Consultor Tributário

Agronegócio sujeita-se a imposto travestido de contribuição voluntária

Autor

  • Igor Mauler Santiago

    é sócio-fundador do escritório Mauler Advogados mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Processo Tributário (IDPT).

9 de outubro de 2019, 10h20

Spacca
A soja em vagem ou batida de produção mato-grossense goza de diferimento do ICMS nas operações internas àquele Estado (artigo 7º do Anexo VII do RICMS/MT). O diferimento é qualificado pelo Regulamento como opcional (idem, parágrafo 3º), ficando condicionado, segundo o parágrafo 6º, “a que os contribuintes remetentes da mercadoria, antes de iniciada a saída, contribuam para as obras e serviços do Sistema Rodoviário e Habitacional do Estado de Mato Grosso, na forma, prazos e valores previstos na legislação específica”.

A referência é ao Fundo Especial de Transporte e Habitação – Fethab, criado pela Lei estadual 7.263/2000. O artigo 7º, parágrafo 1º, inciso I, da lei institui a contribuição para o gozo do diferimento, fixando-a em 10% do valor da UPF/MT por tonelada de soja transportada.

Após as alterações promovidas pela Lei estadual 10.818/2019, o diferimento ficou também condicionado ao pagamento de contribuição ao Instituto Mato-grossense do Agronegócio – Iagro, de 1,15% do valor da UPF/MT por tonelada de soja transportada (artigo 7º, parágrafo 1º, inciso II-A[1]). A Lei de 2019 reinstituiu ainda adicional de 100% ao Fethab (artigo 7º-D-1), sujeitando o diferimento à satisfação também dessa parcela.

O artigo 8º, incisos I e II, reitera o caráter facultativo das contribuições e a necessidade de seu pagamento para o gozo do diferimento, acrescentando o artigo 11, caput e parágrafo 1º, que o contribuinte que não o efetuar estará obrigado a quitar o ICMS “no ato”, quiçá “antes da saída da mercadoria do seu estabelecimento”.

Até aqui tratou-se apenas das contribuições incidentes sobre as saídas internas de soja. Pois bem: segundo os artigos 7º-C-1, caput e incisos I e II, e 7º-D (c/c o artigo 7º-D-1, inciso I e parágrafos 1º e 2º), as contribuições ao Fethab (inclusive adicional) e ao Iagro gravam também as exportações de soja e as operações a elas equiparadas pelo artigo 3º, parágrafo único, da Lei Complementar 87/96 (inclusive quando destinadas a empresas comerciais exportadoras). O artigo 7º-C-1 (c/c o artigo 7º-D-1, inciso I e parágrafos 1º e 2) submete ainda às três contribuições as operações interestaduais com soja.

Quanto às exportações e às saídas interestaduais, o pagamento das contribuições é “condição para manutenção de regime especial para apuração e recolhimento mensal do ICMS nas operações interestaduais e para remessa da mercadoria para exportação com suspensão ou não incidência do imposto” (artigo 8º, inciso III e parágrafo 1º).

Anote-se, por fim, que a receita das contribuições é destinada ao Fundo Especial de Transporte e Habitação – Fethab (artigos 7º, parágrafo 1º, inciso I, e 7º-D-1, parágrafos 1º e 2º) e ao Instituto Mato-grossense do Agronegócio – Iagro (artigos 7º, parágrafo 1º, inciso II-A e parágrafo 1º-B, e 7º-C-1, parágrafo 2º), havendo vinculação direta do Fethab e respectivo adicional a despesas predeterminadas pelo legislador (artigos 14-I e 18-D).

Sabe-se que o Estado só pode impor prestações pecuniárias ao particular na qualidade de receitas patrimoniais (royalties do petróleo e da mineração, etc.), multas por atos ilícitos e tributos. Sendo inaplicáveis ao caso concreto as duas primeiras hipóteses, restaria apenas a terceira. Porém, a Constituição prevê que os Estados e o Distrito Federal podem instituir apenas quatro espécies de tributos: i) impostos (ITCMD, ICMS e IPVA – artigos 145, inciso I, e 155, incisos I a III); ii) taxas de serviço e de fiscalização (artigo 145, inciso II); iii) contribuição de melhoria decorrente de obras públicas (artigo 145, inciso III); e iv) contribuição cobrada dos seus servidores para custeio da respectiva seguridade social (artigo 149, parágrafo 1º).

