Senso Incomum

Anarché: Concurso do MP-SC pergunta coisas que não têm resposta!

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10 de outubro de 2019, 8h00

O concurso mais recente para o ingresso na carreira do Ministério Público de Santa Catarina começou bem… bem mal. Uma das perguntas simboliza a crise do ensino jurídico brasileiro e a carência de uma dogmática jurídica mais consistente. A algaravia conceitual sobre princípios recebeu importante contribuição de uma das perguntas do concurso.

Spacca
Explico. Depois de tentar conceituar princípios, a partir de uma mistura de autores e enunciações (ver aqui), o arguidor indaga:

“Possível, portanto, observar a importância dos princípios jurídicos para o Direito Brasileiro, razão pela qual enumera-se a seguir dez princípios jurídicos para que o candidato discorra sobre eles.
1 – Princípio da Solidariedade Intergeracional; 2 – Princípio da Continuidade ou Permanência; 3 – Princípio da Conformidade Funcional; 4 – Princípio da Socialidade; 5 – Princípio da Uniformidade Geográfica; 6 – Princípio da Adstrição; 7 – Princípio da Intranscendência Subjetiva; 8 – Princípio da Operabilidade; 9 – Princípio da Não Afetação; 10 – Princípio do Juízo Imediato."

Bom, se princípio é um padrão deontológico que, exsurgindo da tradição jurídica, justifica a própria prática e, normativamente, dita um standard da moralidade política institucionalizada pelo Direito (pensemos na cooriginariedade), conduzindo a interpretação e o raciocínio judicial, então… bom, então a pergunta não tem resposta, porque nenhum dos dez álibis retóricos (ou enunciados com pretensão de performatividade) apresentados é, de fato, um princípio autêntico.

Princípio é arché. E anarché é ausência de princípios (anarquia). É o que parece ser a questão apresentada. E nem examinei o restante das provas do certame. Imagino que deve ter mais coisa do gênero. Princípio principia. É um padrão, como diz Dworkin. É norma. É deontológico. Não é um valor. Pela enésima vez: princípios não são valores. O que a questão acima pede é um juízo sobre proposições de moralidade sem qualquer lastro de institucionalidade subjacente.

Vejam que estou sendo generoso: talvez o que a questão esteja pedindo é que o candidato faça uma análise de méritos políticos de determinados valores que podem ou não fazer parte de um sistema. É como o velho “princípio” da afetividade do direito de família. Não é norma. Se fosse, teria que ser aplicado em todas as situações. Seria condição de possibilidade de aplicação de qualquer regra do direito civil ou de outro ramo. Afetividade para quem? Para o autor ou para a o réu? Para a esposa ou o esposo? Para a amante? Para os filhos? E quando os filhos disputam algo entre si? Afetividade…maior ou menor? O que é afetividade? Existe um afetivômetro? Ou a afetividade está na cabeça do intérprete? Logo, não é direito. É só…um argumento moral. Por que os juristas não querem admitir isso?

Ora, isso tudo é apenas um conjunto de apreciações morais. Tudo isso é legítimo… mas não é princípio! Não é de princípios que a pergunta está tratando. Porque não é jurídico. Esse é o ponto. Princípios, é claro, ditam o que o Direito deve ser, mas exsurgem exatamente daquilo que o Direito já é. Aqui peço socorro a juristas do quilate de Otavio Luiz Rodrigues Jr, clamando pelo estatuto epistemológico do direito civil (e do direito em geral).

O que estão fazendo com o Direito? Se alguém tem dúvidas sobre o que estou dizendo, há muita literatura sobre o assunto, como Dworkin, Habermas, o meus Verdade e Consenso e Dicionário de Hermenêutica, o livro Conceito de Princípio, de Rafael Tomás de Oliveira, os textos de Georges Abboud, Nelson Nery Jr., Francisco Motta e tantos outros. No Programa Direito & Literatura, TV Justiça, há um programa sobre Princípios (aqui, aqui, aqui e aqui – está em quatro blocos). Lembro também que os Professores alemães Reinhard Zimmermann e Jan Peter Schmidt estiveram por aqui e foram entrevistados por Sérgio Rodas e Otavio Rodrigues Jr (clique aqui para ler).  A manchete já diz tudo: "Princípios do Código Civil não autorizam juiz a atropelar a lei". E eu escrevi uma coluna dizendo: Zimermann, Schmidt, Streck e Otavio: todos contra o pan-principialismo.

