História da Justiça

Ex-presidente Cesar Asfor Rocha fala dos 30 anos do STJ

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11 de outubro de 2019, 14h15

Na celebração dos 30 anos de criação do Superior Tribunal de Justiça (STJ), é tempo de revisitar os grandes do tribunal. Momento marcante: a introdução das novas tecnologias que ajudaram a consolidar o tribunal e contribuir para a uniformização da jurisprudência e avanços decisivos na organização do sistema judiciário brasileiro.

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Nesse itinerário, uma gestão em especial marcou a história do STJ: a do ministro Cesar Asfor Rocha. Na entrevista que se segue, o ministro aposentado, hoje advogado, narra diferentes aspectos do lado humano da profissão, analisa as transformações recentes pelas quais passaram o tribunal e a Justiça brasileira.

Por 20 anos, o jurista atuou no tribunal e foi o responsável por sua condução durante o processo de digitalização de 100% dos processos em curso na Corte, algo até então inédito no mundo inteiro.

Leia a entrevista:

ConJur — Neste ano, o STJ completa 30 anos de criação. Qual é a importância desse tribunal?
Cesar Asfor Rocha — As decisões relatadas pelos ministros do STJ impactam a administração pública, a economia e os negócios, os direitos fundamentais e a própria Justiça. Trata-se da Corte mais próxima da vida cotidiana da sociedade e do país. Se o Supremo Tribunal Federal é a salvaguarda dos princípios fixados na Constituição Federal, o Superior Tribunal de Justiça é o garantidor de que cada um de seus itens estão sendo cumpridos.

ConJur — O senhor entrou para o STJ em 1992 e aposentou-se em 2012. Quais foram as principais transformações capitaneadas pelo tribunal na vida dos brasileiros ao longo dessas duas décadas?
Cesar Asfor Rocha — O trabalho do juiz influencia o destino das pessoas, empresas e instituições que fazem parte de um processo. Para um ministro do STJ, o peso da responsabilidade é muito maior. As decisões impactam a vida de milhões de brasileiros que, muitas vezes, sequer fazem parte de uma ação judicial. Por exemplo, quando uma sentença abre um novo precedente as relações sociais são alteradas. Algumas, mexem nas estruturas familiares, como a que permitiu a guarda compartilhada dos filhos em casos de divórcio antes disso virar lei. Outras mudaram as relações entre consumidores e empresas. Tive a oportunidade de relatar um caso desses. Votei pela aplicação do Código de Defesa do Consumidor para contratos bancários porque entendi que havia ali uma relação de consumo. Mas, na prática, isso contribuiu para que a população não se tornasse vítima de contratos leoninos.

ConJur — Vivemos um período de maior protagonismo da Justiça. Há críticas, porém, ao que se conveniou chamar por ativismo judicial. Como o senhor enxerga isso?
Cesar Asfor Rocha — São dois pontos diferentes, mas que de fato se confundem. Antes, o Judiciário era um grande desconhecido da população brasileira. Era uma instituição que pecava pela falta de transparência. Depois, foi para o outro extremo, com julgamentos importantes sendo televisionados, com o noticiário cobrindo ininterruptamente os tribunais e com a pressão das redes sociais. O protagonismo, de fato, aumentou. E as pessoas passaram a ter melhor compreensão do trabalho da Justiça e dos efeitos das decisões. Isso é uma coisa. Outra é usar o direito para fazer política.
Esse é o maior risco com os ativistas togados. Deixam de ser operadores do direito para atuar como militantes que manipulam a lei segundo suas conveniências ideológicas. Isso é ruim para a Justiça.

ConJur — Qual é o maior erro que um ministro pode cometer?
Cesar Asfor Rocha — Afastar-se da humanidade. A magistratura só é exercida em sua plenitude se somos capazes de enxergar as pessoas, suas circunstâncias, criar empatia e, ainda assim, não nos deixarmos levar pelas nossas próprias paixões e pelo clamor das ruas. Há uma percepção de que o punitivismo de alguns juízes é um ato de coragem. Vejo de maneira distinta. Coragem é ater-se à lei. Mesmo que isso desagrade o furor popular.

ConJur — Onde e quando o ministro Asfor Rocha foi mais humano no exercício da profissão?
Cesar Asfor Rocha — Alguns casos foram mais emblemáticos. Um deles, quando estava atuando como Corregedor Nacional de Justiça, em que tive que acionar diferentes tribunais para soltar um homem, preso por crimes que jamais cometeu, em tempo de passar o Natal com a família. Mas o que realmente me transformou como juiz foi o contato com portadores de Síndrome de Down e deficientes auditivos. Realizamos o maior programa de inclusão da Justiça Nacional. Eles foram encarregados de atuar em áreas importantes, como a digitalização dos processos, e desempenharam suas funções com altíssimo nível de eficiência.

ConJur — A digitalização é o seu maior legado para o STJ.
Cesar Asfor Rocha — Não é meu. É dos ministros do STJ, dos seus servidores e de centenas de deficientes auditivos que atuaram e atuam na ponta desse projeto, digitalizando milhares de processos em papel. Foi uma operação gigantesca e extremamente ambiciosa. Enfrentou resistência de todos os lados. Mas o saldo é realmente positivo e o resultado está aí até hoje. Ninguém mais imagina em ingressar com uma ação que não seja por meio digital, acessando tudo pelo computador.

ConJur — Qual foi o maior desafio nesse projeto?
Cesar Asfor Rocha — Projetos desse porte envolvem grande contingente de profissionais que precisam estar coordenados para atuar em direção ao mesmo objetivo. Só isso, já é algo complicado de orquestrar. Mas, no caso da digitalização, também se tratava de uma grande mudança de paradigma. Advogados receavam perder acesso aos ministros. Servidores temiam perder os empregos. E ministros achavam que o meio digital era mais vulnerável. O convencimento geral só veio mesmo depois que o projeto entrou no ar e fomos reconhecidos internacionalmente, inclusive pelo Banco Mundial, como o primeiro tribunal de atuação nacional do mundo a se digitalizar.

ConJur — E qual o maior desafio para o STJ hoje?
Cesar Asfor Rocha — É manter-se atualizado. O mundo está mudando cada vez mais rápido, a judicialização está aumentando e os tribunais vão precisar passar por um novo processo de modernização. Dessa vez, contudo, o salto de tecnologia terá de ser diferente. Para que os tribunais consigam acompanhar as demandas do mundo moderno, terão de ser capazes de atuar em parceria com sistemas computadorizados de inteligência artificial. Ao mesmo tempo, os efeitos da modernização do Judiciário precisam chegar na ponta. Isso ainda não aconteceu em plenitude. Não é possível entender que um processo pode chegar em frações de segundos ao gabinete de um ministro mas, simultaneamente, a soltura de alguém que já pagou por seus crimes possa levar meses, até anos.

ConJur — Durante muito tempo, viveu-se com a impressão de que o Judiciário, por prezar por suas tradições, seria uma instituição avessa a inovações tecnológicas. Isso é verdadeiro?
Cesar Asfor Rocha — O Judiciário pode ter se comportado dessa maneira no passado. Mas, atualmente, não é mais assim. A digitalização dos processos e a criação do sistema online da Justiça ajudaram a quebrar alguns desses preconceitos. Hoje, já há outras iniciativas inovadoras. O CNJ criou um laboratório de inovação. O STF e o STJ possuem iniciativas similares. E os tribunais estaduais também estão criando suas próprias estruturas para facilitar processos. Já está mais que sedimentada a ideia de que a tecnologia é aliada e não inimiga.

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