Direto do Carf

Efeitos do estorno de ajustes de superveniência de depreciação no leasing

Autor

  • Carlos Augusto Daniel Neto

    é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direito Tributário pela PUC-SP com estágio pós-doutoral em Direito Tributário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) é visiting scholar no Max-Planck-Instituts für Steuerrecht und Öffentliche Finanzen ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf pesquisador do NEF/FGV presidente da Comissão de Direito Aduaneiro do Iasp e professor permanente do mestrado profissional do Cedes e da pós-graduação do IBDT.

9 de outubro de 2019, 8h00

Hoje trataremos de uma matéria recentíssima na jurisprudência do Carf, mas que tem tido diversas autuações julgadas, em valores vultosos, ao longo dos últimos meses: o efeito dos ajustes de superveniência ou de insuficiência de depreciação sobre a base de cálculo das contribuições para o PIS e a COFINS, nos casos de empresas dedicadas à realização de arrendamentos mercantis (leasing)[1]. Passemos à colocação da problemática.

Para fins tributários, a Lei 6.099/74 estabelece, em seu artigo 4º, que o arrendador manterá registro individualizado que permita a verificação do fator determinante da receita e do tempo efetivo de arrendamento. Em outras palavras, além do tempo do contrato, o arrendador deverá manter discriminar os recebimentos relativos às operações de leasing, que podem corresponder a i) recuperação do capital investido no bem arrendado ou ii) lucro da operação, ambos recebidos por meio das contraprestações contratuais e dos VRG (Valor Residual Garantido). Essa segregação dos valores correspondentes ao resultado operacional da arrendadora e a recuperação do seu capital é assaz relevante, pois apenas o primeiro deverá ser computado na base de cálculo do PIS/COFINS.

O Plano Contábil das Instituições do Sistema Financeiro Nacional (COSIF)[2] estabelece, em seu item 1.11.8.2, que se registre os bens objetos de leasing em conta do Ativo Imobilizado (Bens Arrendados), pelo seu custo de aquisição, correspondente ao “preço normal da operação de compra acrescido dos custos de transporte, seguros, impostos e gastos para instalação necessários à colocação do bem em perfeitas condições de funcionamento, deduzido das perdas decorrentes de redução ao valor recuperável de ativos”, reconhecendo-se mensalmente a sua depreciação.

Entretanto, para que a demonstração financeira demonstre de forma mais fidedigna o resultado das baixas dos bens arrendados, refletindo a natureza do leasing financeiro de financiamento (e não aluguel), o item 1.11.8.5 exige que se calcule, mensalmente, o valor presente das contraprestações dos contratos, utilizando-se a taxa interna de retorno de cada contrato. A diferença apurada entre o valor presente e saldo residual contábil dos bens arrendados será objeto de ajuste da carteira, em cada mês.

Esse ajuste é feito por complemento ou estorno, na conta de “Despesas de Arrendamento” ou “Rendas de Arrendamento”, tendo como contrapartida o lançamento em conta de “Insuficiência de Depreciações” ou “Superveniência de Depreciações”, respectivamente.

Desse modo, pode se dar o seguinte: i) em sendo o saldo contábil inferior ao valor presente do arrendamento, registra-se a diferença como superveniência de depreciação, tendo como contrapartida o lançamento a crédito em “rendas do arrendamento”; e ii) caso o saldo contábil seja superior ao valor presente do arrendamento, registra-se a diferença como insuficiência de depreciação, tendo como contrapartida o lançamento a débito em “despesas de arrendamento”, ambos a título de complemento[3].

Além disso, o resultado na venda de valor residual é contabilizado i) a crédito de “Lucros na alienação de bens arrendados”, se positivo; ou ii) a débito de “Perdas em arrendamentos a amortizar”, se negativo.

Entretanto, na parte específica sobre “Elenco e Função das Contas”. O item relativo à conta 2.3.2.30.00-8 (superveniências de depreciações), estabelece que na ocasião da baixa do bem arrendado, com lucro, esta conta deve ser creditada pelo valor do lucro, em contrapartida com “Disponibilidades”. Em relação à conta 2.3.2.40.00-5 (insuficiências de depreciações), quando da baixa do bem arrendado, com prejuízo, esta conta deverá ser debitada pelo valor do prejuízo, em contrapartida com “Bens Arrendados”.

No caso de conflito entre normas do COSIF, deve prevalecer o disposto nas “Normas Básicas”, conforme item 1.1.4 desse Plano Contábil, que dispôs categoricamente que “Os capítulos deste Plano estão hierarquizados na ordem de apresentação. Assim, nas dúvidas de interpretação entre Normas Básicas e  Elenco  de  Contas,  prevalecem  as  Normas  Básicas.  (Circ 1273).”.

Portanto, com o encerramento do contrato, o saldo das contas de superveniência ou insuficiência deverá ser estornado, respectivamente, i) a débito em conta de rendas do arrendamento, com redução da base de cálculo do mês correspondente; ou ii) a crédito da conta de perdas no arrendamento, ampliando a base de cálculo do mês.

Diante disso, a fiscalização entendeu que o contribuinte estaria diminuindo indevidamente a base de cálculo do PIS/COFINS, ao realizar o estorno do saldo de superveniência de depreciação (em atendimento às regras contábeis que lhe são próprias) no final do contrato de arrendamento, pois não caberia ao Banco Central do Brasil estabelecer uma isenção às contribuições sociais em questão, por meio das regras contábeis a serem adotadas.

