológicos não se restringem ao âmbito acadêmico, mas tem como grande ‘laboratório’ a atividade do Tribunal Constitucional Federal alemão nas primeiras décadas da segunda metade do século XX que recepcionou muitas de suas teses”. (ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à teoria e à filosofia do direito. São Paulo: RT, 2013, p. 340-341).

6 “Solipsismo: o sujeito solipsista […], que quer dizer egoísta, que se basta, encapsulado – é uma construção filosófica que deita raízes na metafísica moderna (filosofia da consciência). Essa concepção tem como ponto de partida o cogito ergo sum, de Descartes, passando pelas mônadas, de Leibniz, pelo eu transcendental, de Kant, até chegar a seu extremo em Schopenhauer, com a ideia de mundo como vontade e representação. Trata-se, portanto, de uma corrente filosófica que determina que exista apenas um Eu que comanda o Mundo, ou seja, o mundo é controlado consciente ou inconscientemente pelo Sujeito. Devido a isso, a única certeza de existência é o pensamento, instância psíquica que controla a vontade. Neste sentido, a verdade é determinada pela consciência do sujeito. Em outras palavras, para o solipsismo filosófico, o mundo seria/é apenas o resultado das representações que realizamos a partir de nosso ‘feixe de sensações’. Desse modo, quando falo de um sujeito solipsista, refiro-me a essa consciência encapsulada que não sai de si no momento de decidir […]”. (STRECK, Lenio Luiz. Compreender direito: desvelando as obviedades do discurso jurídico. São Paulo: RT, 2013, p. 203-204).

7 STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência. 2.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 3

8 Apenas para uma noção desse paradigma filosófico, lembremos com Streck: “Essa crise do modelo (dominante) de Direito (ou modo de produção de Direito) institui e é instituída por uma outra crise, aqui denominada/trabalhada como crise dos paradigmas aristotélico-tomista e da filosofia da consciência, bases desse modelo liberal-individualista de interpretação/aplicação do Direito ainda dominante no ‘campo jurídico’ vigorante no Brasil. Isto porque as práticas hermenêuticas-interpretativas vigorantes/hegemônicas no campo da operacionalidade – incluindo aí doutrina e jurisprudência – ainda estão presas à dicotomia sujeito-objeto, carentes e/ou refratárias à viragem linguística de cunho pragmatista-ontológico ocorrida contemporaneamente, onde a relação passa a ser sujeito-sujeito. Dito de outro modo, no campo jurídico brasileiro, a linguagem ainda tem um caráter secundário, uma terceira coisa que se interpõe entre o sujeito e o objeto, enfim, uma espécie de instrumento ou veículo condutor de ‘essências’ e ‘corretas exegeses’ dos textos legais. Ou, na outra ponta do problema, sob o pretexto da superação das posturas objetivistas, vê-se o surgimento das diversas (neo)teorias, como o neoconstitucionalistmo e o neoprocessualismo, que apostam no protagonismo judicial e no instrumentalismo processual, dado azo a uma verdadeira fábrica de princípios. Daí a necessidade da elaboração de uma crítica à hermenêutica jurídica tradicional – ainda (fortemente) assentada nesses dois paradigmas filosóficos (metafísica clássica e filosofia da consciência) – através da fenomenologia hermenêutica, pela qual o horizonte do sentido é dado pela compreensão (Heidegger) e ser que pode ser compreendido é linguagem (Gadamer), onde a linguagem não é simplesmente objeto, e sim, horizonte aberto e estruturado e a interpretação faz surgir o sentido. […] Ora, as palavras da lei não são unívocas; são, sim, plurívocas, questão que o próprio Kelsen já detectava de há muito. Mas isso não significa que o processo hermenêutico admita discricionariedades e decisionismos. É possível encontrar respostas corretas em direito, justamente pelo caráter antirrelativista da hermenêutica filosófica […]. A metafísica, que na modernidade recebeu o nome de teoria do conhecimento (filosofia da consciência), faz com que se esqueça justamente da diferença que separa ser e ente. No campo jurídico, esse esquecimento corrompe a atividade interpretativa, mediante uma espécie de extração de mais-valia do ser (sentido) do Direito. O resultado disso é o predomínio do método, do dispositivo, da tecnicização e da especialização, que na sua forma simplificada redundou em uma cultura jurídica estandardizada, na qual o direito não é mais pensado em seu acontecer […]”. (STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 10.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 18-21).

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