Direito do Agronegócio

Decreto-Lei 73/66 e a isenção de tributos federais no seguro rural

Autor

  • Fábio Pallaretti Calcini

    é doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP pós-doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal) ex-membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) professor da FGV-Direito SP e Ibet e sócio tributarista da Brasil Salomão e Matthes Advocacia.

11 de outubro de 2019, 8h00

Spacca
caricatura Fábio Calcini [Spacca]Embora as legislações não sejam recentes a respeito do tema que iremos tratar, este ainda é contemporâneo e impõe nossa avaliação, uma vez que, salvo melhor juízo, não temos posicionamento dos tribunais superiores.

A nossa discussão envolve a edição do Decreto-Lei 73, de 21 de novembro de 1966, o qual buscou dispor a respeito do Sistema Nacional de Seguros Privados, regulando as operações de seguros e resseguros. Constituiu-se, assim, o Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP), a Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), do Instituto de Resseguros do Brasil (IRB), das Sociedades Seguradoras e Resseguradoras, as quais tinham permissão para operar (atuar economicamente) com seguros e resseguros privados.

Esta legislação, de forma expressa, com o claro objetivo de proteger uma das principais atividades econômicas brasileiras, que é o agronegócio, bem como o fato de que existem peculiaridades que merecem ser resguardadas (fatores de riscos e perdas relativos à atividade rural), estabeleceu no artigo 19 que:

“Art 19. As operações de Seguro Rural gozam de isenção tributária irrestrita, de quaisquer impostos ou tributos federais”[1] .

Este texto normativo é objeto de polêmica ainda não solucionada no sentido de avaliar a amplitude da extensão da isenção concedida quanto aos tributos federais, notadamente, IOF, IRPJ, CSLL, PIS e COFINS.

Desde logo, é preciso esclarecer que inexiste dúvida de que referida isenção prevista em Decreto-Lei foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988, não sendo aplicável o artigo 41 do ADCT.

Da mesma forma, diante de clara previsão no artigo 23, do RIOF (Decreto 6.306/2007), a isenção se aplica ao IOF, ao explicitar que: “Art. 23.  É isenta do IOF a operação de seguro: (…) III – rural (Decreto-Lei 73, de 21 de novembro de 1966, art. 19);”

A grande discussão envolve os demais tributos.

Conforme citação do texto normativo temos: (i) – uma legislação voltada para regulamentar o setor de seguros e resseguros; (ii) – há previsão expressa de isenção no artigo 19 para referida atividade em proteção a determinado segmento econômico relevante, que é o agronegócio; (iii) – tal isenção estabelece que esta se aplica às operações de seguro rural; (iv) – do mesmo, aponta que ela será irrestrita; (v) – sendo que o gozo desta isenção em tais operações se dará para quaisquer impostos ou tributos federais.

Há uma corrente que interpreta referido dispositivo legal no sentido de que, dado o fato de enunciar ser a isenção aplicável à operação de seguro rural, referida expressão estaria totalmente relacionada à hipótese de incidência ou regra matriz de incidência do imposto sobre operações de seguros (IOF-seguro), sobretudo, diante do artigo 111 do Código Tributário Nacional [2].

Acreditamos, todavia, que o texto normativo seja na sua literalidade ou mesmo finalidade não se restringe ao imposto sobre operações de seguro (IOF-seguro).

Ora, como primeiro ponto quanto ao artigo 111, do Código Tributário Nacional, é preciso pontificar que não se deve confundir interpretação literal com restritiva, além do que não se impede (na verdade, se impõe) averiguar a finalidade normativa do texto legal.

Bem por isso, o próprio Superior Tribunal de Justiça em questões voltadas à interpretação de isenções e a aplicação do artigo 111, do Código Tributário Nacional, tem reconhecido de forma explícita que tal dispositivo não impede a interpretação finalística dos textos legais, eis que não se confunde interpretação literal com restritiva, além de inexistir impedimento à aplicação de referido método hermenêutico, a fim de que se alcance o efetivo propósito e finalidade normativa[3], podendo-se citar exemplos ligados à isenção de IRPF no caso de moléstia grave[4] ou mesmo para ganho de capital de imóvel.[5]

Aliás, em recente decisão o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) muito bem apontou a extensão de referido texto legal:

“BENEFÍCIOS FISCAIS INTELIGÊNCIA DO ART. 111 DO CTN A luz do art. 111 do CTN, as normas concessivas de benefícios fiscais devem ser interpretadas de forma linear e neutra, de sorte a garantir que seus efeitos não sejam estendidos à hipóteses nelas não contempladas, nem tampouco restringidos para afastar a sua incidência dos fatos explicita ou implicitamente contidos na regra isentiva.”[6]

Por isso, não resta dúvida de que, o artigo 111 do CTN não impede a interpretação finalística, inclusive, com o objetiva de afastar a tributação em fatos que estejam implícitos.

Deste modo, ao interpretar o artigo 19 do DL 73/66, identificamos uma finalidade e extensão que não se restringe ao IOF. Ao contrário, nos parece que este posicionamento viola até mesmo a legalidade e o próprio artigo 111 do CTN.