Sigo. Você pode muito bem achar que, moralmente, é preciso que haja “solidariedade intergeracional”. É um desejo moral. Isso existe; está sobretudo na tradição conservadora britânica. Mas por que isso seria jurídico? Querem ver como isso é grave? Ele serve para justificar qualquer coisa. Pela “solidariedade intergeracional” posso dizer que a Previdência deve ser reformada, porque aqueles que virão não podem pagar por aqueles que aqui estão. E, pela “solidariedade intergeracional”, posso dizer que… a Previdência não deve ser reformada, porque aqueles que virão podem, afinal, pagar por aqueles que aqui estão. Solidariedade intergeracional para quem vem, para quem está, para quem foi ou para quem vai? Ou seja, esse “princípio” não passa de um álibi retórico; não resiste a nenhum teste de pedigree. [1] É fonte de quê?

Cabe discussão. É claro. Mas ela é uma discussão política. Moral. E política e moral não corrigem o Direito. Princípios jurídicos estão no Direito, são o Direito, ditam o Direito, são significados pelo Direito e dão significado ao Direito. Se parece circular, é porque de fato é. Se parece complexo (e de fato é), que pelo menos não se perca de vista que princípios jurídicos são normas. Princípios não são os velhos axiomas do século XIX, como já denunciou Castanheira Neves. E como já o fiz dezenas de vezes.  Princípio é um padrão que se constrói na comum-unidade. É um argumento de moralidade política em favor de um direito. É produto da interpretação do Direito concebido como uma prática que faz sentido como um todo. Princípio não é uma criação ad hoc. Princípio não é algo tipo Grouxo Marx: “estes são os meus princípios. Se você não gosta deles, eu tenho outros”.

É claro que é complexo. É claro que não existe uma definição criterial para o que é e não é um princípio. Como essencializar um conceito interpretativo? Mas é exatamente por ser complexo que não se pode brincar com isso. É preciso muito cuidado. Princípio, repito, é norma. É mesmo tão fácil assim criar uma norma jurídica? Que vincula?

O que é intranscendência subjetiva? Segundo a grade de resposta, é um princípio que no direito administrativo proíbe que a sanção administrativa ultrapasse a pessoa do infrator. É mesmo? Eu não sabia. Sempre pensei que a pena podia ser aplicada para além do infrator… A Constituição, inclusive, não fala nada disso… Ironias minhas à parte e sem pretender fulanizar a discussão, peço desculpas aos que inventaram isso, mas, permito-me dizer: se substituirmos esse nome por qualquer outra coisa, o que mudará no mundo? Só serve para perguntar em prova de concurso. É como Caio e Ticio, que embarcam em um navio e este naufraga. Salvam-se e, agarrados a uma tábua, Caio mata Tício. Pergunta: qual é o foro de competência? Ah, se a tábua for do navio naufragado… Ah, bom. Há muitas tábuas passando em alto mar para que dois gaiatos nela se agarrem…Pois é.

Mais (vou falar apenas de alguns dos tais standards): desde quando “uniformidade geográfica” é um padrão normativo que justifica a tradição institucional do Direito e conduz sua interpretação/aplicação? Por que isso é jurídico? O gabarito diz que é um princípio do direito tributário, dizendo que tributos da União devem ser uniformemente estabelecidos. Pois é. Mas e daí? O pacto federativo, por exemplo, derruba o princípio? Ou é um princípio que só vale de vez em quando?

Outro genial é o da “operabilidade”. E o gabarito? Diz ser esse um princípio que “visa simplificar a compreensão e a aplicação do direito”, buscando “efetividade”. Genial. Vamos todos para Estocolmo. Nobel para o direito brasileiro. Com esse “princípio”, justifico literalmente qualquer decisão. Achamos a pedra filosofal da interpretação. Princípio bingo. Justificamos com esse standard qualquer decisão. Inacreditável. A lei diz x, mas eu prefiro y. Então, aplico y. “Ah, mas a lei dizia x!”. E daí? Pelo princípio da operabilidade, digo y, para dar efetividade ao Direito e facilitar sua compreensão. Isso é o que eu chamo de “direito fofo”, “dúctil”, próprio da MJL – Modernidade Jurídica Líquida.

Depois nos queixamos que o Direito seja isso que está aí, em que não conseguimos convencer o STF a aplicar o princípio – este, sim, um princípio – da presunção da inocência (aliás, o concurso poderia ter perguntado isso, pois não?). O pamprincipiologismo tomou conta. “Princípios” fabricados a granel. “Princípios” construídos na esfera privada (linguagem privada) acabam se estabelecendo como sobranceiros na linguagem pública. O Parlamento leva um tempão para fazer uma regra. E lá vem um intérprete e constrói um princípio. O que 513 deputados e 81 senadores votaram cai em face do por exemplo, príncipio da não afetação. Ou da operabilidade. Vamos falar a sério, ou não?