O primeiro julgamento, paradigmático não apenas pela novidade, mas também pela robustez técnica do voto proferido, se deu com o Acórdão 3301-004.760[4], no qual o relator fez um amplo levantamento sobre a matéria, tanto sob a perspectiva legal quanto contábil. Aduziu inicialmente que a ADN SRF 34/87 estabelecera que os ajustes decorrentes do Plano de Contas aprovado pelo Banco Central não deveriam ter efeitos sobre a base tributável do IRPJ, ressaltando assim a sua “neutralidade fiscal”, posição esta ampliada para a CSLL pelo Carf (Acórdãos 1402-002.074 e 1103-00.684).

Seguindo pelo argumento da neutralidade, pontuou que os ajustes de superveniência e insuficiência de depreciação são meramente escriturais e temporais, tendo como única finalidade aperfeiçoar a qualidade da informação prestada pelas demonstrações financeiras, de modo que tais ajustes não devem afetar o resultado econômico-financeiro das operações.

Desse modo, deve haver a sua neutralidade para fins tributários, pois da mesma forma que o ajuste decorrente da diferença positiva entre o valor presente do contrato de arrendamento e o valor contábil do bem (registrado como superveniência de depreciação) afetou positivamente a renda do arrendamento, seria correto que, no estorno desse saldo ocorrido com a baixa definitiva do bem, o valor reduzisse essa mesma conta, afetando a base de cálculo das contribuições sociais.

Essa mesma matéria foi apreciada pela 2ª Turma da 3ª Câmara da 3ª Seção, por meio dos acórdãos nº 3302-005.747 e 3302-005.746[5], cujo voto vencedor reproduziu ipsis literis o teor da decisão mencionada acima. Nesses dois casos, vale destacar a presença do voto vencido do Cons. Fenelon Moscoso, que aduziu que cálculos e apurações estritamente contábeis, a título de estorno do saldo de superveniência de depreciações, não teria o condão de afetar a base de cálculo do PIS/COFINS, definido por lei.

Os Acórdãos 3301-005.179[6] e 3301-005.804[7] e, essa questão foi enfrentada de forma tangente, com a aderência do relator aos precedentes apontados acima, mas enfrentou, no cerne da controvérsia, a possibilidade das partes avençarem livremente o VRG dos bens arrendados, e a oponibilidade dessa escolha à fiscalização, bem como a abrangência da isenção de PIS/COFINS sobre ganhos de capital na venda de bens do ativo imobilizado.

A mesma posição foi reafirmada no Acórdão 3003-000.397[8], com nova remissão integral ao voto proferido pelo Conselheiro Marcelo Costa.

Por fim, cabe mencionar que o tema se encontra atualmente em julgamento no Carf, pela 1ª Turma da 4ª Câmara da 3ª Seção, no Processo 16327.720004/2018-01, de relatoria do Conselheiro Leonardo Branco, tendo aduzido este relator que os ajustes de superveniência e insuficiência são apenas escriturais e temporários, não alterando o resultado do leasing, de modo que o seu estorno é necessário para anular os seus efeitos tributários ao longo do contrato, dando provimento integral ao Recurso do Contribuinte[9].

Como se vê, trata-se de uma matéria que, a despeito da complexidade técnica que encerra, vem recebendo um entendimento homogêneo no âmbito do Carf, o que reputamos a excelência do voto do primeiro relator. Além disso, diante do atual cenário, os casos julgados não têm como ser objeto de recursos especiais, em razão da inexistência de dissídio jurisprudencial.

* * *

Na última semana, entre os dias 2 e 4 de outubro, a ABRADT fez o XXIII Congresso Internacional de Direito Tributário, em Belo Horizonte/MG, no qual diversos temas relevantes, relacionados ao Carf, foram tratados por especialistas nas matérias.

Na ocasião, tratei sobre o tema das “Multas Qualificadas na Jurisprudência da CSRF”, tema que deve ocupar textos futuros.

A despeito da qualidade ímpar de todas as palestras que assisti, gostaria de ressaltar, mormente em razão da pertinência temática com esta coluna, a qualidade do Painel 14 – Limites do Planejamento Tributário, que contou com palestras brilhantes da Conselheira Maysa Pittondo, dos Conselheiros Alexandre Evaristo (que escreve conosco aqui) e Rodrigo Mineiro, do PFN Marco Aurélio Zortea, e da Advogada Karem Jureidini Dias, todos profundos conhecedores dos relevantes temas que permeiam os debates no Carf.

Apenas em ambientes qualificados de debate, como este Congresso da ABRADT, é que o Direito Tributário pode avançar em boas direções.

Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas sim uma análise dos seus precedentes publicados no sítio virtual do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.


[1] No presente caso, vamos nos referir exclusivamente ao leasing financeiro, em razão de ser o objeto dos precedentes analisados.

[3] Não há que confundir aqui a superveniência ou insuficiência de depreciação com as chamadas despesas de depreciação: as primeiras têm o condão de afetar, positiva ou negativamente, o resultado do arrendamento mercantil, enquanto a segunda é uma previsão legal de dedução da receita bruta operacional, sem que eles se confundam, a despeito da terminologia utilizada.

[4] Relator Cons. Marcelo Costa, julgado em 21/06/2018, unânime. O mesmo contribuinte teve caso idêntico julgado no Acórdão nº 3301-006.040, julgado em 28/03/2019.

[5] Ambos com voto vencedor do Cons. Walker Araújo, e julgados em 27/08/2018, por maioria.

[6] Relator Cons. Salvador Brandão, julgado em 26/09/2018, unânime.

[7] Relator Cons. Marcelo Costa, julgado em 27/02/2019, unânime.

[8] Relator Cons. Márcio Robson, julgado em 18/07/2019, unânime na parte referente ao estorno do saldo de superveniência de depreciação.

Autores

  • é sócio do Daniel & Diniz Advocacia Tributária, doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf, e professor em cursos de pós-graduação."

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