Isto porque, o legislador não traz palavras inúteis e devemos nos atentar a cada ponto deste dispositivo.

Neste sentido, temos o início do texto onde dispõe que “as operações de seguro rural gozam de isenção”. Equivale dizer: os negócios jurídicos denominados de seguro rural realizados pelas seguradoras usufruem de uma isenção tributária.

Percebe-se, portanto, com clareza que o dispositivo não trata ainda do tipo de tributo que teria isenção, mas, entre as diversas atividades e negócios jurídicos que realizam as seguradoras, um que o legislador pretendeu não tributar, qual seja o seguro rural (operação com seguro rural).

Após tal trecho, outro aspecto relevante seria “isenção tributária irrestrita”. Pretende, com isso, deixar expressamente pontuado que não se deve buscar interpretações restritivas, regulamentações que impeçam o gozo de referida isenção.

Deste modo, chegamos a outro aspecto relevante, ao enunciar que: “de quaisquer impostos ou tributos federais”.

Ora, é de clareza meridiana que a isenção tributária resguarda as seguradoras, em operações (ou negócios jurídicos) de seguro rural, de não sofrer tributação (isenção) de qualquer imposto ou tributo. Bem por isso, a literalidade do texto normativo e finalidade não vincula a um determinado imposto (IOF), permitindo o gozo da isenção com maior amplitude sem ferir a legalidade.

Não haveria razão para se preceituar “quaisquer impostos ou tributos”, se a isenção fosse restrita ao IOF.

A literalidade estabelecida permite afirmar que o Fisco Federal estará impedido de exigir qualquer imposto ou tributo quando se tratar de operação de seguro rural. Ao utilizar tributos, a extensão da isenção para além do IOF é mais evidente.

Aliado a tal literalidade, ao se buscar a finalidade deste texto normativo, tem-se que buscou, em proteção ao agronegócio, impedir a tributação, seja qual for ela, independentemente do imposto ou tributo, a fim de que este instrumento tivesse um custo inferior, permitindo maior acesso aos produtores rurais, de tal sorte que a carga fiscal não fosse um fator que impedisse a sua utilização. Isentar somente do IOF seria algo de menor relevante e não permitiria atingir efetivamente a finalidade que se buscou alcançar.

Mas, diante de tais considerações, quais seriam os tributos isentos?

Entre os tributos federais, além do IOF, entendemos que as receitas decorrentes de negócios jurídicos de seguro rural serão isentas também do IRPJ.

Restam ainda a CSLL, bem como PIS e COFINS.

Aqui a discussão é maior, uma vez que, dentro de uma avaliação clássica de isenção, tendo em vista que esta adveio em 1966, não caberia sua aplicação para tributos que não existiam aquela época. A isenção impediria a exigência de crédito tributário (exclusão — artigo 177, CTN) para tributos vigentes quando de sua instituição pelo artigo 19.

De fato, neste aspecto, a questão é mais complexa. Sem embargo, buscaremos traçar algumas reflexões.

Não há dúvida de que esta é a regra e há de ser tomada como premissa.

Mas, se o legislador apresentar uma redação do texto normativo que garanta uma isenção de forma ampla, objetivando impedir a exigência de quaisquer tributos sobre determinadas operações. Não seria possível?

Inexiste dúvida de que a CSLL, PIS e COFINS, não existiam quando do surgimento da isenção, porém, é preciso refletir que: (i) – a literalidade estabelece que esta é irrestrita e abrange quaisquer impostos ou tributos, ou seja, de certo modo autoriza o entendimento no sentido de que referido negócio jurídico não dever ser objeto de tributação independentemente do que existia naquele momento ou que se criar, de tal maneira que a forma de alterar esta previsão seria a sua revogação ou lei posterior em sentido contrário; (ii) – não nos parece que a finalidade almejada seja restritiva e com olhar exclusivo para o que existia à época do surgimento daquela, ao contrário, buscou uma proteção em face da voracidade do Fisco Federal ao longo do tempo, impedindo que impostos e tributos, mesmo que criados posteriormente, pudesse atingir este tipo de negócio jurídico; (iii) – quanto à CSLL, ao se avaliar sua forma de tributação, está se assemelha a um adicional do IRPJ.

Em tais condições, possível concluir, apesar da controvérsia, que a isenção prevista no artigo 19, do DL 73/66 impede a exigência de IOF, IRPJ, CSLL, PIS e COFINS nas operações de seguro rural.


1 – Sabemos da existência da Lei Complementar .137/2010, que enuncia: “Art. 22. Revogam-se: (…) III – o art. 19 do Decreto-Lei no 73, de 21 de novembro de 1966, a partir de 1o de julho do ano seguinte ao do início de operação do Fundo;”. O art. 19 ainda permanece vigente pois não houve a criação deste fundo.

2 – “Art. 111. Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre: I – suspensão ou exclusão do crédito tributário; II – outorga de isenção; III – dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias.”

3 – “1. Na hermenêutica jurídica, o aplicador do direito deve se ater ao seu aspecto finalístico para saber o verdadeiro sentido e alcance da norma.” (STJ, REsp 330.677/RS, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 02/10/2001, DJ 04/02/2002, p. 306).

