Opinião

Análise da Solução de Consulta Cosit n. 276: o requisito do benefício mútuo

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9 de outubro de 2019, 6h48

Foi publicada na semana passada a Solução de Consulta Cosit n. 276, de 26 de setembro de 2019, que trata dos aspectos tributários de um contrato de compartilhamento de custos.

O documento não é muito claro na explicação da natureza das atividades realizadas pela consulente, mas, ao que parece, ela integra um grupo empresarial da área de industrialização e de comercialização de produtos do gênero alimentício, com matriz estabelecida no exterior, tendo firmado contrato de compartilhamento de custos com sua matriz sediada nos Estados Unidos, com o fim de: a) reduzir os custos através do rateio e concentração da execução de determinadas atividades (atividades-meio) de benefício comum, ao invés de deixar a tarefa para cada unidade de negócios ou para ser desenvolvida por terceiros; b) reduzir o tempo despendido na execução de atividades não relacionadas à atividade principal do negócio, pois ao concentrar determinadas tarefas administrativas em uma empresa (no caso, a matriz nos Estados Unidos), seria possível focar exclusivamente na atividade-fim voltada ao mercado brasileiro.

A consulente explicou que a atividade é executada internamente pela matriz americana e não por um terceiro contratado, e que há expressa previsão no contrato de que os custos das atividades previstas no rateio não representam prestação de serviços entre empresas do mesmo grupo. Destacou, por fim, que no contrato de rateio está expressamente prevista a vedação à inclusão de qualquer margem de lucro.

Em uma leitura dos fatos, é possível inferir que o caso trata de um contrato de compartilhamento de custos internacional e que foram cumpridos pelos contratantes todos os requisitos estipulados na Solução de Consulta Cosit n. 8/2012 e na Solução de Divergência Cosit n. 23/2013, que estabeleceram alguns parâmetros e diretrizes sobre os acordos de rateio, nomeadamente: a) existência de contrato escrito; b) previsão de critério objetivo e razoável; c) rateio de atividade-meio e não de atividade-fim; d) inexistência de margem de lucro.

Analisando os termos da Solução de Consulta Cosit n. 276/2019, as atividades objeto do contrato de compartilhamento estão ligadas ao departamento de engenharia e o departamento de sistemas de informação, como segue:

i) Departamento de sistemas de informação: a) desenvolvimento de atividades de tecnologia da informação, incluindo atividades de suporte aos usuários do sistema interno corporativo; b) resolução de problemas relacionados à tecnologia da informação; c) identificação de necessidades relacionadas à infraestrutura virtual; d) desenvolvimento de aplicações; e e) design de sistemas e implantação de sistemas relacionados à tecnologia da informação.

ii) Departamento de Engenharia: a) atividades relacionadas à engenharia, incluindo a melhoria do processo produtivo; b) auxílio à consulente na escolha de compra da melhor máquina ou equipamento destinado à fabricação de produtos específicos; c) auxílio à consulente a determinar a fórmula apropriada a ser utilizada na fabricação de produtos cuja fórmula tenha sido criada pela General Mills Inc; d) design de planta fabril e introdução de novos produtos às plantas fabris; e) resolução de problemas relacionados aos produtos e gereciamento de perdas.

A consulente questionou os efeitos tributários do contrato de compartilhamento para dois departamentos distintos: departamento de sistemas de informação e departamento de Engenharia. E aqui é importante deixar registrado que o modo como a contratação é realizada difere, e muito, em um e outro modelo.

De fato, enquanto o compartilhamento do sistema de informação traduz-se claramente em um típico contrato de compartilhamento de custos, no qual as partes se obrigam a assumir uma quota-parte dos custos centralizados, necessários à fruição de bens ou direitos ou à realização de atividades do interesse comum de todos, incorrendo a entidade centralizadora com as despesas para depois ser reembolsada, no compartilhamento do Departamento de engenharia há – pelo menos essa é a impressão – um verdadeiro contrato de prestação de serviços intragrupo, no qual a empresa no exterior auxilia a consulente, por exemplo, na escolha de compra da melhor máquina e a determinar a fórmula apropriada a ser utilizada na fabricação de produtos.

A solução jurídica, portanto, deve ser diferente para cada modelo de contratação.

Na Solução de Consulta Cosit n. 276/2019, porém, a RFB não fez essa diferenciação. Para a RFB, o contrato firmado pela consulente carece de um elemento caracterizador do contrato de compartilhamento de custos, que é o benefício mútuo entre as empresas participantes.