Nem se diga que as contribuições ao Fethab e ao Iagro não seriam tributos, por serem opcionais. Facultativas seriam se não houvesse consequências para o seu inadimplemento, o que claramente não é o caso. Não podendo enquadrar-se em qualquer outra figura tributária à disposição dos Estados, as contribuições são parcelas de ICMS exigidas como condição (válida ou não, isso o que se discutirá) para o afastamento de obrigações mais onerosas do próprio imposto. A prática, aliás, tem-se revelado corriqueira, como prova o Convênio ICMS 42/2016, que condiciona a fruição de incentivos e benefícios fiscais “a que as empresas beneficiárias depositem em fundo (…) o montante equivalente a, no mínimo, dez por cento” do valor por eles reduzido ou dispensado (cláusula primeira, inciso I).

De fato, existem benefícios tributários que são condicionados a contraprestações materiais do contribuinte (gerar determinado número de empregos, instalar-se em determinada região, etc.). Mas uma contrapartida pecuniária ao gozo de um benefício fiscal (ou de que algo que, mal ou bem, é assim qualificado pelo Fisco) nada mais é do que uma parte do próprio tributo dispensado.

Firmada a premissa de que as contribuições para o Fethab e adicional e ao Iagro têm natureza de ICMS, decorre a inconstitucionalidade de todas as suas incidências, por violação ao artigo 167, IV, da Constituição, que proíbe a vinculação da receita de impostos a órgão (o Iagro), fundo (o Fethab) ou despesa: as previstas nos artigos 14-I e 18-D da lei, que só em pequena parte coincidem – e mesmo assim sem garantia de efetividade, pois a lei fala em aplicação “preferencial” dessa parcela em saúde e educação, ao lado de outras finalidades sociais – com as exceções admitidas pela Constituição. Reconhecida a invalidade da vinculação, impõe-se a anulação das próprias exações – que nada mais são do que parcelas de ICMS disfarçado, repita-se –, como reconhece o STF (Pleno, RE 183.906/SP, Relator Ministro Marco Aurélio, DJ 30.04.98).

A esse fundamento geral, e sempre partindo da premissa de que as exações em análise são ICMS travestido de contribuições voluntárias, somam-se razões específicas para a sua inconstitucionalidade nas seguintes hipóteses:

  • saídas interestaduais: ofensa ao artigo 155, parágrafo 2º, inciso IV, da Constituição, que veicula uma “reserva de resolução do Senado Federal para determinar as alíquotas do ICMS para operações interestaduais” (STF, Pleno, ADI 4.565-MC/PI, Relator Ministro Joaquim Barbosa, DJe 27.06.2011). Em consequência, descabe aos Estados e ao Distrito Federal manipular de qualquer maneira a alíquota interestadual, sendo inválidas quaisquer parcelas impostas em lei local que se somem a ela, caso das contribuições em estudo;
  • exportações: ofensa ao artigo 155, parágrafo 2º, inciso X, alínea a, da Constituição. A contrariedade é evidente e dispensa maior elaboração;
  • operações equiparadas a exportações: ofensa aos artigos 146, inciso III, alínea a, que atribui à lei complementar definir o fato gerador dos impostos, e 155, parágrafo 2º, inciso XII, alínea e, da Constituição, que autoriza a lei complementar a alargar a não incidência de ICMS nas exportações. É com apoio nessas regras que a Lei Complementar 87/96 equipara a exportações as saídas com fim específico de exportação (artigo 3º, parágrafo único). E o STF considera inconstitucionais, por invasão da esfera de competência da lei complementar tributária – e não apenas ilegais por contraste com o teor desta –, as normas editadas por qualquer ente político que a contrariem. Nesse sentido, o RE-RG nº 940.769/RS (Pleno, Relator Ministro Edson Fachin, DJe 11.09.2019) e o RE-RG nº 562.276/PR (Pleno, Relatora Ministra Ellen Gracie, DJe 09.02.2011), entre inúmeros outros.