4 – “TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. IMPOSTO DE RENDA PESSOA FÍSICA. INCIDÊNCIA SOBRE PROVENTOS DE APOSENTADORIA. CARDIOPATIA GRAVE. ISENÇÃO. TERMO INICIAL: DATA DO DIAGNÓSTICO DA PATOLOGIA. DECRETO REGULAMENTADOR (DECRETO Nº 3.000/99, ART. 39, § 5º) QUE EXTRAPOLA OS LIMITES DA LEI (LEI 9.250/95, ART. 30). INTERPRETAÇÃO. 1. Trata-se de ação processada sob o rito ordinário ajuizada por TEREZINHA MARIA BENETTI PORT objetivando ver reconhecida a isenção de imposto de renda retido sobre os seus proventos de aposentadoria com fundamento na Lei 9.250/95, art. 30, por ser portadora de cardiopatia grave. A sentença julgou procedente o pedido ao reconhecer que a restituição deve ocorrer a partir do acometimento da doença. O TRF/4ª Região negou provimento ao apelo voluntário e à remessa oficial sob os mesmos fundamentos utilizados na sentença. Recurso especial da Fazenda apontando violação dos arts. 30 da Lei 9.250/95 e 39, §§ 4º e 5º do Decreto 3.000/99. Defende que o art. 39, §§ 4º e 5º do Decreto 3.000/99 (Regulamento do Imposto de Renda) estabelece que as isenções no caso das moléstias referidas no art. 30 da Lei 9.250/95 aplicam-se a partir da emissão do laudo ou parecer que as reconhecem. Sem contra-razões. 2. A Lei 9.250/95, em seu art. 30, estabelece que, para efeito de reconhecimento da isenção prevista no inciso XIV, do art. 6º, da Lei 7.713/88, a doença deve ser comprovada mediante laudo pericial emitido por serviço médico oficial (da União, Estados, Distrito Federal ou Municípios). O Decreto 3.000/99, art. 39, § 5º, por sua vez, preceitua que as isenções deverão ser aplicadas aos rendimentos recebidos a partir do mês da emissão do laudo pericial ou parecer que reconhecer a moléstia, se esta for contraída após a aposentadoria, reforma ou pensão. 3. Do cotejo das normas dispostas, constata-se claramente que o Decreto 3.000/99 acrescentou restrição não prevista na lei, delimitando o campo de incidência da isenção de imposto de renda. Extrapola o Poder Executivo o seu poder regulamentar quando a própria lei, instituidora da isenção, não estabelece exigência, e o decreto posterior o faz, selecionando critério que restringe o direito ao benefício. 4. As relações tributárias são revestidas de estrita legalidade. A isenção por lei concedida somente por ela pode ser revogada. É inadmissível que ato normativo infralegal acrescente ou exclua alguém do campo de incidência de determinado tributo ou de certo benefício legal. 5. Entendendo que o Decreto 3.000/99 exorbitou de seus limites, deve ser reconhecido que o termo inicial para ser computada a isenção e, conseqüentemente, a restituição dos valores recolhidos a título de imposto de renda sobre proventos de aposentadoria, deve ser a partir da data em que comprovada a doença, ou seja, do diagnóstico médico, e não da emissão do laudo oficial, o qual certamente é sempre posterior à moléstia e não retrata o objetivo primordial da lei. 6. A interpretação finalística da norma conduz ao convencimento de que a instituição da isenção de imposto de renda sobre proventos de aposentadoria em decorrência do acometimento de doença grave foi planejada com o intuito de desonerar quem se encontra em condição de desvantagem pelo aumento dos encargos financeiros relativos ao tratamento da enfermidade que, em casos tais (previstos no art. 6º, da Lei 7.713/88) é altamente dispendioso. 7. Recurso especial não-provido”. (REsp 812.799/SC, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 16/05/2006, DJ 12/06/2006, p. 450).

5 – “TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA. GANHO DE CAPITAL NA ALIENAÇÃO DE BEM IMÓVEL RESIDENCIAL. IN/SRF Nº 599/2005 E ART. 39 DA LEI Nº 11.196/2005.1. A isenção do Imposto de Renda sobre o ganho de capital nas operações de alienação de imóvel prevista no art. 39, da Lei 11.196/2005 se aplica à hipótese de venda de imóvel residencial com o objetivo de quitar, total ou parcialmente, débito remanescente de aquisição a prazo ou à prestação de imóvel residencial já possuído pelo alienante. 2. É ilegal a restrição estabelecida no art. 2º, §11, I, da Instrução Normativa-SRF n. 599/2005. 3. NEGO PROVIMENTO ao recurso especial. (REsp 1469478/SC, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, Rel. p/ Acórdão Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 25/10/2016, DJe 19/12/2016).

6 – CARF, 1ª Seção, Ac. 1302003.082, j. 18/09/2018.

Autores

  • Brave

    é advogado tributarista, sócio do Brasil Salomão e Matthes Advocacia. É doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, pós-doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal) e ex–membro do Carf.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!