Um princípio não pode ser uma obviedade. Por isso, tem um muito estranho. Chama-se de “adstrição”. O que mais intriga é que ele é um “princípio infraconstitucional”. Mas, então, para que serve um princípio? Vão colocar uma regra contra um princípio infraconstitucional? O Direito é, afinal, o quê? Diz-se que o tal princípio veda a possibilidade de se proferir decisão de natureza diversa da pedida ou condenar a parte em quantidade superior ou objeto diverso do que lhe foi demandado. Eu conhecia isso por outro nome. E iria direto ao dispositivo do CPC. Por que recorreria a um “princípio” e ainda por cima um de índole “infraconstitucional”? Também aqui não pretendo fulanizar. Mas peço, lhanamente, que pensemos sobre a gravidade disso tudo. Se o Direito é um sistema de regras e princípios, qual é a razão da existência de um princípio infraconstitucional desse quilate, que diz aquilo que o CPC diz?

Noves fora, sobra um. Sim, porque alguém dirá que o “princípio da conformidade funcional” tem o respaldo de Gomes Canotilho. Tenho dúvidas sobre o caráter normativo desse standard. Vou dar de barato que, dos dez, este fique em uma zona cinzenta. Diz-se que, por esse standard, é proibido modificar a repartição de funções fixadas pela própria Constituição.  OK. Mas se a Constituição estabelece funções, por qual razão necessito de um “princípio” para fazer valer a própria Constituição? Trata-se de uma tautologia. Uma obviedade.  Na verdade, se, de forma muito generosa, considerarmos o referido standard como sendo um princípio, já não seria um “princípio de interpretação”, e, sim, um “princípio que assegura a repartição de competências”, que, todavia, estão explícitas no texto…da CF. Logo…

No mais, faça o teste, leitor.

Princípio da hierarquização normativa da interpretação funcional. Está na prova? Não. Acabei de inventar. Mas é como diz o ditado italiano: si non è vero… não é verdade, mas bem que podia. Ou essa gambiarra que acabei de colocar acima não é exatamente a mesma coisa?

Sendo bem sincero, prefiro até os realistas jurídicos lá do século XX nos EUA, que eram céticos e diziam que Direito nem existe, e que é tudo uma questão de economia, de sociologia, de behaviorismo mesmo, e que Direito é o que o Tribunal disser que é. Ao menos lá o ceticismo era assumido e declarado. Aqui, é um ceticismo inconsciente que faz o Direito ser nada e, com um pouco de retórica, dá caráter de juridicidade a uma tese neorrealista. Isso tem de ser dito. É porque talvez tenhamos sido lenientes na teoria do Direito é que tenhamos chegado a este ponto. Talvez por não termos sido minimamente cuidados é que todos os dias ainda vemos gente do Direito esgrimindo um outro “princípio”: o do livre convencimento. Pois é. Qual é a diferença desse standard de um outro chamado “operabilidade”?

Muito cuidado. Se é tão fácil assim para qualquer um criar uma norma jurídica (sim, princípio é norma, portanto, não é qualquer um que pode criar!) do nada, baseado em nada, bom… corramos para as colinas.

Numa palavra final, esses princípios inventados — e, admito, todos criados-inventados de boa-fé — parece servirem, mesmo, para dar maior poder ao intérprete. Trata-se de álibis retóricos, pelos quais é possível dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa. Álibis retóricos que sofrem de anemia significativa, como denunciava Warat. No mais, esse tipo de questão em concurso público não agrega em nada. Apenas põe gasolina na fogueira da crise do Direito.

Faltou só o princípio da graxa. E da dialeticidade. E o do juízo imediato (ups, este está na lista indagada na questão! — vale a pena ver o conceito na grade de respostas).  E faltou o “princípio” da… deixa para lá…!

Post scriptum diferente: para quem ainda não leu, aí vai o link do texto Nem mesmo o STF pode dar às palavras o sentido que quer, publicado na segunda-feira.

 


[1] Na resposta à pergunta n. 99 do livro Diálogos com Lenio Streck (Livraria do Advogado), digo: “não há uma regra que oferece um ‘teste de pedigree’ que confere validade jurídica a um princípio, mas, sim, um modo específico de a comunidade política se conduzir. Trata-se de um padrão decisório que se constrói historicamente e que gera um dever de obediência nos momentos posteriores. Bingo. Isto é, quer dizer, nada mais, nada menos, que os princípios funcionam pelo código lícito-ilícito. Nessa perspectiva, princípios são normas stricto sensu. São um “dever ser”. Não são meramente conselhos ou mandados de otimização. Ou seja, princípios não são valores. Dizendo de outro modo: tratar princípios teleologicamente é submeter direitos e garantias a um cálculo de custo e benefício, dispensando a sua obrigatoriedade e condicionando-os a pontos de vista parciais”.

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