Todas as considerações acima partem da premissa de que as contribuições em estudo mascaram verdadeiro ICMS. Contudo, ainda que tal assimilação seja rejeitada, e que se referende a sua singular definição como parcelas voluntárias, impõe-se a invalidação dos comandos legais que ligam ao seu inadimplemento as seguintes consequências:

  • pagamento do ICMS a cada saída interna e interestadual de soja, e não segundo o regime de apuração mensal, com cotejo de débitos e créditos; e
  • pagamento do ICMS nas saídas de soja equiparadas a exportações pelo artigo 3º, parágrafo único, da Lei Complementar 87/96.

É que tais sanções atingem direitos que são garantidos ao contribuinte diretamente pela Constituição e pela lei complementar, cuja eficácia não pode ser submetida a condição imposta por lei local. No que diz respeito às duas primeiras, tem-se que o artigo 155, parágrafo 2º, inciso I, da Carta dispõe que o ICMS “será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal”.

Ora, a não cumulatividade pressupõe a apuração do imposto por período de tempo, e não operação a operação, pois nesse último caso o valor devido equivalerá ao produto do preço praticado pela alíquota vigente, com o abatimento no máximo dos créditos decorrentes da entrada da mercadoria (na hipótese de revenda), mas não daqueloutros impassíveis de vinculação direta com cada mercadoria saída, como os ligados ao ativo fixo e, para o produtor rural, também os decorrentes da aquisição de insumos tais como sementes, fertilizantes, defensivos agrícolas, etc.

Diz ainda a Constituição que cabe à lei complementar “disciplinar o regime de compensação do imposto” (artigo 155, parágrafo 2º, inciso XII, alínea c). Isso foi o que fez a Lei Complementar 87/96, que regulou em detalhe a geração e a utilização de créditos, sempre valorizando a sua contraposição aos débitos nascidos em dado período (ou nos períodos subsequentes, caso haja saldo credor acumulado a ser utilizado no futuro). Assim sendo, não cabe exigir o pagamento do ICMS interno ou interestadual a cada saída, medida rechaçada pelo STF até mesmo quanto a contribuintes com dívida elevada (2ª Turma, RE 195.691/GO, Relator Ministro Marco Aurélio, DJ 10.08.2001), e que se revela ainda mais inadmissível ante a simples recusa ao pagamento de contribuições soi-disant “voluntárias”.

Já quanto às operações equiparadas a exportações, a não incidência é veiculada por lei complementar cujo campo de atuação exclusiva não pode ser invadido pelo legislador estadual, como já demonstrado.

Em suma, caso acolhida a tese sucessiva, as regras instituidoras das contribuições “voluntárias” restarão mantidas, mas o seu inadimplemento acarretará como único efeito a perda do direito ao diferimento das operações internas, mas com apuração mensal do ICMS pelo contribuinte (débito e crédito). As demais sanções, chocando-se com disposições expressas da Constituição ou da lei complementar, não poderão ser aplicadas em razão de sua inconstitucionalidade material ou formal, respectivamente.

Para simplificar, esta coluna tratou apenas das operações com soja, mas o Fethab e contribuições “voluntárias” semelhantes ao Iagro incidem sobre produtos tão diversos como gado, carnes, madeira, feijão, algodão e outros – aos quais se aplicam os mesmos argumentos aqui desenvolvidos. E mais: o caso do Mato Grosso está longe de ser isolado, havendo fundos e contribuições congêneres em outros Estados, a denunciar a total deformidade de nosso sistema tributário, que sem dúvida exige reforma, embora não nos termos propostos nas PECs 45 e 110 – mas isso já é tema para outros artigos.


[1] Saldo indicação em contrário, todas as referências subsequentes são a dispositivos da Lei estadual nº 7.263/2000.

Autores

  • Brave

    é sócio-fundador do Mauler Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais e membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!