De fato, o requisito do benefício mútuo é corrente na doutrina internacional e, como apontado pela RFB na Solução de Consulta Cosit n. 276/2019, foi um conceito que apareceu no paper "OECD Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax Administrations", tanto na versão de 2017 quanto em suas versões anteriores. Ocorre que, analisando o paper, verifica-se que o conceito de benefício mútuo empregado pelo documento da OCDE é muito mais direcionado para um contrato de compartilhamento de custos em que as partes têm a intenção de desenvolver um projeto de R&D, esperando um benefício futuro e alocando riscos entre as empresas participantes, do que no contrato firmado pela consulente no caso em análise, que é o acordo de compartilhamento de atividades-meio, administrativas, como um RH, serviços jurídicos, marketing etc.

Com efeito, o requisito do benefício mútuo, mencionado na Solução de Consulta Cosit n. 276/2019, é considerado pela OCDE como um atributo dos contratos em que as partes, em comum esforço, buscam inovar no seu ramo, criando intangíveis, desenvolvendo pesquisas, enfim, rateando um projeto de interesse em comum. Nesse contexto, é imprescindível que de fato haja um benefício mútuo para as partes contratantes.

Ocorre que em um contrato de compartilhamento que se limite à execução material de um serviço administrativo, de RH, de call center, no âmbito de um "centro de custos", em que as partes não comungam esforços, mas apenas buscam diminuir os custos desses serviços, não há como inferir outro benefício ao "centro de custos" – que no caso em análise era executado pela empresa matriz – senão a redução dos custos dos serviços prestados, o que é inerente a esse modelo de contratação.

Dessa forma, não é possível aplicar os preceitos estabelecidos no paper "OECD Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax Administrations 2017" para esses modelos de contratos. Alberto Xavier[1], no clássico livro "Direito Tributário Internacional do Brasil", já apontava que os serviços de execução no âmbito de um "centro de custos" não se incluíam dentre aqueles modelos comparticipativos identificados pela OCDE no referido paper. Como esclarece aquele autor "a OCDE visualiza modelos comparticipativos apenas em matéria de investimentos para produção, desenvolvimento ou aquisição de bens, direitos ou serviços, realizados em pool, enquanto toda a execução de serviços correntes recairia no conceito de serviços intragrupo, independentemente do modo de execução de tais serviços, isto é, quer sejam prestados profissionalmente, através de contrato, quer se limitem a uma execução material no âmbito do centro de custos".

Portanto, no paper "OECD Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax Administrations 2017" a OCDE não aprofunda os requisitos para o reconhecimento de um contrato de compartilhamento nos moldes firmados pela consulente (frisa-se, o contrato referente ao departamento de sistemas de informação, já que o compartilhamento do departamento de engenharia parece ser, realmente, um contrato de prestação de serviços intragrupo).

Dessa forma, bastaria que o contribuinte cumprisse com os requisitos previstos na Solução de Consulta Cosit n. 8/2012 e na Solução de Divergência Cosit n. 23/2013 (existência de contrato escrito, previsão de critério objetivo e razoável, rateio de atividade-meio e não de atividade-fim, inexistência de margem de lucro) para que o contrato de compartilhamento de custos devesse ser validado pelo Fisco (requisitos esses, diga-se de passagem, que foram cumpridos pela consulente), pois trata-se de critérios vinculantes para as autoridades fiscais.

Vale apontar, por fim, que outro argumento para descaracterizar o contrato de compartilhamento sustentado na Solução de Consulta Cosit n. 276, em análise, foi o fato de a vantagem individual ter sido medida através de métodos diretos, como acontece na prestação de serviços individualizados. Ocorre que esse critério foi determinante para afastar a caracterização do contrato apenas para o departamento de engenharia, conforme se infere no documento. Assim, o único critério para descaracterizar o contrato no tocante ao departamento de sistemas de informação foi, de fato, a ausência de um benefício mútuo para os contratantes, o que, como se viu, não pode prevalecer por ser manifestamente inaplicável ao caso concreto.

A conclusão, por isso, é que a RFB, na Solução de Consulta Cosit n. 276, não decidiu o caso da melhor maneira, seja porque aplicou a mesma solução para modelos de contratação distintos, seja porque se baseou em um conceito de benefício mútuo consagrado em paper da OCDE o qual é absolutamente inaplicável ao o modelo clássico de compartilhamento de custos de atividades-meio em que as partes contratantes têm unicamente o propósito de dividir os custos de serviços que não constituem a sua atividade-fim.


[1] XAVIER, Alberto. Direito tributário internacional do Brasil. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 404.

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